domingo, 9 de julho de 2017

Os novos cursos da USP, OESP

Na mesma semana em que anunciou a adoção do sistema de cotas para o próximo vestibular, o Conselho Universitário (CO) da USP aprovou a abertura de dois novos cursos: um de medicina, em Bauru, e outro de biotecnologia, no campus da zona leste, em São Paulo. Eles começarão a funcionar em 2018 e sua criação causou surpresa, já que a instituição está enfrentando graves dificuldades financeiras. Desde 2014, ela já adotou dois programas de demissão voluntária, que resultaram no afastamento de 3,5 mil funcionários. Também adiou a contratação de professores e não corrigiu os salários neste ano. Em 2016, a USP teve um déficit de R$ 660 milhões.
A justificativa para a abertura de dois novos cursos num período de falta de recursos foi de que eles resolverão dois problemas. O curso de biotecnologia, que será oferecido pela Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH), foi pensado para substituir o atual curso de ciências da natureza no período matutino, que tem um grande número de vagas ociosas, por falta de demanda. Segundo a EACH, o novo curso não acarretará gastos, pois não exigirá mudanças estruturais na USP Leste nem contratação de servidores. 
O problema mais complicado envolve a criação do curso de medicina em Bauru, que será vinculado à Faculdade de Odontologia (FOB). Ele será o terceiro oferecido pela USP. Os outros dois são os de São Paulo e Ribeirão Preto. Segundo a FOB, o campus de Bauru é o único que, nas duas últimas décadas, não ampliou o número de cursos e de vagas. Também alega que a abertura do curso de medicina foi a solução encontrada para manter o Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais, situado nesse campus, e que atende 70 mil pacientes por ano. Como a manutenção é cara, a direção da FOB conseguiu que a responsabilidade por sua gestão – e, portanto, por suas despesas de custeio – fosse transferida da USP para a Secretaria Estadual da Saúde. Em troca, a FOB comprometeu-se – com forte apoio das lideranças políticas locais – a pedir ao CO a criação de um curso de medicina na cidade. 
A decisão do órgão colegiado, contudo, não foi pacífica. De seus 97 integrantes, 18 votaram contra a criação desse curso. Segundo eles, como esse hospital terá de seguir as regras do Sistema Único de Saúde (SUS), cujos repasses estão defasados, ele não tem condição de ser financeiramente sustentável nem de manter a atual qualidade de atendimento. Alguns conselheiros reclamaram que a decisão foi mais política do que técnica. Outros defenderam que os recursos deveriam ser investidos no Hospital Universitário, situado no campus da Cidade Universitária, cujo pronto-socorro está atendendo apenas a emergências, por causa da crise financeira da USP, encaminhando os casos de menor gravidade para postos de saúde municipais e estaduais. Muitos dos professores que votaram a favor da criação do curso de medicina em Bauru condicionaram seu voto ao cumprimento do acordo que transfere para a Secretaria Estadual da Saúde a responsabilidade pela manutenção do Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais.
O que justifica essa atitude prudente é o receio de que possa se repetir, no campus de Bauru, o que já ocorreu com acordos semelhantes. Quando a Faculdade de Engenharia Química de Lorena foi incorporada à USP, em 2006, o governador Geraldo Alckmin prometeu aumentar o repasse financeiro para a universidade, mas não cumpriu a promessa. Quando a Unicamp criou o campus de Limeira, foi prometido um aumento nos repasses à instituição, o que também não aconteceu. 
Com a criação de um novo curso de medicina – cujos gastos de custeio são altos – num período de escassez de recursos, a USP parece ter cedido a pressões das lideranças políticas, em troca da promessa da Secretaria Estadual da Saúde – cujo titular é apontado como um dos candidatos de Alckmin à sua sucessão – de resolver os problemas financeiros do Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais.

Deixar os pais na casa de repouso é um 'direito do cidadão' que quer ser feliz - LUIZ FELIPE PONDÉ


FOLHA DE SP - 03/07

Acho a autoajuda e o politicamente correto duas formas de mau-caratismo. Minha crítica máxima aos dois nasce da minha certeza (tenho poucas) de que o sofrimento é fonte inexorável do amadurecimento, coisa rara em épocas retardadas como a nossa. O projeto contemporâneo é chegar aos 60 anos com cabeça de 15. Logo, retardo mental como projeto de vida. Uma conquista contra a inteligência.

Um dos temas prediletos do mau-caratismo é a chamada "terceira idade". Um mercado, claro, devido à longevidade da espécie nos últimos anos. Já se tratou a velhice como "melhor idade" também. Uma ofensa à experiência humana real.

