Eliane Caffé embarcou na terça, 14, para a Europa. Nas próximas duas semanas, faz um périplo por quatro cidades e festivais da França e da Suíça - Creteuil, Gênova, Toulouse e Lyon - mostrando seu longa Era o Hotel Cambridge, que estreia nesta quinta, 16, em São Paulo. Desde a sua apresentação no Festival do Rio, em setembro/outubro passados, Hotel Cambridge vem tendo expressiva participação em eventos de cinema no País e no exterior. Embora seja uma obra de ficção, não se assemelha a nada que o público ande vendo nos cinemas.
“Lili’, como é chamada, invade com sua câmera - e seu ator fetiche, José Dumont - uma ocupação urbana em São Paulo. Desde novembro de 2012, o hotel do título, na Avenida 9 de Julho, está sob ocupação pela Frente de Luta por Moradia. Gerido pelo Movimento dos Sem Teto do Centro, o imóvel foi recuperado - tinha acúmulo de lixo e focos de dengue - e hoje abriga quase duas centenas de famílias, incluindo refugiados, numa mistura de culturas, costumes, idiomas, comidas etc., de que o filme tenta dar conta.
O ineditismo dessa experiência - a arte abraçando a realidade, a ficção contaminando o documentário (e vice-versa) - tem repercutido mundo afora, e no País nem se fala. Para chegar à forma de seu filme, Lili frequentou durante dois anos a ocupação do Hotel Cambridge. E criou uma ficção - sobre dois refugiados que chegam ao Brasil, a São Paulo e, por não se enquadrar nos abrigos oferecidos pelo Estado, passam a viver com os brasileiros dos movimentos de sem-teto. São refugiados da Palestina, de Uganda, do Congo, da Colômbia, da Síria, entre outros países.
Todos tentam escapar da guerra, da morte ou da pobreza. Zé Dumont, que interage com todo mundo, diz que, de pobreza, ele entende. E Carmem Silva Ferreira, dirigente da FLM, que comanda o MSTC, arremata. “Somos todos refugiados. Refugiados da falta de nossos direitos.”
É uma parceria que está para comemorar 20 anos. Começou com Kenoma, em 1998. Depois disso, Eliana Caffé e José Dumont fizeram Narradores de Javé e agora Era o Hotel Cambridge. Entendem-se às mil maravilhas. Ela lhe oferece papéis cada vez mais complexos. Ele retribui fazendo, em Hotel Cambridge, a ligação da realidade com a ficção. Pois o filme, encenado numa ocupação real na cidade de São Paulo, é uma obra de ficção. Hotel Cambridge marca a maturidade de uma autora que se reinventa a cada trabalho.
‘Lili’, como é carinhosamente chamada, viaja nas lembranças. “Quando comecei a fazer cinema, a câmera era um totem, uma coisa sagrada. Entrava no set protegida, só o diretor de fotografia e a cineasta podiam tocar naquilo. E a bobina de filme tinha um tempo. Tudo tinha de ser muito planejado, e depois executado. Tudo isso mudou com o digital. Hoje há muito mais interação da câmera com a equipe. As próprias tomadas ficaram mais longas. Pode-se filmar horas contínuas.”
Era o Hotel Cambridge nasceu dessa nova realidade (ferramenta?) do cinema digital. Atraída pelo tema, a diretora visitou possíveis locações na cidade de São Paulo. Descobriu o Hotel Cambridge, na Avenida 9 de Julho, e outro prédio que foi reintegrado. O Cambridge nunca teve reintegração de posse. A câmera circula lá por dentro. Quando dramatiza, ficcionalmente, a reintegração, o filme usa as imagens do outro prédio. Os personagens são quase todos reais, transfigurados pela ficção. Três atores fazem a interação - Zé Dumont, Suely Franco e Carmen Silva. Como Zé, também Suely e Carmen têm história. Algumas das melhores cenas de Hotel Cambridge passam por eles.
Filmando, improvisando, definindo a linha de ficção de seu filme, Eliane Caffé descobriu e aprofundou os personagens. Dois terminaram por se impor - Carmen Silva Ferreira, da Frente da Luta por Moradia, que comanda o Movimento Sem Teto do Centro, sendo responsável pela ocupação do Hotel Cambridge, e Hamad Issa, o refugiado que se integrou à luta dos brasileiros. Hamad, Eliane conheceu num documentário de Samora Machel, feito na Jordânia, A Chave da Casa. Ao saber que ele estava no Brasil, no Rio Grande do Sul, a diretora iniciou os contatos que trouxeram o jordaniano para o Hotel Cambridge. “Ele é um homem de cultura, de muita vivência. E a Carmen é um fenômeno.”
E a diretora prossegue: “Tivemos uma pré-estreia do filme no começo da semana, no Cinesesc, e estava lá o ex-prefeito Fernando Haddad, cuja administração mapeou, no começo do ano passado, os mais de mil prédios sem função social na cidade. São edifícios ociosos, que permanecem vazios e não pagam impostos. Imediatamente, se formou uma rodinha ao redor da Carmen, logo que o filme acabou. Ela tem essa personalidade que agrega as pessoas. O filme mostra.”
Carmen diz que somos todos refugiados. Zé Dumont, com sua experiência da pobreza - “O que me salvou foi ter apreendido a ler e escrever, sozinho, na marra” -, concorda. “Na Paraíba, onde nasci, a gente sofria com a seca. Existiam os capitães do mato, como na época da escravidão. Aqui, é a experiência do capitalismo na cidade grande.” Um e outra ressaltam na ocupação a experiência da cidadania e, no filme, essa possibilidade de utilizar o cinema para alavancar a luta social.
A estreia de Era o Hotel Cambridge será marcada por uma série de ações. Tudo para chamar a atenção da sociedade. A própria diretora se surpreende: “Quando iniciamos esse projeto, eu não tinha ideia da amplitude. Ele cresceu muito, e as pessoas cresceram com a gente. Somos um coletivo compondo uma força-tarefa. Existe uma pauta que pode ser política, reivindicatória, mas o filme é um filme, uma ficção. É para ser visto e fruído esteticamente.” Um típico exemplo dessa fruição é a participação, via Skype, da artista colombiana Lucía Pulido. “O filme é de baixíssimo orçamento, não poderíamos bancar a vinda dela, mas as trocas de informações viabilizam a presença do Skype no filme e, através dele, que a Lucía cante para a gente. Ela foi de uma generosidade extrema. E canta lindamente. São esses momentos mágicos que fazem a diferença.”
Livro de Carla Caffé disseca o processo
Irmã da diretora Eliane Caffé, Carla Caffé tem dado considerável contribuição a seu cinema. Em Narradores de Javé, incorporou a reciclagem de lixo ao projeto e, dessa forma, alterou a dinâmica da cidadezinha em que o filme foi feito. Em Era o Hotel Cambridge, seu trabalho como diretora de arte levou à criação de oficinas que integraram ainda mais o coletivo reunido naquele espaço. Tudo isso foi registrado e contado num livro que acaba de sair pelas Edições Sesc.
Na apresentação, a arquiteta e urbanista Raquel Rolnik diz que, ao observar ‘invasões’ e ‘invasores’ de perto e com delicadeza, como faz a lente do cinema em Hotel Cambridge, outras imagens e narrativas são reveladas. Abre-se a grande multiplicidade de histórias que levou tanta gente ao mesmo local. É disso que o livro dá conta.
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