terça-feira, 26 de dezembro de 2017

(In) Feliz Natal, Ruth Manus, O Estado de S.Paulo


Para falar a verdade, nunca fui muito fã da data. Não escrevia cartinhas para o Papai Noel


24 Dezembro 2017 | 02h00
Desde criança, ouço minha mãe dizer, ao tentar justificar o fato de não querer comemorar seu aniversário, que não gostava de alegria com data marcada. Nunca entendi bem o que ela queria dizer com essa expressão. Hoje, aos quase 30 anos, na semana do Natal de 2017, entendi.
Para falar a verdade, eu nunca fui muito fã do Natal. Não escrevia cartinhas para o Papai Noel, nem tive qualquer trauma ao descobrir que aquele senhor, na realidade, não existia. Meu grande, violento e irrecuperável trauma de infância foi descobrir que a Vovó Mafalda era homem. Isso sim foi um golpe duro. Já o Papai Noel nunca me foi uma figura tão cara.
Cresci com um certo sentimento de culpa por não esperar o Natal com uma alegria estonteante. Pelo senso comum, não há grande problema no fato de não se amar o carnaval. Nem é absurdo não ligar para a Páscoa ou para o Dia das Bruxas. Mas não ligar para o Natal sempre soou como um verdadeiro sacrilégio, como se fosse sinônimo de não gostar da família ou de não valorizar a figura de Jesus Cristo.
O Natal da minha infância era atípico. Uma grande festa com pais, irmãos, tios e primos no começo de dezembro. Essa festa eu adorava – e adoro até hoje. Mas na noite do dia 24 e no almoço de 25, meus irmãos iam embora para estar com o pai deles. Sobrávamos eu, meu pai e minha mãe. Meu pai perdeu a mãe aos 23 anos, às vésperas do Natal, e, obviamente, nunca mais olhou para a data com grande alegria. Era uma noite estranha. O Natal não era uma data esperada por mim. Pelo contrário, queria que ele passasse logo para que meus irmãos voltassem para casa. Anos depois, o Natal segue me parecendo um dia incômodo.
Tenho certeza de que não sou a única para quem o Natal é uma data confusa. A maioria das pessoas, nessa data, lida com culpas, angústias e ausências. A partilha das crianças por conta das separações, a falta daqueles que já morreram, os avós que lidam com a ausência dos netos, os adultos que aprendem a estar com os sogros em vez de estar com os pais, os pais que aprendem a abrir mão dos filhos que já cresceram. O Natal é bonito, mas é dolorido também.
Soma-se a isso essa doentia dinâmica dos presentes que se instalou nas nossas vidas. Tenho certeza absoluta de que Jesus, em algum lugar, fica mesmo muito chateado por ver seu aniversário transformado em uma data de consumo extremo, de crianças que abrem dezenas de pacotes sem valorizar quase nenhum, de adultos que se flagram angustiados com quanto dinheiro vão ter que desembolsar para satisfazer os requisitos mínimos que o comércio conseguiu nos impor.
É claro que é bom estar com a família reunida, comendo coisas gostosas. Ninguém tem dúvidas disso. O problema é ter que lidar com essa estranha logística natalina, cheia de compromissos, divisões, compras, pacotes e frustrações. No fim, percebo que, assim como eu, tem muita gente que só quer que janeiro chegue logo para que isso esteja resolvido o quanto antes.
Compreendo muito bem agora o que minha mãe dizia sobre não gostar de alegria com data marcada. Meu amor e minha dedicação pelas pessoas não se confunde com o Natal. Meu amor é sereno e minha dedicação é constante. Vejo muito mais amor no fato de eu estar trabalhando com alguma pressa para poder buscar logo minha enteada para passearmos de ônibus pela cidade do que no presente que comprei pra ela de Natal. Vejo mais amor pelos pais quando preparo o café da manhã, quando eles chegam a Lisboa, do que quando marco com eles o almoço do dia 25.
Não sei se é herança genética, mas realmente não sou fã da alegria, do amor, nem da oração com data marcada. O Natal é só uma data. O amor, a presença e a fé nos outros 364 dias é o que realmente conta. No fundo, todos sentimos uma certa culpa. Mais do que feliz Natal, feliz todo dia pra nós.