A longevidade estendida é um dos casos mais claros da famosa ambivalência descrita por Zygmunt Bauman (1925-2017). Um bem evidente por um lado, um drama humano gigantesco por outro, sem solução, como toda ambivalência que se preze. O mais sábio dos meus amigos costuma dizer que uma das versões do inferno no futuro será a impossibilidade de morrer. Você vai querer morrer e não conseguirá.

Sem fazer referência necessariamente a toda gama de pessoas que vegetam por aí em leitos aparelhados com tecnologia de "primeira linha" para a humanidade vegetativa, a longevidade puramente fisiológica, muitas vezes acompanhada pela perda de funções cognitivas essenciais, atormentará o humano daqui para a frente.

A maravilhosa peça "O Pai", de Florian Zeller, com direção de Léo Stefanini, cujo elenco é encabeçado por Fulvio Stefanini (brilhante como o pai da peça, vencedor do Prêmio Shell de melhor ator em 2016), em cartaz no teatro Fernando Torres, em São Paulo, é essencial para pensarmos o tema da longevidade para além do marketing da longevidade.

Este é caracterizado por um discurso, como (quase) sempre no marketing, de facilitação da realidade em nome de um otimismo besta.

O impacto dos avanços tecnológicos, científicos e médicos criaram uma sobrevida na espécie humana jamais imaginada. Vivemos mais, mas somos cada vez mais solitários. Muito metabolismo para uma alma cada vez mais dissociada de si mesma. A peça tem, entre outras qualidades, a capacidade de levar você para dentro dessa alma idosa longeva e solitária, graças ao texto, às interpretações e à direção.

A solidão é uma epidemia contemporânea, em meio ao maior surto de histeria já enfrentado pela humanidade. Solidão e histeria, juntas, formam uma mistura explosiva em termos epidemiológicos.

Os avanços sociais e políticos, passo a passo com os avanços técnicos citados acima, produzem uma sociabilidade cada vez mais egoísta —o egoísmo é a grande revolução moral moderna. As pessoas emancipadas tendem ao egoísmo como forma de autonomia.

Inteligentinhos não entendem isso muito bem porque são as maiores vítimas do marketing de comportamento que se pode imaginar. Emancipados pensam em si mesmos, antes de tudo, como consumidores do direito ao egoísmo.

Sempre soubemos que os idosos sofrem na mão dos filhos homens e de suas mulheres, que quase nunca suportam seus sogros, que insistem em ficar vivos. As filhas, que quase sempre suportaram o ônus da lida com os pais, agora se libertam e também querem vida própria (claro que existem exceções ao descrito acima, que filhos, filhas, genros e noras ofendidinhos não fiquem nervosos em demasia).

As filhas também têm o direito de cuidar de si mesmas, é evidente. Deixar os pais na casa de repouso é um "direito de todo cidadão" que quer ser feliz sem ter que viver cuidando de pais que nunca morrem. Por isso que o mercado gerontológico só cresce.

Além disso, a crescente queda na natalidade, que caracteriza os mesmos países de crescente população longeva, só tende a agravar o quadro. Baixa natalidade e alta longevidade são ambas frutos da mesma riqueza instalada na sociedade: alta tecnologia e direitos sociais são manifestações diretas dessa riqueza. Filhos únicos serão idosos longevos solitários, dependentes de serviços que ocupam o vazio deixado pelas famílias.

Qual a solução pra isso? Não há. Um mundo de velhos solitários é o futuro de um mundo de ricos autônomos e amedrontados.

