terça-feira, 14 de maio de 2019

Estilo youtuber' de novatos incendeia Assembleia de SP e agrava guerra no plenário, FSP


Joelmir Tavares
SÃO PAULO
Levou pouco mais de um mês para acontecer o que se esperava da nova legislatura da Assembleia de São Paulo: a chegada de novatos balançaria estruturas de uma Casa acostumada à tranquilidade e historicamente alinhada ao Palácio dos Bandeirantes.
No dia 24 de abril, um discurso do deputado Arthur do Val, o Mamãe Falei (DEM), com menções a colegas de diferentes partidos, evidenciou o choque de comportamentos e de gerações, em um plenário que ganha contornos de guerra.
Nas últimas semanas, atritos entre parlamentares que iniciaram o mandato em 15 de marçoincendiaram o espaço, com bate-bocas quase diários, que já descambaram para ofensas e ameaças.
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Outro episódio barulhento, a acusação de transfobia contra Douglas Garcia (PSL) levantada por Erica Malunguinho (PSOL) em 3 de abril, também segue com repercussões e chegou até o Conselho de Ética e Decoro Parlamentar. O político estreante se tornou alvo de três representações por causa do que disse.
Douglas, que ficou conhecido como vice-presidente do movimento Direita São Paulo, falou no microfone que tiraria "no tapa" uma transexual que usasse o mesmo banheiro feminino de sua mãe ou sua irmã. Malunguinho, que é trans, o levou ao Conselho de Ética sob a acusação de quebra de decoro.
Os embates na Casa se multiplicaram na esteira do que veteranos da Assembleia chamam pejorativamente de "estilo youtuber" de novos parlamentares. Muitos deles tiveram ajuda das redes sociais para se elegerem e exercem agora o mandato mais inclinados a alimentar suas bases de seguidores do que a manter o até então habitual clima de cordialidade no plenário.
A alfinetada é uma indireta para Arthur do Val, integrante do MBL (Movimento Brasil Livre) que ganhou fama justamente com vídeos no YouTube em que faz perguntas provocativas a militantes e políticos de esquerda.
Foi mais ou menos o que ele executou quando subiu à tribuna para criticar os salários dos fiscais de rendas do estado, classe interessada em dois projetos que tramitam na Casa. Com papéis na mão, ele queria expor o nome de deputados que receberam doações eleitorais de agentes da categoria.
"Agora vai machucar. Eu quero saber quem é que vai ter a coragem de subir nessa tribuna aqui e falar os nomes dos caras e os valores que receberam", discursou, antes de levantar dúvidas sobre o posicionamento de colegas beneficiados diante dos projetos para ampliar a remuneração dos fiscais.
Dirigindo-se ao presidente da Assembleia, Cauê Macris (PSDB), que recebeu R$ 186 mil de 92 fiscais, disse: "E o projeto vai ser pautado agora, não é não, Cauê? Que coisa! Deve ser uma coincidência".
"Eu sei que eu vou arrumar briga com muitos de vocês aqui", continuou, dispensando as formalidades dos oradores no parlamento. "Mas saibam que de mim vocês nunca vão esperar outra coisa, senão coragem."
O novato separou o trecho da fala captado pela TV Alesp e jogou em seu canal de vídeos. Resultado: mais de 1,3 milhão de visualizações, uma série de elogios de apoiadores dele e uma enxurrada de ataques nas páginas dos deputados citados.
Marina Helou (Rede), uma das mencionadas, respondeu a Arthur nas redes sociais dela e depois foi à tribuna se justificar. Afirmou que recebeu, sim, uma doação de R$ 40 mil de um fiscal, mas o funcionário público em questão é o pai dela. A deputada antecipou que votará contra a demanda da classe.
"Ele [Arthur] fala que tem coragem de falar essas informações olho no olho, cara a cara, o que não é verdade. Ele nunca falou comigo, mal olha no meu olho. Isso para mim não é coragem, é covardia", retrucou ela.
O discurso-denúncia desencadeou reação imediata nos bastidores, com uma articulação para tentar coibir novas falas do deputado contra membros da Assembleia. Na semana seguinte, o colégio de líderes (encontro semanal com porta-vozes das bancadas) durou mais de três horas e foi tomado pelo assunto.
Decano, em seu oitavo mandato, Campos Machado (PTB) foi um dos que se insurgiram durante o encontro. Retomou a campanha para que a Casa aprove um projeto dele que proíbe lives (transmissões ao vivo em redes sociais) do plenário. Disse ainda que divergências políticas são salutares, mas que o respeito deve imperar.
Outros questionamentos foram feitos por participantes: Arthur vem usando o wi-fi (rede de internet sem fio) da Assembleia para gravar e divulgar vídeos? Ele pode reproduzir gravações da TV Alesp, protegidas por direitos autorais? Pode ser youtuber e deputado ao mesmo tempo?

