segunda-feira, 23 de dezembro de 2019

Em pelada com Chico, Lula faz primeiro gol, FSP


Cantor pediu a adversários da partida que deixassem 'o Lula livre'



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Na porta da Escola Nacional Florestan Fernandes, em Guararema, no interior de São Paulo, os torcedores que chegam para assistir à partida de futebol deste domingo (22) entre o ex-presidente Lula e o cantor Chico Buarque devem mostrar um QR Code, que é escaneado por membros do MST (Movimento dos Trabalhadores Sem Terra). A princípio, a Folha é impedida de entrar —a organização do evento afirma que ali apenas “agências e imprensa progressista” têm trânsito livre.
Quem não está a caráter da militância tem à sua disposição camisetas com as estampas “Metalúrgica: And Justice 13 for All”, em referência a um álbum da banda norte-americana Metallica, “jamais poderão deter a primavera”, onde os pelos da barba do ex-presidente dão lugar a flores, e “vou te mostrar o tríplex”, na qual Lula aparece com a mão direita enfiada dentro da própria calça, todas por R$ 30. A cerveja “Lula Livre” e a cachaça “A Socialista” também são vendidas no recinto.
“Em 2018 esse jogo não aconteceu, mas neste ano, que foi muito difícil, a gente merece celebrar com muita alegria. Eu só queria pedir ao João Pedro Stédile [coordenador do MST] e aos demais zagueiros fortes do MST que deixem o Lula livre”, diz Chico Buarque na abertura da partida, levando os torcedores mais às gargalhadas que aos aplausos.
“Eu preciso ficar livre, inclusive do goleiro, porque preciso marcar gol”, responde Lula. “Eu preciso causar inveja aos nossos adversários do MST, aos da política, aos da democracia. Enquanto eles transmitem ódio tanto santo dia, nós vamos aqui transmitir alegria, futebol e amor.”
Entram em campo os times Amigos do MST e Amigos do Lula e Chico, que tem escalados artistas como os cantores Chico César e Otto e nomes do PT como o deputado Paulo Teixeira, o ex-prefeito Fernando Haddad e o vereador Eduardo Suplicy. Há mulheres na partida, mas elas não são identificadas pelos narradores. “Olha a trivela que a jogadora fez”, comenta o apresentador José Trajano através dos alto-falantes. 
Lula quase não toca na bola, mas abre o placar com um gol que os presentes não sabem dizer se foi falta ou cobrança de pênalti (era falta). Em seguida, por volta dos 16 minutos de jogo, o ex-presidente cai no gramado e sai dali mancando. Recupera a firmeza nas pernas minutos depois, quando se aproxima das arquibancadas para distribuir beijos e abraços. “Esse aí parece o Neymar”, comenta um torcedor.
A partida acaba em 2 a 1 para o time de Lula e Chico Buarque. O gol da virada é marcado pelo cantor que, apesar da temperatura elevada em Guararema, foi um dos poucos a não pedir para ser substituído por outro jogador. Na saída do vestiário, fãs o aguardam com exemplares de seu livro recém-lançado para pedir um autógrafo. Alguns confessam ter ido ao evento só pela chance do contato com o artista. Mas Chico, acompanhado da namorada Carol Proner, dribla os admiradores, corta caminho pelo matagal que cerceia o espaço e entra num carro que o aguarda. “Esse homem ainda me faz morrer do coração”, desabafa uma fã.
Mônica Bergamo
Jornalista e colunista.

O investidor do ‘Aliança pelo Brasil’, OESP


Milionário, Luís Felipe Belmonte foi o 2º maior doador na eleição passada e hoje trabalha para criar o partido de Bolsonaro

Pedro Venceslau e Paula Reverbel, O Estado de S.Paulo
23 de dezembro de 2019 | 05h00
Principal operador político do Aliança pelo Brasil, o partido que o presidente Jair Bolsonaro tenta criar, o advogado Luís Felipe Belmonte dos Santos foi, até recentemente, filiado ao PSDB, fez doações para legendas de esquerda, como PCdoB, e atuou como advogado do empresário Luiz Estevão, que cumpre uma pena de 26 anos por fraudes na construção do Tribunal Regional do Trabalho (TRT) de São Paulo.