'Dum medium silentium', Carlos Heitor Cony, FSP ( muito bom!)

RIO DE JANEIRO - É um Natal triste. Podemos enfeitar as avenidas, as ruas, as casas e a nós mesmos. Ainda não saiu o saldo financeiro que beneficiou o comércio. De qualquer maneira, houve ceias, papais Noeis vagabundos andando pelas ruas e provocando o medo nas crianças. No fundo, o Natal transformou-se num produto comercial, embora tenha o mérito de reunir a família, os amigos e até mesmo alguns inimigos.
Para valer, o Natal é uma festa de meditação e silêncio. "Dum medium silentium... Foi num grande silêncio que Jesus nasceu". Esse silêncio só foi quebrado pelo coro dos anjos que cantavam a gloria de Deus e a paz aos homens de boa vontade.
Repito, é um Natal triste. Temos prisões, investigações e a constatação de que estamos cercados de ladrões. É um Natal triste. Os Estados Unidos e a Coreia do Norte poderão acabar com o mundo. É um Natal triste, não recebi o presente que julgava merecer.
Passei um Natal preso numa cela da rua Barão de Mesquita, que se tornou célebre durante os anos de ditadura. Não guardei o nome do coronel que comandava aquela parcela do Exército. Quase no fim da noite, a porta se abriu e dois soldados empurraram uma mesinha com a ceia de Natal da casa do próprio coronel.
Tinha de tudo. Rabanadas, castanhas, nozes, tâmaras, passas e uma garrafa de vinho. Foi um caso especial, talvez único. Embora preso, não tive um Natal triste como o de hoje.
Meu companheiro de cela era Joel Silveira, foi famoso correspondente da Segunda Guerra que abalou o mundo. Tínhamos a certeza de que, apesar de muito sangue derramado, teríamos paz, paz que infelizmente durou pouco.
Não importa. A esperança confirmava o sonho de um país melhor, que ainda não tivemos. 

Novo livro revela e discute questões sobre a vida sexual de garotas, FSP


Michael Todd
A jornalista e escritora Peggy Orenstein, que escreveu o livro intitulado 'Garotas e Sexo
A jornalista e escritora Peggy Orenstein, que escreveu o livro intitulado 'Garotas e Sexo'

Um dos assuntos que dominou o ano de 2017 na área da educação foi a "ideologia de gênero". A proposta aprovada neste mês pelo Conselho Nacional de Educação deixou de fora essa questão e o outra ligadas à de educação sexual –os temas não entraram no documento da nova base curricular homologada pelo MEC.
Em tempos como esses, surge o livro "Garotas e Sexo", da jornalista Peggy Orenstein, para fomentar o debate. A autora entrevistou, em cinco anos, cerca de 70 garotas com idades entre 15 e 20 anos sobre suas experiências sexuais e reflexões sobre o tema.
Apesar de a obra expor o contexto vivido por garotas americanas, existem muitas semelhanças com a realidade brasileira. Assim como aponta a psicanalista e escritora Regina Navarro Lins, que assina o prefácio, tanto lá quanto aqui a religião tem um papel influente na iniciação sexual dos jovens.
"Para os religiosos, sexo casual é considerado um pecado e existe uma conversa sobre abstinência", disse Orenstein à Folha. "Mas os jovens continuam fazendo sexo, muito sexo. O problema [de aconselhar a abstinência] é que isso só retarda o início da vida sexual dos jovens em comparação com quem recebe mais educação sexual, não os deixa mais seguros."
Segundo a autora, os jovens que optam pela abstinência, quando iniciam a vida sexual, apresentam mais chances de contrair doenças sexualmente transmissíveis e engravidar. "É uma ideia hipócrita, ninguém está protegendo esses jovens. Se quisermos que eles façam menos sexo e de forma responsável, quanto mais eles souberem sobre o assunto, melhor."
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O SEXO DOS JOVENS

