terça-feira, 7 de março de 2017

Caetano VELOSO Um voto - revista Fevereiro ( para ler depois)


Votei pela primeira vez aos 18 anos. No Marechal Lott. Meu pai era um funcionário dos correios que se sentia estimulado a trabalhar com ardor e honestidade justamente pelo caráter público do serviço. Tendia à esquerda mas desconfiava de Stalin. Entendia que Getúlio era importante por causa das leis trabalhistas mas abominava Filinto Müller. Manteve um retrato de Roosevelt na sala por alguns anos. Lott ter resistido à tentativa de golpe quando da eleição de Juscelino era motivo suficiente para que meu pai votasse nele. Mas eu não precisava ouvir suas opiniões para escolher candidato: Jânio me parecia algo grotesco, um comediante desprezível que apontava para o vazio. Eu me perguntava como havia gente disposta a votar nele. Décadas depois, ouvi narrativas fascinantes de cenas do sucesso paulistano da campanha de Jânio feitas por Jorge Mautner, cujos gestos e entonações já implicavam complexas análises. Mautner estava longe de ter por Jânio o desprezo simples que eu lhe dedicava. Filho de refugiado judeu da Áustria nazificada, ele sentia um sombrio fascínio pelas figuras políticas que crescem com aparência ridícula. Mas eu próprio, ainda hoje, tenho a ingênua certeza de que personalidades como a de Hitler nunca pareceriam merecer meu respeito, mesmo que eu tivesse nascido e crescido em seus países. Trump ou Putin, Berlusconi ou Kim Jong-Un. Aos 18, eu pouco sabia de Lott. Mas era suficiente que meu pai mostrasse confiança nele e que ele fosse o oposto de Jânio como tipo humano para que eu cumprisse com alegria o dever de votar.

Numa conversa sobre as habilidades musicais de Alexandre Pires, ainda na época do grupo Só Pra Contrariar, João Gilberto me perguntou se eu já tinha ouvido a mãe de Alexandre cantar. “Ela canta como uma americana” ele dizia com entusiasmo. “Como uma americana” significava ser dona de afinação perfeita, ter um sentido rítmico rico e visceral, e uma percepção harmônica espontânea. As conversas de João abrem amplíssimos espaços mentais. Dizer que a mãe de Alexandre cantava como uma americana era frisar que o adestramento musical e a ambição estética foram desenvolvidos ao mais alto grau no ambiente da música popular dos Estados Unidos. Mas ecos de outras afirmações feitas por João a esse respeito, e em contradição com essa, punham o julgamento numa perspectiva inaugural. Anos depois, uma declaração minha, feita em entrevista, de que a música popular americana era a melhor do mundo provocou revolta em Hermeto Pascoal. Este me desqualificou como músico por causa dessa fala. Claro que ele tinha razão ao avaliar minha musicalidade. Mas respondi que não era eu quem dizia aquilo, a própria música de Hermeto, tão grandemente formada no ambiente jazzístico, é que o atestava. Pois bem, toda essa discussão ? e sua superação ? estava já embutida no comentário de João sobre a mãe de Alexandre. Ele falava como que com uma autoridade vinda de um futuro grandioso, do Quinto Império de Vieira, da Era de Aquarius, do mundo aberto ao Ser do Heidegger de Luiz Carlos Maciel. E no entanto estava ali, pedestre, humilde, fosco.

Os programas de calouros do século 21, reality shows eivados de sentimentalismo e suspense forçado, parecem negar a força dessa tradição de adestramento e inventividade estética, expressões da energia histórica dos EUA. Talvez eu esteja me arriscando aqui a desprezar o que acontece de invenção no ambiente contemporâneo da indústria da música no mundo rico de fala anglo-sax?. D’Angelo, Bjork, James Blake, Kanye West, Joanna Newsom, tantos parecem provar que os arreganhos dos reality são parte saudável do equilíbrio de forças que propicia tal opulência. Por outro lado, a crítica frankfurtiana da indústria cultural há muito descreveu o que parecia riqueza como prova de decadência da vida humana no estágio avançado do capitalismo (o que, como notou Safransky, aproxima, de modo no mínimo irônico, Adorno de Heidegger). Isso poria já a canção americana dos anos 1930 no mesmo nível de American Idol. Pessoalmente, nunca aderi ao pessimismo de Adorno, embora ache mais graça e sentido em suas caricaturas das pretensões do jazz do que são capazes mesmo seus discípulos. E essas caricaturas iluminam minha apreciação de truques rítmicos do hip-hop americano de hoje, mesmo ? talvez principalmente ? nos artistas que mais me atraem e encantam. De qualquer forma, detecto diluição da potência nas firulas e gritos premiados do The Voice. João Gilberto, que estava celebrando justamente características semelhantes no canto da mãe de Alexandre Pires ? ao mesmo tempo vendo ali exemplo de quando grito e firula são parte integrante de estilos nobres, como os de Sarah Vaughan ou Aretha Franklin, e a importância disso ter sido atingido por uma brasileira ? , relançava assim seu programa grave de concentração que dá à nossa música sua responsabilidade real.