Apesar de ter perfil que destoa do bolsonarismo clássico, Belmonte, de 66 anos, conquistou em pouco tempo um lugar no restrito circulo íntimo do clã e assumiu o papel que um dia foi do também advogado Gustavo Bebianno, hoje desafeto da família. No organograma do partido em formação, ele é o terceiro nome, abaixo apenas do presidente e do senador Flávio Bolsonaro (sem partido-RJ).
LUÍS FELIPE BELMONTE
O advogado Luís Felipe Belmonte dos Santos Foto: WERTHER SANTANA/ESTADÃO
Desconhecido dos bolsonaristas, Belmonte se encontrou pessoalmente com o presidente em fevereiro, no almoço de aniversário do cantor Amado Batista. Na ocasião, o contato foi protocolar. O primeiro encontro de fato entre os dois se deu apenas no dia 19 de novembro, no Palácio do Planalto, e teve a participação dos advogados Karina Kufa e Admar Gonzaga, que assumiram a missão de definir o destino do presidente após ele deixar o PSL.
“Ele conhecia alguns dirigentes de partidos pequenos e tinha algumas opções”, disse Karina. Depois, quando se constatou que o melhor caminho para o presidente era criar a própria agremiação, Belmonte seguiu ajudando. “Ele acabou ficando envolvido com o projeto e realmente se jogou”, afirmou a advogada, que foi quem “descobriu” o novo aliado.
Belmonte desembarcou em Brasília em janeiro do ano passado, após um período sabático de oito anos na Inglaterra – onde aprendeu inglês e foi a shows de rock –, disposto a gastar parte de sua fortuna de R$ 65,8 milhões para entrar na política com a mulher, Paula Belmonte.
Antes da temporada britânica, foi convidado para tentar uma vaga no Congresso em 1994 por Luiz Estevão e declinou, mas mantém até hoje, segundo ele, uma relação “cordial” com o ex-senador. O vice-presidente da Aliança advogou para Estevão em diversas ações, inclusive no processo em que a Vara de Falências e Concordatas do Distrito Federal determinou, em 2005, a falência do Grupo OK, do qual era sócio.
Suplente. Belmonte se filiou no ano passado ao PSDB e entrou na disputa pelo Senado como suplente do tucano Izalci Lucas (DF), que foi eleito. Segundo o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), o advogado doou R$ 1,48 milhão para a campanha. Izalci é hoje cotado para assumir um ministério, o que abriria espaço para Belmonte no Senado. A ideia é ventilada na cúpula bolsonarista.
“Me filiei ao PSDB porque estava junto com o Izalci, que me chamou para o partido. Foi uma questão estratégica. Eu respeito muito o PSDB. É um partido que tem bons quadros, apesar de eu não ser adepto da social-democracia”, afirmou Belmonte, que se desfiliou da sigla. 
Já Paula foi para o Cidadania (antigo Partido Popular Socialista), legenda pela qual foi eleita deputada federal. Ao todo, o advogado doou R$ 3,95 milhões para várias candidaturas, do PCdoB ao DEM, sendo o segundo maior doador das eleições de 2018, atrás apenas do empresário Rubens Ometto, da Cosan. “Tínhamos que buscar um grupo. A indicação para o Cidadania foi do senador Reguffe (Podemos-DF), mas eu não me adaptava nesse espectro. Sou de família militar. Meu pai é militar e eu era afinado com o ideário do movimento do Bolsonaro”, disse Belmonte. 