CONFLITOS DE INTERESSE

Em meio ao debate sobre incompatibilidade de funções, Janaina Paschoal, que representava a bancada do PSL na reunião, lembrou outra situação da atual legislatura: se Arthur não puder ser youtuber e deputado, então o Legislativo deve debater também se Professora Bebel (PT) pode ser dirigente da Apeoesp (sindicato dos professores da rede estadual) e presidente da Comissão de Educação e Cultura da Assembleia.
A advogada eleita pelo PSL tem criticado o que considera um risco de instrumentalização da comissão. Segundo ela, materiais com logomarcas da associação de docentes e da CUT (Central Única dos Trabalhadores) foram distribuídos aos membros do grupo durante uma audiência.
Horas depois do fim da reunião dos líderes, a reportagem da Folha presenciou Bebel ir até a galeria do plenário e falar a um grupo de membros da Apeoesp que Janaina quer interferir na entidade.
"Eu conclamo vocês a irem ao gabinete da golpista [alusão ao papel da advogada no impeachment de Dilma Rousseff] para mostrar a ela que na Apeoesp quem manda é a Apeoesp", disse. A manifestação na sala de Janaina terminou em tumulto, com a polícia sendo acionada para conter os ânimos.
Abordada pela reportagem na ocasião, a petista desconversou: "É essa direita, coisas da direita". No plenário, alguns dias mais tarde, Teonilio Barba (PT) negou que a colega tenha incentivado os militantes a invadir o gabinete da adversária. A professora disse ainda que não houve violência ou vandalismo.
O embate entre Janaina e Bebel se acentuou nos dias seguintes, com as duas e seus respectivos aliados se revezando no microfone em trocas de ataques.
Ao sair em defesa da colega de sigla, Adalberto Freitas (PSL) afirmou no púlpito que Bebel age como o ditador venezuelano Nicolás Maduro, usando "o pessoal para invadir".
“No meu gabinete tem duas pessoas armadas que me defendem. Se forem lá, [...] se acontecer algum acidente nesta Casa, se eu defender a minha integridade e acontecer algum problema de morte nesta Casa, a culpa vai ser da senhora”, disse o deputado.
Parlamentares do PT enxergaram ameaça nas palavras dele e levaram uma denúncia ao Conselho de Ética. O colegiado, que é formado por nove deputados, ainda não analisou as queixas contra Douglas e Adalberto. Eles podem ser punidos com repreensão, afastamento e até cassação.

'DESRESPEITO'