Se não fosse uma blasfêmia parodiar “Paratodos”, de Chico Buarque, canção que já me fez chorar quando a ouvi, ainda inédita, na casa do seu autor ? e voltou a me levar às lágrimas no final do recente documentário feito por Miguel Farias sobre ele ? esta seria minha versão de sua primeira estrofe: 
O meu pai era baiano
Meu avô era baiano
O meu bisavô, baiano
Meu tataravô, por certo
E meu mestre soberano
É o baiano João Gilberto.

João Gilberto tomar o lugar de Tom na minha versão cômica de “Paratodos” é coerente com a escolha de João como núcleo do fenômeno histórico que foi a bossa nova. Jobim é, como escrevi num release para um disco seu, o sol da nossa música. Ele a enriqueceu com o mais exuberante conjunto de canções, fez a mais completa homenagem à tradição de Pixiguinha, Noel e compositores das favelas e dos carnavais, assim como dos sertões do Nordeste, enquanto simultaneamente enriquecia a linhagem histórica nascida no impressionismo francês e cultivada na moderna canção americana. Escreveu os mais belos e econômicos arranjos para os sambas que João gravou, criando peças de câmara que eram ao mesmo tempo exemplos de singeleza popular. A sua é a obra de um gigante que não tem competidores. Minha eleição de João Gilberto como figura nuclear vem do fato de este ser, antes do sol, a escuridão que precede a criação da luz e o momento em que esta surge. Ele é punk, é contracultural, é rock, é Webern, é rebeldia permanente. Nada se iguala à produção cancional de Tom Jobim, mas João ensinou marxismo a Sérgio Ricardo e me pediu para entender os olhos azuis de Garrastazu Médici. Como disse Memélia, a mãe de Chico, os outros fingem que são malucos, mas João é maluco de verdade. Foi sua voz que ouvi e que mudou a minha vida. A mesma voz mudou a vida de Tom Jobim. Não há escolha que eu faça que não se funde na memória do momento dessa mudança. Eu já tinha ouvido João quando votei em Lott.

Quando iniciei os ensaios para Dois Amigos, Um Século de Música, pensei que ter aceito o convite do contratante europeu para fazer uma turnê ao lado de Gil fosse ser, afinal, mero caça-níquel: repertório redundante e absoluta impossibilidade de eu tocar um violão ao menos aceitável ao lado do meu colega. Precisei enfrentar umas quatro apresentações para admitir que havia um pouco de “Paratodos” no nosso show. Um pouco é muito. Hoje, há o sentimento de que o Brasil está acabando, de que não se pode suportar outra década perdida, de que descer tanto quando se esboçava aprender a subir é prova de que nunca sairemos do buraco em que sempre estivemos. O cu do mundo. Nossos shows nos diziam que há uma luz mais alta apontando para outras possíveis visões. Gil tinha saído da turnê intitulada Gilbertos Samba, em que retomava o repertório de João Gilberto, e eu resistia a que ele parasse com ela. Eu queria que o mundo o visse tocar “É Luxo Só” ou “Você e eu” com os estudos do ritmo do samba feitos por Domenico Lancelotti e Bem Gil em aparatos eletrônicos ? e a inspiração harmônica do magistral garoto Mestrinho no acordeom. Bom, o show chegou ao menos aos Estados Unidos, onde, no New York Times, foi criticamente consagrado. Mas Gil queria fazer o que o contratante europeu propunha. Honrava-me estar perto dele. Mas comecei hesitante. O que aprendi com ter feito o Dois Amigos não tem preço.