Questionado se a doação de R$ 10 mil para o PCdoB pode ser usada contra ele por adversários de Bolsonaro, o advogado afirmou que apoia ideias e pessoas, e não partidos. “Eu combato muito fortemente tudo aquilo que veio de decálogo de Lenin e do Foro de São Paulo. Não combato pessoas, mas ideias inadequadas.”
Os seguidores do presidente minimizam a doação para o partido que é a antítese do bolsonarismo. “Todo mundo pode se redimir”, disse a deputada Carla Zambelli (PSL-SP). 
Dono do escritório Luís Felipe Belmonte e Advogados Associados, que inicialmente era Belmonte Advocacia, o vice-presidente do Aliança atua, em grande parte, em processos que chegaram ao Supremo Tribunal Federal (STF) contra a União e, por isso, o embate jurídico é feito contra a Advocacia-Geral da União (AGU).
Assinaturas. O maior desafio de Belmonte agora é certificar cerca de 492 mil assinaturas em pelo menos nove Estados até abril, a tempo de a legenda disputar as eleições municipais. A primeira aposta foi a certificação eletrônica autorizada pelo TSE, que pode custar até R$ 330. Isso não seria um problema. Na quinta-feira, Belmonte afirmou ao Estado que o Aliança recebeu de uma empresa a doação de 1 milhão de assinaturas eletrônicas gratuitas. “E já tem outro grupo oferecendo 500 mil. O custo para nós será zero. Teria de fazer apenas o registro da assinatura eletrônica e já no mesmo ato faz o apoiamento. Empresas da área de certificação eletrônica têm interesse em fazer a divulgação do trabalho deles”, disse o advogado na ocasião.
Mas, como o processo não foi regulamentado, a possibilidade desse modelo é remota e os bolsonaristas se aliaram a líderes evangélicos e corporações militares para tentar atingir a meta de assinaturas físicas. “Temos entidades ligadas a grupos militares que envolvem 900 mil pessoas, sendo que estrutura militar é muito hierarquizada e capilarizada. É um comando e as coisas são atendidas. O Corpo de Bombeiros está em todos os municípios”, afirmou Belmonte. 
Apesar de ser “cristão novo” no bolsonarismo, ele tem discurso afinado com o do presidente. “Nosso estatuto fala em desenvolvimento sustentável, mas os ‘ecoxiitas’ e os ‘biodesagradáveis’ levam tudo tão ao pé da letra que não se pode cortar um capim. Faz quanto tempo que as ONGs estão na Amazônia? 50 anos. E por que a Amazônia está do jeito que está, com os índios miseráveis? Há interesse em manter miseráveis para justificar as ONGs que recebem dinheiro?”
O advogado questionou o fato de a Amazônia concentrar mais ONGs que o Nordeste e disse que as organizações têm um plano de internacionalização da região. “Existem casos de tribos de índio que falam inglês. Há movimentos de internacionalização da Amazônia.” 
Mas há também pontos discordantes. “Não notei na formação do programa do partido a influência acentuada olavista. Alguns pontos, sim, como princípios de família e combate ao Foro de São Paulo. Olavo de Carvalho não será a tônica do novo partido”, disse o advogado em referência ao filósofo e guru bolsonarista.

ENTREVISTA DA 2ª Os que têm o poder continuam nos velhos caminhos modernos, diz Michel Maffesoli, FSP

Para o sociólogo francês, o racionalismo e o individualismo darão lugar à emoção e ao coletivo, que vê como forma de espiritualidade

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O sociólogo francês Michel Maffesoli, que está no Brasil para lançar livro "A Palavra do Silêncio"
O sociólogo francês Michel Maffesoli, que está no Brasil para lançar livro "A Palavra do Silêncio" - Danilo Verpa/Folhapress
SÃO PAULO
"Não sou cristão. Mas, desde há muito, considero que não é possível compreender a vida social se não a partir desse aspecto religioso", diz Michel Maffesoli. O esclarecimento é necessário para quem comece a conhecer a obra do sociólogo francês por "A Palavra do Silêncio" (trad. Edgard de Assis Carvalho e Mariza Perassi Bosco, Palas Athena, R$ 38, 110 págs.), lançado no Brasil em setembro.
