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RESUMO O ensaísta indiano Pankaj Mishra sustenta que, embora o ódio ao diferente já tenha movido a política em outros momentos da história, eventos recentes revelam uma escalada da raiva nunca vista antes. Para ele, vários sinais indicavam que a violência se misturaria com a ascensão de novos demagogos, como Trump.Kyle Grillot - 4.fev.2017/AFP | ||
Apoiadores de Trump se manifestam, no aeroporto de Los Angeles, a favor do decreto que proibia a entrada nos EUA de cidadãos de sete países |
Em artigos e no livro "Age of Anger - A History of the Present" [Farrar, Strauss and Giroux, 416 págs., R$ 90,25; R$ 40,81 em e-book] (era da raiva, uma história do presente), ele repassa a trajetória da humanidade para argumentar que até houve outros momentos em que sobressaíam o ressentimento extremado e o ódio ao outro. Nunca, porém, na escala atual.
Membro da Sociedade Real de Literatura (Reino Unido) e colaborador dos jornais "The New York Times" (EUA) e "The Guardian" (Inglaterra), Mishra crê que parte da intelectualidade liberal se equivocou ao supor que o fim da Guerra Fria daria lugar a uma era de prosperidade econômica acompanhada de harmonia e tolerância globais.
Segundo Mishra, alguns eventos recentes ilustram a reação de parte da população mundial que ficou de fora do processo de globalização econômica e de avanços materiais: o "brexit", a eleição de Donald Trump nos EUA e a vitória do "não" no referendo sobre o acordo de paz na Colômbia.
Ele afirma que essa reação tomou formas que vão do nacionalismo radical ao terrorismo e que a escalada só tende a piorar. "Não há registro, em outros momentos da história, de que situações assim se acalmem por si", diz.
Além disso, o ressentimento presente é amplificado pelas mídias sociais, que potencializam o medo, passando a sensação de que "qualquer coisa pode acontecer a qualquer hora, em qualquer lugar e a qualquer pessoa".
Mishra falou à Folha, de Londres, por telefone.
Folha - O sr. diz que, depois da queda do Muro de Berlim, formou-se um consenso de que viveríamos em sociedades neoliberais, harmônicas e tolerantes. Mas já havia evidências de que nem tudo ia bem?
Pankaj Mishra - Sim. Uma das razões pelas quais nos sentimos hoje perplexos com o que está acontecendo se deve ao fato de que, até pouco tempo atrás, sentíamos que estávamos vivendo um sonho. Só que agora acordamos.
Acordamos e nos demos conta de que a história não acabou naquele momento, como muitos quiseram acreditar e alguns chegaram a afirmar [Francis Fukuyama, num ensaio de 1989 e num livro de 1992, sustentou que a evolução política teria como ponto de chegada a democracia ocidental liberal].
A história sempre esteve acontecendo; uma história de conflito e de violência, em que a demagogia e o nacionalismo de direita vieram evoluindo. Só que isso era jogado para baixo do tapete.
Tivemos guerras de limpeza étnica nos Balcãs –no coração da Europa–, genocídio na África, guerras tribais e a dissolução do Afeganistão. A história esteve ocorrendo como nunca.
Effigie/Leemage | ||
O ensaísta Pankaj Mishra |
Havia vários sinais de que as coisas ficariam muito piores para muita gente que não se sentia dentro desse sistema político ideal que alguns consideravam ter sido alcançado. E esses sinais mostravam que a violência se misturaria com a ascensão de novos demagogos.
No livro, o sr. compara esse sentimento de perplexidade que vivemos hoje com o que a humanidade atravessou na passagem do século 19 para o 20. Por quê?
Há diferenças de contexto, mas uma coisa se mantém. A ideia de que, se um líder surge, promete coisas e depois não as entrega, isso gera uma reação violenta.
Foi o que aconteceu no fim do século 19, quando a economia global se expandiu e os países começaram a se industrializar. As promessas eram de prosperidade coletiva, mas o fato é que as pessoas perderam seus antigos empregos.
O antissemitismo se aguçou e encontrou território propício para se disseminar devido à raiva das pessoas, do sentimento de terem sido deixadas para trás, de terem sido muito condescendentes com as elites liberais até que se viram diante da necessidade de colocar a culpa em alguém.
Esse alvo, naquela época, foram os judeus. Hoje, são os muçulmanos e os imigrantes.
Essa patologia vai e vem ao longo do tempo. Agora voltou com força, num momento em que vivemos uma crise econômica, em que moedas perdem valor, economias diminuem seu ritmo de crescimento, empregos desaparecem e o mundo do trabalho se transforma.
Nesse cenário, muita gente começou a pensar que só um número pequeno de pessoas poderá sobreviver nesse novo universo do trabalho, que esse grupo já está monopolizando as melhores oportunidades e que não irá compartilhá-las. Daí vem a raiva.
Isso ocorre de modo mais pronunciado em alguns lugares?
Sim, sinto que na América Latina, por exemplo, isso começou antes do que na Ásia e na África. Obviamente tenho visto isso também nos EUA e na Europa.
Como um mesmo fenômeno pode ocorrer ao mesmo tempo em vários lugares? O sr. relaciona, por exemplo, o "brexit", a eleição de Trump e a vitória do "não" na Colômbia.