O disco Gilbertos Samba, que motivara o show de mesmo nome, dizia-se homenagem a João Gilberto, mas no show é que se percebia com clareza que Gil sendo mais intensamente Gil reafirmava João. Diante do concerto o próprio disco ganhava esse sentido na memória do ouvinte. No nosso Dois Amigos, era o Gil pós-Gilbertos que se reunia a mim. Nossa luz e nosso breu vêm muito de sermos baianos. Neste momento brasileiro, os conseguimentos dos membros do grupo que chegou ao Rio na esteira da substituição de Nara Leão por Maria Bethânia no espetáculo Opinião têm tido muita importância na difícil conformação da minha visão das coisas da política e da história.

O show Estratosférica, que Marcus Preto concebeu para Gal Costa, com a banda dirigida pelo baterista Pupilo, é um acontecimento que enche a alma e mostra ser a história brasileira embolada mas teimosa. Vim da Bahia com Bethânia, Gal e Gil na cabeça e no coração, como promessas de transformação nacional. Se eles estão mostrando forças e nenhum sinal de desistência, concluo que o Brasil é viável. Estas são escolhas íntimas: eles são partes do meu corpo. Mas fenômenos como o do baile de favela, da afinação e propriedade de artistas como Pablo ou Anitta, do ciclo de filmes pernambucanos como O som ao redor e Boi Neon, assim como a Regina Casé do profundo Que horas ela volta, de Anna Muylaert, me dizem a mesma coisa.

Ver a Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira voltar a ser campeã num desfile que homenageava Bethânia pôs em dúvida a constatação de que nenhuma força nos salvará. Há anos que sonho em fazer uma antologia da axé music. Outro dia, conversando com um amigo economista, perguntei por que não se fazia um estudo da economia do carnaval baiano. Há ali um exemplo de empreendedorismo vinculado a uma expressão estética que representa algo essencial na cultura brasileira. Numa canção que compus há mais de 10 anos, digo:
Comprar o equipamento e saber usar
Vender o talento e saber cobrar, lucrar.

Vi Moraes Moreira opor-se ao axé dizendo que, com este, ele e outros foram atropelados por empresários que impunham seus artistas às emissoras de rádio através de jabá. Isso se parece com o que ouvi de vários compositores (Ary Barroso à frente) nos anos 1950 a respeito do carnaval carioca. “Vender o talento e saber cobrar, lucrar” é verso que canto em tom de oração: nenhuma aceitação de desonestidades mas o movimento de intensificar a luz do que é luminoso. Ou será que um nietzscheanismo de rapina é que surge aqui? Seja como for, eu não acho que seria melhor se Harmonia do Samba, Daniela Mercury, Ivete Sangalo ou Carlinhos Brown não tivessem surgido. Moraes deveria antes orgulhar-se de ter criado o modelo que deu nisso tudo. Mas é bom que ele resista: a pendenga dá mais nervo à música carnavalesca da Bahia. A Mangueira é algo maior do que os jogos de poder e de grana que se dão nas entranhas do carnaval carioca. Ter vencido com Bethânia (a deslumbrante e digna Bethânia, artista e mulher honesta até a medula) diz que podemos afirmar o Brasil. O que em alguns blocos baianos são as antigas cordas, se transformou, no Rio, em muralhas de concreto que separam os que podem pagar muito dos que não podem pagar nada para ver as escolas. Mas não desejo que se negue Mangueira nem Darcy Ribeiro nem Oscar Niemeyer nem Brizola. A afirmação nacional importa. Briguei contra os nacionalistas dos anos 1960 porque eles eram defensivos. A atitude que aprendo com o Psirico me leva a dizer que Liv Sovik, ao escrever “têm razão os que contrastam os EUA com o Brasil, valorizando o quadro brasileiro: para os brancos, especialmente, ele é muito melhor”, soa para mim como alguém trabalhando para a CIA. Roberto da Matta arremata que somos tão preconceituosos que nunca precisamos de “rotinas segregacionistas”. Os colonizadores ingleses dos impressionantes Estados Unidos convenceram-no de que, diferentemente de nós, tiveram de esforçar-se para produzir algum racismo. O nosso é espontâneo.

