O homem treme diante desses males que não o atingirão e chora os bens que não perdeu |
Ainda é inverno, na Europa ainda é verão, mas com a idade fui me libertando do tempo e das estações, há uma primavera no meio, mas já sinto aqueles "sanglots longs de violons de l'automne" do poema de Verlaine, afinal, o verão foi curto, a primavera, pouca, só o outono parece que vem para ficar e durar, além do inverno definitivo e inútil.
Como o atleta que não sabe se chega ao fim da corrida, como o pintor que ignora até que ponto aquela linha ou aquela cor o levará, primavera e verão são noviciados efêmeros da vida que afinal importará e que só será vida verdadeira quando abrirmos a lente grande-angular de nossas retinas e, desprezando detalhes, ou juntando-os para a perspectiva serena de nós mesmos, sentiremos os soluços longos de tudo o que passou e ainda não acabou, embora não possa ser resgatado. De que valeria o resgate se o chão dos parques e jardins estão atapetados de folhas que foram verdes e ainda não estão mortas, mas da cor de ouro, da cor dos cascos abandonados dos navios que não podem mais nem querem mais navegar.
Com suas âncoras cansadas, esperam resignadas, seu silêncio enferrujado, o grande mar que tantas vezes elas venceram, o grande mar que aos poucos fará parte delas mesmas, como as folhas mortas do outono voltarão à terra que não mais será nossa terra, mas aquilo que fomos, efêmeros embora.
Sempre lembro o amor outonal de Goethe por uma jovem. Somente a perspectiva do outono pode dar sentido a tudo o que aconteceu, a nós e a tudo. Aos 20, 30 anos, que nos importava a Guerra do Peloponeso, o ciúme de Otelo, o teto da capela Sistina, as sinfonias que Mahler ainda escreveria?
Em pleno verão de sua vida, quando escrevia o poema do médico senil que venderia a alma para possuir a juventude eterna, Goethe já começava a ouvir, distante ainda, os soluços longos do outono que se aproximava e do qual ele teve a perspectiva das folhas que formariam seu chão definitivo.
"Quando a imaginação desdobra as suas asas atrevidas, ela sonha com a eternidade em seu delírio; mas um estreito espaço basta-lhe quando um abismo devorou todas as suas alegrias e esperanças.
A inquietude aloja-se no fundo do coração e nele produz dores secretas: ela trabalha sem descanso e destrói o prazer e o repouso; assume mil fisionomias diversas: é ora o nosso lar, ora uma mulher, depois uma criança, uma casa, o fogo, o mar, um punhal, um pouco de veneno.
O homem treme diante desses males que não o atingirão e chora continuamente os bens que não perdeu." No tempo de Goethe, parece que ninguém fazia sinopses para poemas e romances, tudo vinha de repente, de uma perspectiva própria das "asas atrevidas da imaginação".
Os longos soluços, vindos do outono que se aproximava, davam-lhe o anúncio que não chegava a ser triste, mas final. Não podia terminar esta crônica sem voltar a Verlaine, em tradução de Guilherme de Almeida: "Estes lamentos dos violões lentos do outono enchem minha alma de uma onda calma de sono. E soluçando, pálido, quando soa a hora, recordo todos os dias doidos de outrora. E vou à toa no ar mau que voa: que importa? Vou pela vida, folha caída e morta".
E é por aí que, dos soluços cada vez mais longos e próximos, descubro não a tristeza do outono, mas a lucidez de sua verdade e de sua beleza.
PS: Se Guilherme de Almeida fosse apenas um tradutor, teria traduzido "violons" por "violino" -o que seria mais correto. Contudo, ele também era poeta -dos bons- e não perderia a oportunidade de obedecer ao ritmo do famoso verso que serviu de senha para os resistentes franceses da Segunda Guerra Mundial ficarem sabendo que os Aliados estavam desembarcando na Normandia, no início do que seria a libertação da França da ocupação nazista e, praticamente, do próprio fim da guerra.
De certa forma, o longo soluço de um outono para o tempo do homem em sua verdade final.