"Muito se fala de nova política, mas o que percebemos são comportamentos antigos: preconceito, discussão, desrespeito", diz à Folha a presidente do Conselho de Ética, Maria Lúcia Amary (PSDB).
Para a tucana, que está no quinto mandato, a comissão tende a ganhar um protagonismo inédito nesta legislatura. "Temos que conter a incontinência verbal de alguns parlamentares. E acho fundamental que não haja corporativismo."
Políticos e assessores que conhecem bem a estrutura de poder na Assembleia descrevem a reação contra Arthur do Val como sintoma do espírito de autoproteção de uma ala dos deputados.
Ícone da velha guarda, Campos Machado refuta a ideia, dizendo que a intenção é tão somente preservar a compostura, já que "parece que o plenário virou uma arena". Ele relata que nunca viu "uma avacalhação tão grande" em 28 anos de Assembleia.
"É como disse Che Guevara: 'Hay que endurecerse pero sin perder la ternura jamás'", afirma, reproduzindo a frase que, em português, significa algo como "é preciso endurecer, mas sem jamais perder a ternura".
Procurado, Arthur do Val reitera que foi eleito justamente para questionar as práticas da Casa e diz que não teme as críticas dos colegas. "Eu quero causar. Não vou tirar o pé do acelerador. Só vou falar [na tribuna] se for para soltar uma bomba atômica e deixar todo mundo estarrecido ou para obstruir alguma votação."
"Nós que somos novos e estamos chegando vamos nos adaptar", diz o estreante Douglas Garcia. "Para que esse processo de adaptação ocorra, é claro que algumas discordâncias vão acontecer", segue o deputado do PSL. Para ele, Arthur fez algo "sensacional", demonstrou "uma coragem muito grande".
Entre uma briga e outra, a turma do deixa-disso tem entrado em cena para tentar estabelecer a paz. Deputados como Leci Brandão (PC do B) e Barros Munhoz (PSB) já ocuparam a tribuna pregando reconciliação entre os pares.
Incomodada com a improdutividade da legislatura, a novata Leticia Aguiar (PSL) pediu a palavra na semana passada e protestou: "Esta Casa custa caro para os cofres públicos. A gente precisa trabalhar, dar resultados para a população, aprovar projetos importantes. Enquanto fica todo mundo aqui brigando, as coisas não andam". Nesse momento, fez-se silêncio.
Colaborou José Marques, de São Paulo

DISCUSSÕES NO PLENÁRIO

Arthur do Val (DEM) x deputados de vários partidos (PT, PSDB, PSOL)
Estreante insinuou que deputados foram beneficiados com doações eleitorais de fiscais de rendas do estado para votar projetos favoráveis à categoria. Parlamentares se incomodaram e articularam "operação abafa"
Douglas Garcia (PSL) x Erica Malunguinho (PSOL)
Novato disse que tiraria "no tapa" uma transexual que usasse o mesmo banheiro feminino de sua mãe ou sua irmã. A deputada, que é trans, reclamou de preconceito e recorreu ao Conselho de Ética. Com a polêmica, ele revelou que é gay
Janaina Paschoal (PSL) x Professora Bebel (PT)
A primeira denunciou risco de instrumentalização da Comissão de Educação pela segunda, que também preside o sindicato dos professores. "Vossa Excelência quer aparecer", disse Janaina. "Eu não quero crescer em cima da senhora", rebateu Bebel
Adalberto Freitas (PSL) x Professora Bebel (PT)
Deputado comparou a petista ao ditador Maduro, avisou que tem "duas pessoas armadas" em seu gabinete para defendê-lo de invasões e falou que ela seria culpada por "algum problema de morte" na Casa. Bancada do PT fez denúncia no Conselho de Ética
Campos Machado (PTB) x Janaina Paschoal (PSL)
Deputado disse que a colega tem opinião volátil na Casa e que traiu o professor Miguel Reale Júnior, ao lado de quem foi autora do impeachment de Dilma Rousseff. Os dois discutiram, e Janaina pediu que ele não a cumprimente mais
Luiz Fernando (PT) x Carla Morando (PSDB)
O deputado disse que a tucana, mulher do prefeito de São Bernardo do Campo, Orlando Morando (PSDB), "não sabe o que ela faz no cargo que o seu marido lhe concedeu". Acusado de machismo por deputadas, ele se desculpou. Carla irá ao Conselho de Ética

As estrelas e a sarjeta, João Pereira Coutinho , FSP (definitivo)


Se cortamos no financiamento das artes, então estamos lutando para quê?


Um dia disseram a Winston Churchill que era preciso cortar os custos do financiamento das artes. A Inglaterra estava em guerra. A guerra é um negócio caro.
Churchill recusou. E terá respondido: se cortamos no financiamento das artes, então estamos lutando para quê?
O filósofo Peter Singer discorda do velho Winston. A propósito da reconstrução de Notre-Dame, Peter Singer e um seu discípulo, Michael Plant, vieram argumentar que o dinheiro doado pelos ricospara a reconstrução da catedral deveria ser usado para combater a pobreza. ("How Many Lives Is Notre-Dame Worth", Project Syndicate).