No livro, o professor emérito da Sorbonne, onde fundou e dirige o Ceaq (Centro de Estudos sobre a Atualidade e o Cotidiano), defende a ideia de que uma nova espiritualidade, que revalorize o rito sobre a palavra, é necessária.
Mas, embora tenha se debruçado sobre a religião ao longo de toda sua carreira, Maffesoli amplia o termo, falando das mais diversas formas de congregação --como as "tribos urbanas", termo cunhado por ele.
"Gosto muito de etimologia, religião vem de 'religare', religar. Sempre tentei mostrar que só era possível compreender a estrutura do 'viver juntos' compreendendo seus mitos, suas fantasias, tudo o que é seu imaginário. E a religião ocupa um lugar importante nesse imaginário."
Em passagem por São Paulo para lançar "A Palavra do Silêncio", Maffesoli falou à Folha sobre as diferentes formas de espiritualidade e congregação que vê no cotidiano.
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O sr. vem dizendo que nosso século verá um aumento da espiritualidade. Ela seria como o sr. defende em "O Silêncio da Palavra", um nexo mais direto, menos racional?"
Minha obsessão tem sido, ao longo dos anos, refletir sobre o fato de que estamos passando de uma época moderna a outra que, na falta de termo melhor, chamamos pós-moderna. O que chamamos de modernidade começa com o cartesianismo; prossegue com a Reforma Protestante e se funda, filosoficamente, no Iluminismo; conforma no século 19, os grandes sistemas sociais; e, no meu ponto de vista, dura até a metade do século 20.
Nesses três séculos e meio, o tripé da vida social é a emergência do individualismo, a prevalência do racionalismo e a ideia de progressismo. As novas gerações não creem mais nesse tripé e privilegiam a comunidade, o que em outra época chamei "tribo"; não mais o racional, mas o emocional; não mais o progressismo, mas o presente.
Para mim isso é a religiosidade juvenil. Eles não se reconhecem mais no materialismo econômico que se encontra tanto no que resta dos marxismos quanto entre os liberais. Por outro lado há, mais e mais, o apelo do qualitativo da existência, o fazer da vida uma obra de arte, dito à moda de Nietzsche. O fato de que não será mais o trabalho o valor essencial; de que coisas muito simples, os compartilhamentos, as novas formas de solidariedade, elementos de generosidade --elementos que são religiosos.
Parece uma perspectiva otimista.
Não gosto desse adjetivo que me atribuem muitas vezes, porque é um qualificativo moral, e não sou moralista. Sou realista. Meu trabalho consiste em ver. É isso a fenomenologia, para usar um termo um pouco mais chique. Sob essa perspectiva, muito concretamente, vejo que funciona. Não sei no Brasil, mas vejo na França compartilhamento de carro, colocação, coworking, "coetc.". Isso vem do latim "cum", com. Esse é o elemento empírico. É cada vez mais difícil viver nas megalópoles, das quais São Paulo é uma expressão; há uma necessidade de andar juntos contra a adversidade.
O sr. também vem falando, ao longo desses anos, que a emoção vem ganhando terreno sobre um projeto racionalista. Existe uma ligação entre essa prevalência do emocional e a ascensão dos populismos?
A intelligentsia --os jornalistas, os políticos, os acadêmicos-- tendem a ver o copo meio vazio. É um problema das elites, desconectadas do povo, pensar que tudo vai mal. Já deu para compreender que eu gosto de ver o copo meio cheio.
Tenho um livro, "Elogio da Razão Sensível", em que digo que não é o caso de separar a razão da emoção, que é uma questão de "holos", o todo. Que somos o conjunto. Não pretendo dar à emoção o lugar único, como não quero dar à razão esse lugar. A modernidade repousou sobre a ruptura. Tentei mostrar que deve haver essa sinergia.