sábado, 8 de julho de 2017

Elogio da Corrupção, Unicamp








Foto: ReproduçãoUm costume de intelectuais, hoje sumido, reside na visita semanal às livrarias. Com o aumento dos textos eletrônicos e a crise dos impressos, a mais que agradável inspeção às prateleiras das lojas rareia. Não há mais tempo e lazer para conversas com os intelectuais (de variados setores acadêmicos ou mundanos) que traziam informações bibliográficas úteis ao passear olhos e mãos pelos volumes expostos. Recordo a excelente Livraria Duas Cidades, comandada por um discípulo do Padre Lebret, fundador do movimento Economia e Humanismo. Frei Benevenuto de Santa Cruz oferecia aos leitores de todas as crenças e ideologias as mais recentes e profundas análises sobre o mundo político, cultural, religioso, além de um diálogo seguro acerca de fonte e autores. No seu espaço pequeno, galáxias de saber tinham encontro marcado com pensadores ortodoxos ou heterodoxos, como Antonio Candido e outros.
Se andássemos um pouco mais na direção da Biblioteca Mário de Andrade (ela própria celeiro de intelectuais que marcaram a vida nacional, entre eles Mauricio Tragtemberg) entrávamos na Livraria Italiana, onde milhares de volumes traziam ar fresco para a pesquisa artística, histórica, filosófica. A viagem poderia terminar no Sebo do Brandão e outros estabelecimentos similares, próximos ao Largo de São Francisco. Ali, coleções inteiras de clássicos, românticos, modernistas e demais etiquetas do espírito eram oferecidas a preço acessível. O costume de frequentar os sebos marca o intelectual efetivo. Aqui mesmo, em Barão Geraldo, acompanhei um grande escritor em excursões rumo às prateleiras. O nome daquele precioso ensaísta é conhecido de toda a Unicamp: Eustáquio Gomes.
Mas antes de chegar aos sebos paulistanos era obrigatória uma parada longa na Livraria Francesa. Ali, em suas aleias superlotadas de livros, o mais substancioso da cultura humana era oferecido ao cérebro que desejava pensar com outros. Além dos proprietários, eles próprios bem formados acadêmica e humanamente, atendiam funcionários com mais erudição do que muito doutor de nossos dias. Daise, uma nipônica que domina com perfeição a literatura e as formas de pensamento histórico, antropológico, filosófico, ajudava muito na pesquisa de textos raros ou novos. Das sacolas daquela livraria vinha o bálsamo contra o psitacismo que sempre ameaça os debates no Brasil.
Numa visita assim à loja, situada na Rua Barão de Itapetininga, encontrei certo dia o fármaco para um dos piores males da vida nacional. Trata-se da enorme hipocrisia e fanatismo escondido na “luta contra a corrupção”. Sim, a ladroagem dos políticos e de seus cúmplices empresários é perene ameaça ao bem comum. Ela integra um sistema de poder que nos assola desde 1500. Mas um de seus efeitos colaterais é gerar supostos combates à prática corrupta, sendo eles mesmos uma corrosão virulenta.


Foto: Reprodução
Sebo em São Paulo, Marie-Laure Susini e manifestação contra corrupção | Fotos: cum-nice.org | Reproduções Google Images

O Brasil conhece espasmos de tal moralismo corrupto. Desde as campanhas da UDN (União Democrática Nacional) que moveu o fantasma do “mar de lama” contra Getúlio Vargas, até situações recentes, os implacáveis da ética vazia atacam adversários e governantes com lábios cheios de slogans em prol da moral pública. Mas na primeira ocasião em que têm oportunidade de chegar aos postos do Estado (nos três poderes), revelam imensa cupidez de riqueza oficial para seus cofres privados. Resulta que, assim como em todo fascismo, tais movimentos espasmódicos de moralidade semeiam ódios, intolerância, autoritarismo. Nas bocas dos moralistas se encontram os piores vitupérios contra a democracia, os direitos humanos, a tolerância face aos diferentes. Eles estão sempre dispostos a apoiar lideranças truculentas que prometem limpar a cena pública dos “corruptos”, por definição os que pensam de modo diverso ao deles.
Ah! Sim! O antídoto que encontrei na Livraria Francesa? Trata-se do livro editado em 2008 pela psicanalista Marie-Laure Susini com o título de Eloge de la Corruption (Paris, Ed. Fayard). Ali a autora traça a genealogia do moralismo que se traveste de política. Em primeiro lugar temos o magnífico tratamento de G. Orwell e seu ataque aos salvadores do mundo que desejam decidir o futuro das pessoas infernizando seu presente e distorcendo seu passado. Depois vem a análise do jacobinismo que teve Robespierre à frente do Terror “que a tudo purifica”. Susini desce até Tomás Morus e sua utopia de um Estado limpo, dentro e fora dos homens. E finalmente ela discute a semente da pureza ocidental, no pensamento de Paulo apóstolo.
Da pureza espiritual à pureza das intenções e da vontade, e daí para a pureza ideológica e de raça, o movimento é contínuo, de uma lógica sem piedade. Susini dá um tapa na face dos hipócritas que assumem o apelido de “incorruptíveis”, até o instante em que atravessam as praças e se instalam nos palácios. Num instante agudo de histeria coletiva brasileira, em que a propaganda dos “bem intencionados” tenta derrubar direitos de defesa e de pensamento plural, vale a pena consultar o volume daquela corajosa escritora. Em cada frase sua o leitor reconhecerá falas e atos, além das figuras, dos que hoje se arvoram em faxineiros da sociedade e de Estado. Falta no Brasil quem recorde aos referidos lavadores: medice, cura te ipsumPara bom entendedor, meia palavra basta.