Ilustração
Angelo Abu
Nas 24 horas seguintes ao fogo, foi possível juntar € 1 bilhão em donativos. As estimativas dos especialistas apontam para uma reconstrução que custa € 300 milhões a € 600 milhões. Donde, quantas vidas de pobreza não poderiam ser salvas pela totalidade desse bilhão?
Curioso. Para uma alma não utilitarista (como a minha), esses valores seriam um bom pretexto para um compromisso: pagava-se a catedral e depois, com o dinheiro remanescente e com a concórdia de todos, era possível passar às questões humanitárias.
Pelos vistos, Singer e Plant não gostam de compromissos. É tudo ou nada. E a catedral? A catedral deveria ficar em ruínas para sinalizar a virtude dos contemporâneos.
Li o texto com interesse. Se o problema pudesse ser resumido a uma simples questão matemática —tiramos daqui, entregamos mais além— nada haveria a objetar. Infelizmente, o mundo é mais complexo do que Singer imagina.
Deixemos de lado algumas objeções básicas, como a ideia de que o dinheiro pertence sempre a alguém; e que esse "alguém" tem toda a legitimidade para o usar como entende.
Deixemos também de lado a evidência dolorosa de que, se o pensamento utilitarista de Singer pudesse ser aplicado retroativamente, as nossas cidades, as nossas bibliotecas, as nossas salas de concertos ficariam vazias como desertos.
O que me impressionou no texto foi a redução da nossa humanidade à sua dimensão mais básica. Ou, inversamente, a ideia de que a arte e a beleza ocupam sempre um lugar secundário em qualquer existência.
Fato: quando temos fome, os anseios da alma podem esperar. Mas, quando olhamos para a história da nossa civilização, as necessidades do corpo e da alma nunca foram entendidas como mutuamente excludentes.
O filósofo Roger Scruton, que vale sobretudo pelos seus textos sobre estética (opinião pessoal), explica isso em documentário que aconselho. O título é revelador: "Why Beauty Matters".
Durante 2.500 anos, a necessidade de beleza nunca esteve em causa: a beleza era o sinal de um mundo superior que se revelava na temporalidade dos homens; e, a partir do iluminismo, uma fonte de conhecimento que permitia aos homens serem melhores do que meras bestas.
Essa visão redentora do belo acabou por perder-se com o "desencantamento do mundo" moderno. Como explica Scruton, os valores passaram a ser justificados pela sua utilidade mais contábil. O que não é útil não vale nada. Consequências?
Sim, a escassez de beleza retira aos seres humanos uma das fontes mais importantes de consolação moral e espiritual. "Todos estamos na sarjeta", escrevia Oscar Wilde, "mas alguns de nós estão olhando para as estrelas." De que vale viver na sarjeta quando se apaga essa luz no céu?
Mas existe uma segunda privação: uma privação intelectual e até política. Quando tudo se reduz a mera contabilidade de secos e molhados, como suster conceitos intangíveis como "liberdade" ou "democracia"? Como alimentar qualquer ideal superior que precisa sempre da cultura e da arte para ganhar forma e voz?
Ironicamente, o utilitarismo progressista de Peter Singer é bastante semelhante ao filistinismo reacionário de quem defende menos verbas para cursos de humanidades e mais foco em áreas que geram "retorno imediato ao contribuinte".
Em ambos os casos, presenciamos o triunfo do utilitarismo raso, a defesa do rebaixamento do horizonte humano, a transformação do pensamento em adereço menor e até dispensável.
Usar 1 bilhão de euros para combater a pobreza teria efeitos imediatos mas circunstanciais, que se esgotariam rapidamente no tempo. Usar metade dessa verba para reerguer Notre-Dame é dar resposta à pergunta de Churchill. Se não defendemos o que de melhor os homens fizeram ou pensaram, estamos a lutar para quê?
A essa eu respondo: para nada.
João Pereira Coutinho
Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.
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