03 Outubro 2018 | 02h00
Foi no dia 17 de setembro: Fronteiras do Pensamento, Teatro Castro Alves, Salvador. Gilles Lipovetsky fala no palco para uma plateia atenta. Da minha poltrona ao lado do curador Fernando Schüler, acompanho o raciocínio claro do professor. Ele emprega alguns gestos com as mãos para enfatizar ideias e grada a voz sem extremos. Toda pessoa que fala dá uma dupla lição: o conteúdo e a forma.
O professor Gilles é inteligente e sua exposição é sedutora. Mesmo sendo muito culto, ele evitou excesso de referências bibliográficas. A exuberância erudita que trouxe a nossa conversa nos bastidores desapareceu diante do público. Lipovetsky segue um raciocínio entre a Sociologia e a Filosofia, sem deuses da mitologia clássica ou a chama flamboyant da evocação de saberes inacessíveis. Usa uma citação histórica, apenas, ao caracterizar parte do individualismo do consumidor contemporâneo: après moi, le déluge (“depois de mim, o dilúvio” era ditado comum na França do século 18 e tinha o sentido egoísta de exprimir um descaso com o que viesse depois da morte do falante).
Terminadas as falas, passamos a questões do curador e do público. Prossigo observando o raciocínio e a retórica. É quase um hábito profissional: imponho-me atenção para criar mais consciência. No caso de Gilles Lipovetsky, o conteúdo é a estrela e, provavelmente, o professor não acredita em sobrepor sua pessoa a sua fala. Se fosse uma estratégia, seria como a iniciativa do compositor Richard Wagner ao afundar a orquestra no fosso para que ouvíssemos apenas a música e que nada nos distraísse do principal. Lipovetsky é um intelectual com um raro dom de controle da vaidade.
Submergir a si para brilhar a ideia é um desafio. Padre Vieira, na mais célebre reflexão barroca sobre o ato de falar em público (Sermão da Sexagésima) acredita que a falha original de muitos oradores sacros é pregarem a si em detrimento da palavra de Deus. A dúvida é lícita: se eu sei da eficácia profunda da mensagem divina, o que poderia ser o obstáculo ao Reino de Deus? Nada que estivesse na mensagem, sempre no condutor dela.
Falar em público é uma dinâmica complexa e implica domínio de vários campos. O primeiro seria o foco da fala, as ideias, o raciocínio, a mensagem do que eu busco transmitir. Clareza e densidade são atributos desejáveis do exercício oral de transformar abstrações em argumentos demonstráveis. Se bastasse pensar bem, entregaríamos o texto dos pensamentos elaborados ao público que, lendo, teria todo o contato e conhecimento desejáveis. O texto deve virar fala e, aqui, muda-se o registro. Voz e gestualidade, pausas, ênfases com as mãos, direção do olhar, timbre, movimentação pelo palco e outros recursos fazem crescer a ideia, o texto, o discurso. A voz humana é, muitas vezes, relaxante. Quase todas as pessoas vão se entregando às poltronas de forma cada vez mais desconstruída e confortável à medida que a fala segue. A voz é opiáceo que, para não se tornar passaporte ao reino de Morfeu, precisa ser matizada. Uma dose de humor funciona como uma curva que obriga o motorista sonolento a engrenar outra marcha e, novamente, focar.
A recepção da fala tem destinatário. O público deve ser observado para avaliar a sinergia empática. Não se trata de preocupação de ibope. Penso mais em um tipo de prescrição médica: o fármaco deve ser o correto e a dosagem adequada. Excesso e falta são fatais e, repetindo velho jargão, a diferença entre remédio e veneno é a dose.
Conteúdo e teatralidade devem dialogar. O objetivo está no primeiro sempre, mas nós homens somos sensoriais e o segundo é importante. Eu trabalhei algum tempo em um centro de cursos livres como curador. Mesmo em uma cidade do porte de São Paulo, era complexo reunir as duas habilidades: bom conteúdo e capacidade retórica para torná-lo interessante. Havia pessoas com imensa bagagem cultural, domínio de conceitos, densidade de argumentos e tudo o que era esperado sobre o que vai dentro do cérebro. Não obstante, o brilho do pensamento era tornado opaco pela voz abafada, pela timidez enervante, pelo olhar baixo e pela obscuridade do tom. Sem carisma, sem foco ou fogo; eram professores/palestrantes que não apenas davam o já citado passaporte para o reino sonífero, porém a cidadania completa. São pessoas que ganhariam fortunas vendendo sua voz em podcasts para substituir os perigosos antídotos químicos para a insônia. Infelizmente, há intelectuais que aprisionam suas ideias em masmorras letárgicas ao darem uma aula ou encetarem uma palestra.
No outro canto do ringue, o modelo oposto cintila. São atores natos, apresentam com voz boa e se valem de gestos expressivos. Movem-se bem pelo palco, usam humor, fazem o corpo falar de forma eloquente. A plateia fica mesmerizada, gargalha e retumba em aplausos. Porém, na fumaça do desempenho está tudo. Inexiste fogo. Bruma pura. Como disse o apóstolo Paulo no seu trecho mais inspirado (I Cor 13), são como o bronze que soa e o címbalo que tine: som é alto, retumbante e vazio. Em tais casos, terminamos o encontro felizes com as piadas, achamos graça em tudo e o stand up foi eficaz. Nada restou nos sulcos do nosso cérebro. Catártico e vazio, o encontro tende ao esquecimento. Após 90 minutos da fala, estamos uma hora e meia mais próximos da morte.
Forma e conteúdo, habilidade intelectual e teatralidade: a combinação é uma pérola rara. Boa água em belo copo: o que eu vejo e o que eu sinto em harmonia com a beleza e a inteligência. O bom orador é um profissional escasso. A propaganda eleitoral comprovou minha tese. Precisão de gestos, densidade de ideias, domínio da voz, carisma e inteligência: a receita completa é elaborada e um achado. Por fim, existe o pior de tudo: o ser humano de ideias rasas e carisma nulo. Fuja dele. A vida é curta demais para desperdiçá-la. É preciso ter esperança.