Para mim, essa perspectiva complexa, de complementaridade, é da ordem da sabedoria popular. E tenho um pouco de medo dessas elites que, agora, vão tachar o povo de populista. Lancei um livro, "La Faillite des Élites" [a falência das elites, em coautoria com Hélène Strohl, recém-publicado na França], no qual tento mostrar que há uma estigmatização da palavra "populista" porque há uma espécie de incompreensão dessa sabedoria popular que faz a ligação entre o espírito e o corpo.
Escrevi alguns artigos sobre os "coletes amarelos", fui até eles ver o que estava acontecendo e vi que há uma espécie de sabedoria que não se reconhece mais no aspecto racional dos tecnocratas, dos políticos de direita ou de esquerda. Mas, ao contrário, há um retorno desse que é o fundamento mesmo da democracia, "demos" [povo].
O sr. já deu como exemplo desse retorno da emoção as manifestações de jovens no Brasil em 2013. Esses protestos acabaram reunindo aqueles que eram contra a política tradicional. Seguiram-se o impeachment de Dilma Rousseff e a eleição de Bolsonaro. Essa resposta emocional é desejável?
É difícil falar de Bolsonaro. Não sou brasileiro.
Ele está bastante presente no noticiário, mesmo na França.
Bom, vou ter que falar [ri]. O que me impressiona, no mundo todo, é que haja tal distanciamento entre as elites e o povo que cause a emergência dessas figuras --além de Bolsonaro, Salvini, na Itália, Trump, nos Estados Unidos, Boris Johnson, na Inglaterra.
Meu presidente é um homem inteligente. Não, é instruído. Tem essa capacidade de dominar as ferramentas econômicas e diplomáticas, mas nenhum contato com o povo. Esse é para mim o perigo. Como disse num artigo, esses democratas não são demófilos [amigos do povo]. Digo aos meus amigos brasileiros que têm de se questionar; por que vocês têm essa coisa terrível [ri], por que na França temos o que temos? É preciso ter a humildade de aceitar que não é "culpa do povo".
Em seu livro, o sr. critica o protestantismo, em que a palavra supera o rito e a liturgia. Mais de 30% dos brasileiros são evangélicos. Onde entram essas designações religiosas no quadro do retorno à espiritualidade?
O protestantismo foi a marca da modernidade e esse protestantismo é uma forma muito racionalista de disfarçar o ateísmo.
Costumo dizer que o Brasil é o laboratório da pós-modernidade, e também nisso o é. Vemos aqui um afluxo dessas denominações, por motivos individuais, como sair de vícios, mas também por um sentido de comunidade nada desprezível. Do meu ponto de vista, porém, é um combate de retaguarda. Acho muito mais interessante, no quadro brasileiro, o papel que têm o candomblé ou a umbanda. Tenho amigos da minha idade no Brasil, marxistas, que se tornaram pais de santo!
O culto do natural, do ancestral, o retorno ao campo seriam movimentos sociais que denotam uma busca por religação espiritual?
Quanto a esse retorno à "mãe terra" e outras manifestações, falo de uma "invaginação do sentido", por oposição à modernidade, em que prevaleceu o falo espermático. O sentido só se compreendia pela projeção fálica. Um dos meus livros, "Matrimonium", tinha como subtítulo "Pequeno Tratado de Ecosofia". Com "ecosofia" --"oikos", casa, "sofia", sabedoria-- faço a oposição da ecologia política. É a sabedoria da casa comum. Não se trata do homem mestre e possuidor da natureza de Descartes. É uma religiosidade ambiental que atinge uma enormidade de pessoas. As novas gerações, que vão garantir o futuro da sociedade, têm uma sensibilidade para esse tema.
Isso nos leva à ativista Greta Thunberg, para alguns uma figura messiânica. Essas figuras são necessárias hoje?