27%
dos jovens entre 13 e 15 anos já tiveram relação sexual
59,7%
afirmam ter usado preservativo na primeira relação
60,3%
afirmam ter usado preservativo na última relação sexual
68,4%
dos jovens no 9° ano receberam informações sobre como adquirir preservativo gratuitamente
87,3%
afirmam ter recebido informações sobre DSTs e Aids na escola
79,2%
afirmam ter recebido informações sobre gravidez precoce
14,3%
foi o quanto aumentou a detecção de HIV/Aids entre garotas de 15 a 19 anos entre os anos de 2006 e 2016
de 2,4% para 6,7%
foi quanto o índice aumentou na mesma faixa etária para garotos; ou seja, triplicou
70%
das vítimas de estupro são crianças e adolescentes
36%
de todos os abortos legais foram de adolescentes vítimas de estupro
Fontes: Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar 2015; boletim epidemiológico do Ministério da Saúde; Ipea
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Por outro lado, mesmo com essas questões nos EUA, a gravidez entre adolescentes por lá tem diminuído. No Brasil, o índice se mantém alto e pouco mudou nos últimos 10 anos. Segundo o Datasus, a taxa de nascidos vivos de mães menores de 20 anos no país foi de 21,1% em 2007 para 21,2% em 2016.
Nos Estados Unidos, a mesma taxa caiu 44% entre 2007 e 2015 (segundo último dado disponível). Os bebês de mães adolescentes representam cerca de 6% do total.
Além do debate sobre gravidez indesejada e DSTs, Orenstein também levanta a discussão sobre qualidade do sexo feito entre os jovens, algo que não entra na cartilha da educação sexual escolar.
Poucas das garotas heterossexuais com quem ela conversou relataram ter tido orgasmos e muitas delas não conhecem o próprio corpo.
"Não existe uma conversa sobre prazer e isso é uma parte importante quando se fala de sexo", diz. "Nós esperamos que os jovens tenham uma boa experiência quando eles decidirem fazer sexo, mas acreditamos que isso vai acontecer de uma forma mágica."
Inspirada em sua própria experiência como mãe de uma adolescente de 14 anos, Orenstein escreveu "Garotas e Sexo" para tentar incentivar adultos a conversarem mais com jovens e não deixarem o papel de educar para a televisão ou para a internet
"Nós ficamos com medo de falar sobre sexo porque não sabemos a linguagem certa. O que acontece, no fim, é que os filhos crescem mentindo para os pais. É o que queremos?"
SEXY
No livro, a autora faz críticas à exposição de mulheres na mídia e nas redes sociais e à influência das estrelas pop no comportamento sexual das adolescentes. "A ideia que existe do que é ser sexy é muito limitada", opina. "Toda essa performance de parecer sensual na internet não faz com que as garotas tenham mais voz. Com frequência, a objetificação sexual está ligada a um entendimento menor das garotas sobre seus corpos e suas vontades."
Por outro lado, a jornalista vê com bons olhos a onda de campanhas contra assédio na internet, como a #metoo que revelou casos de abuso sexual na indústria do cinema. "As garotas estão vendo que não estão sozinhas, que suas experiências não foram isoladas, que existe uma cultura em torno desse tema da sexualidade e do sexo", afirma. "Tudo isso que vemos fez com que as mulheres despertassem em muitos aspectos, principalmente as mais jovens, que lideram os movimentos na internet."
Para Orenstein, existem duas razões pelas quais é inevitável falar sobre sexualidade sem falar de violência. A primeira está relacionada a um aspecto cultural polêmico. "As pessoas se sentem mais confortáveis em ver as mulheres sendo vítimas ao invés de protagonistas, seres sexuais que merecem sentir prazer e podem escolher fazer sexo."
Em segundo lugar, vêm os números. Ela aponta que há um alto índice de relatos de estupro em universidades. Em 2015, a Pesquisa da Situação no Campus da Associação de Universidades Americanas apontou que pelo menos um terço das alunas de graduação afirmam terem sido vítimas de contato sexual não consentido.
Enquanto isso, o Brasil registrou 135 casos de estupro por dia em 2016, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Em São Paulo, entre janeiro e julho deste ano, cerca sete registros por dia.
"Muitas garotas muito jovens relatam experiências de estupro e situações em que elas são coagidas. Não sofrer violência ou coação são exigências muito baixas para uma experiência sexual, mas é o que muitas garotas esperam", diz a autora.

GAROTAS E SEXO

AUTORA Peggy Orenstein
EDITORA Zahar
QUANTO R$ 49,90 (274 págs.)