O mecanismo da disputa
É lamentável o grau de obscurantismo a que podem chegar as patrulhas ideológicas
As críticas despertadas pela série de TV "O Mecanismo" —acusada, em especial por petistas, de adulterar a realidade histórica em sua reconstituição de situações ligadas à Operação Lava Jato— inscrevem-se no ambiente maniqueísta em que grupos antagônicos buscam estabelecer sua própria versão dos acontecimentos.
A obra suscitou as reações mais veementes ao transferir para um personagem identificado com o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) uma famosa frase que se sabe pronunciada, na realidade, pelo senador Romero Jucá (MDB-RR).
Trata-se daquela em que o político, em conversa telefônica gravada, defendia um acordo para "estancar a sangria", ou seja, impedir o avanço e as consequências das investigações policiais. Tal estratégia passaria pelo impeachment da petista Dilma Rousseff, consumado semanas depois.
Em meio aos ânimos exaltados pelo ano eleitoral e pelas tensões criadas em torno da possível prisão de Lula, a própria ex-presidente voltou à cena, desta vez na vida real, para criticar suposta tentativa da produtora da série, a Netflix, de interferir no curso do pleito.
Estamos diante —convém recordar o óbvio— de uma produção ficcional que, como tantas outras, não pretende retratar de modo fiel os fatos. Essa seria tarefa complexa mesmo para um documentário, dadas as múltiplas facetas e circunstâncias de um processo ainda em curso, do qual não se tem distanciamento histórico.
Pode-se considerar, a depender do ponto de vista, que o deslocamento da fala de Jucá foi infeliz ou questionável. As críticas são perfeitamente legítimas, e mesmo as campanhas pelo boicote ao programa fazem parte dos direitos de manifestação da esfera privada.
Controvérsias do tipo são comuns em sociedades democráticas, nas quais disputas por interpretações da realidade, mesmo no território refinado da historiografia, são permanentes e dinâmicas.
É lamentável, de todo modo, o grau de obscurantismo a que podem chegar as patrulhas ideológicas. À direita, como se viu em episódios recentes de ofensivas contra mostras que exploravam o tema da sexualidade; à esquerda, agora, com o abandono casuístico da defesa da liberdade artística que se fazia naquelas ocasiões.