Sim, o processo na Colômbia é parte disso. Não dá para confinar esse fenômeno a alguns países. De um modo geral, as eleições mais recentes mostraram pessoas fazendo escolhas políticas terríveis, que são emotivas e nascem do ódio.
Esse processo é global porque hoje habitamos um mesmo universo de ideias, ideologias e medos. Hoje isso tudo é mais compartilhado culturalmente do que antes. No passado, os países não viviam todos no mesmo mundo; hoje vivemos o mesmo presente.
Chegamos a um novo nível da globalização em que estamos vinculados não só econômica mas também emocionalmente, e essas emoções se traduzem em escolhas políticas subjetivas e imprevisíveis.
O sr. recebeu críticas dos que creem que, apesar da aparência de desorientação política geral, este é um mundo melhor que o do passado.
Este é um mundo melhor do ponto de vista material e em vários outros aspectos. Afinal, muitos direitos foram adquiridos, ainda que não por todos.
Mas também existem muitos erros nessa afirmação. O primeiro erro é achar que esse progresso material que vivenciamos é irreversível e inevitável. É possível que uma grande guerra ou uma grande reação de outra natureza interrompa esse processo subitamente.
Outro erro é acreditar que a satisfação das pessoas com suas vidas possa ser medida a partir dos avanços que a humanidade alcançou do ponto de vista material.
O liberalismo crê que há uma ligação direta entre o crescimento do PIB e a melhoria da qualidade de vida das pessoas, mas há outros fatores que contam para a satisfação de cada um.
Você pode ter mais dinheiro, mas o que acontece se viver numa cidade que é mal administrada? Onde a inflação devora seu salário, onde o preço das propriedades é alto, onde você tem um emprego que não lhe permite ter acesso aos benefícios que o aumento do PIB promove no país de um modo geral.
Você estará vivendo num mundo melhor, mas não há garantias de que sua qualidade de vida também será melhor. E pode ocorrer o contrário; você pode ter a sensação de que a vida, em muitos aspectos, é pior do que a dos seus antepassados imediatos.
Por isso é fácil cair no discurso de um demagogo que prometa a restauração de um passado que se considera brilhante –como o "vamos fazer a América grande de novo", de Trump.
Discorda de seus críticos, então?
Creio que os liberais tradicionais, cuja boca na imprensa são publicações como "The Economist" e "Financial Times" [ambas do Reino Unido], cometeram erros ao pedir reformas drásticas em partes do mundo seguindo o manual liberal, sem considerar aspectos locais.
Veja o que aconteceu na Rússia. Na tentativa de aplicar uma cartilha liberal de modo drástico, o país inteiro colapsou, a moeda, o modo de vida das pessoas. Devemos nos lembrar de que, muito antes de Trump, havia [Vladimir] Putin.
Como Putin surgiu? Como um homem forte, que se anunciava como alguém que restauraria a ordem. A mesma fórmula de Trump.
Não critico a agenda neoliberal, mas o fato de que aqueles que a celebraram como solução final não consideraram a reação dos não incluídos no projeto. E o que estamos vendo hoje é essa reação, muito violenta, porque vai de encontro não só ao saber das chamadas elites liberais mas também ao valor do conhecimento de modo geral.
A única maneira de entender por que Trump foi eleito é aceitar que muitas pessoas acreditaram nele porque o que ele diz soa para elas como uma verdade incontornável.
Por que diz que o impulso de um eleitor americano para ter votado em Trump é parecido com o de um jovem europeu que se integra às fileiras do Estado Islâmico?
Nos dois exemplos, temos pessoas com um mesmo sentimento de ressentimento e de raiva e a mesma necessidade de redenção.
O Estado Islâmico tem uma escala global jamais vista. Um jovem europeu se alista como resposta à frustração de suas expectativas e com a ideia de que isso lhe permitirá participar de um espírito coletivo de imunidade contra o sistema, além da possibilidade de compartilhar a raiva.
O mesmo ocorre com o eleitor de Trump. Trata-se de uma rejeição à política representativa. Essas pessoas perderam a fé. Então escolheram alguém que lhes promete demais. De novo, temos a mistura explosiva de quando surge alguém que promete muito e não entrega.
O que podemos esperar no horizonte é o surgimento de alguém ainda mais radical do que Trump. Ele pode ser apenas o princípio.
Não há evidência na história de que uma escalada como essa se acalme por si. Ela aponta para mais paternalismo na política, maior intolerância nas relações, mais agressividade nas sociedades. E, com isso, o comportamento político vai se transformando em algo irracional.
Não acredita que as instituições americanas possam contê-lo?
É tarde demais. Temos na Casa Branca um ególatra que ainda não enfrentou uma crise verdadeira. Quando isso acontecer, pode atuar de forma muito perigosa.
E você sabe como foi o início das grandes guerras. Sempre a partir de um evento que ninguém esperava, mas que já ocorria dentro de um contexto favorável.
Pense. O homem mais poderoso do mundo é um "troll" das redes sociais e ele tem acesso a armas nucleares. Que motivos tenho para acreditar que não vai usá-las?
SYLVIA COLOMBO, 45, é correspondente da Folha em Buenos Aires.