Pessoalmente não gosto dela, acho desagradável, agressiva. Mas o que ela representa é interessante. Cada época tem sua figura emblemática, é Durkheim quem diz. A figura emblemática moderna é o adulto sério, racional, produtor e reprodutor. O grande burguês. Uma das minhas hipóteses acerca da pós-modernidade repousa na figura de Dionísio, a criança eterna. É interessante que ela seja uma representação dessa criança.
O seu livro fala da necessidade do silêncio. Mas cada vez mais as pessoas dizem tudo o que pensam. Quando nos manifestamos nas redes sociais, buscamos uma tribo ou tentamos nos individualizar?
Auguste Comte --ele era de Montpellier, como eu, hoje é pouco lido, mas o li bastante-- definia a sociedade e a sociologia por uma fórmula em latim, "reductio ad unum", redução a um --a unidade do Estado, da identidade. Quando cunhei o termo "tribo" era uma uma provocação para mostrar como havíamos explodido essa unidade e que, de certa forma, já não prevaleceria o indivíduo, mas a pessoa plural. "Persona" significa "máscara", se sou uma "pessoa plural" tenho máscaras. Nas redes sociais, vivem-se essas máscaras. Então, de certa forma, no nível das redes sociais, que é para mim o nível do tribalismo pós-moderno, o que se dá é a aplicação do que diz Arthur Rimbaud: "Eu é um outro". Não é ou isso ou aquilo, é isso e aquilo. Não deixa de ter uma dimensão religiosa, no sentido de "religare", de estar em relação com o outro.
No livro, o sr. diz que só existimos pelo olhar do outro. Essa comunhão na alteridade encontra expressão em frases como "Eu sou Charlie" e suas variações. A palavra substitui o ato?
Acho que, nesse "eu sou isso, sou aquilo" o que importa não é o "isso" ou o "aquilo", mas o "eu sou". A modernidade tem como uma de suas marcas o encerramento em si mesmo. Todos conhecem o "penso, logo existo" de Descartes, mas poucos sabem o que completa a frase--"na fortaleza da minha mente". A fortaleza da mente foi a grande ideia do indivíduo moderno.
Quando digo "eu sou Charlie", "sou isso", "sou aquilo", é essa explosão de si no outro. Para o bem e para o mal. Na guerra santa islâmica também há a explosão de si no outro. Não estamos mais encerrados numa identidade pessoal. É o outro que me cria e, de novo, há nisso uma dimensão religiosa. Estamos passando da era do eu para a do nós. Voltando à sua questão sobre as denominações protestantes, para mim elas são o fim. Elas encerram. Que os políticos, como seu presidente, saibam se valer delas, é outra coisa.
Esse nós, porém, não é coeso.
Poderíamos terminar dizendo que estamos num momento em que há uma diferença entre a sociedade oficial e a sociedade oficiosa. A oficial é representada por pessoas da minha idade, acadêmicos, políticos, jornalistas, a intelligentsia, os que têm poder de dizer e fazer. Ela continua nos velhos caminhos modernos --individualismo, racionalismo, progressismo.
Quando olhamos as práticas juvenis da sociedade oficiosa --e, quando digo juvenis não me restrinjo às novas gerações, como disse antes, há esse mito da criança eterna--, essa sociedade está em desacordo com a oficial. Na França, um eleito, do presidente a um deputado, representa 12% da população. Muita gente não se inscreve para votar, 60% da população ficam de fora, a partir daí é que vem a divisão. Essa sociedade oficial é endogâmica. E há algo diferente em gestação, que para mim é o retorno do povo. A primavera do povo. E que vem sendo chamado de populismo --uma maneira de estigmatizar o fato de que esse povo já não se reconhece porque não é mais representado.
Retomando Hannah Arendt, ela dizia que, para que haja representação política, primeiro deve haver representação filosófica. Que eu tenha coisas a dizer que lhe agradem, que eu convença você e você me dê sua voz. Agora há essa espécie de secessão entre oficial e oficioso. Já deve ter dado para entender, o que me interessa é o oficioso.