Quando votei em Lott eu já achava que as questões de raça teriam de ser levadas em conta quando se quisesse enfrentar a injustiça social. Assim como as de gênero: eu tinha lido Simone de Beauvoir e O segundo sexo articulava as ideias sobre a opressão da mulher que me surgiam na mente desde a pré-puberdade. E o Sartre do Orfeu negro. Quando conheci Gil, em 1963, impressionou-me a total ausência, nele, de qualquer traço de pensamento ou sentimento a respeito da situação do negro entre nós. Eu amava e até invejava sua percepção naturalmente não racialista da vida. Mas sentia também uma ponta de impaciência.

Jânio venceu, fez muita papagaiada, renunciou, e veio a ditadura.
Quando voltamos a poder votar, escolhi Brizola. Ele tinha voltado do exílio falando nas “perdas internacionais” e citando não sei que exemplo da Austrália. Parecia trazer o que o PT de Lula não apresentava: uma concepção da luta contra a desigualdade sem restringir-se à visão dos grupos organizados do operariado do ABC paulista e dos intelectuais da USP. Não que a criação do PT, exatamente nesses ambientes, não me empolgasse: cheguei a usar a estrelinha na lapela. Mas nunca entrei em nenhum partido. O que me parecia óbvio é que o surgimento do PT modernizava a cena política nacional. Dentro desse mundo renovado é que eu queria ver Brizola atuar. Collor era uma versão nova dos histriônicos de que sempre desconfio. Fiz campanha para Brizola e vi que Collor preferiria concorrer com Lula no segundo turno: com seu eleitorado restrito aos sindicatos, aos jovens das grandes cidades e a senhores letrados, ele seria mais fácil de ser vencido do que Brizola, com sua ameaça getulista de reunir áreas mais amplas. Quando abriu-se o segundo turno, voltei-me para Lula e participei de comício na Praça da Apoteose. Foi a primeira vez que votei nele. Collor elegeu-se, sofreu impeachment, Itamar Franco o substituiu e convocou a equipe econômica que derrotaria a inflação.

Como tantos brasileiros, votei em Fernando Henrique. Ele era o príncipe de Glauber Rocha, um acadêmico de esquerda que dera o braço a Lula na luta contra o regime militar. A figura de Lula deveria, para mim, estar sempre no horizonte, sua presença sentida pelo todo da sociedade. Mas, diferentemente dos esquerdistas que votavam nele, eu tinha perdido a confiança nas revoluções que prometem mudar tudo de uma vez: elas levavam a autocracias totalitárias.

Nos anos 1980, José Almino mencionou um Unger que escrevia na Folha. Ele era também um Mangabeira, ou seja, baiano em alguma medida. Zé queria me atrair para o autor. Fui ler um artigo seu na Folha e, desde então, meu interesse por ele só fez crescer. O artigo chamava a atenção justamente para as limitações do PT por ser um partido das minorias trabalhadoras organizadas. O PDT de Brizola teria abrangência maior. Passei a citar Mangabeira em todas as entrevistas que dei. As referências a seu nome nunca eram reproduzidas quando as entrevistas eram publicadas. Isso durou mais de década. O que me irritou e fez aumentar minha curiosidade pela figura do articulista. Fui buscar coisas dele ou sobre ele. Devagar. Por causa de minha teimosia em citar seu nome, Mangabeira me procurou. Quando tentou uma pré-candidatura à presidência, gravei uma curta fala para anúncio na televisão. O que me interessa em Mangabeira é sua crença num experimentalismo que realize revolução sem trauma bélico, num gradualismo que não quer dar uma face humana ao capitalismo liberal mas transformar instituições de modo a superar a opção entre render-se aos especuladores financeiros ou aos crentes no determinismo do marxismo vulgar. E sua certeza de que o Brasil é oportunidade para tais experimentos. Ele é a única figura da esquerda que parece compreender a importância do liberalismo político sem desvinculá-lo totalmente do liberalismo econômico, como faz Bresser Pereira em seu último livro, de modo didático mas excessivamente simplificador. Mangabeira é o único esquerdista brasileiro que cita John Stuart Mill. Seu texto ministerial sobre economia, em que fala de empreendedorismo de vanguarda, mostra como ele pretende ver a energia do povo brasileiro sendo canalizada de modo a gerar ondas de criatividade que levem o Brasil à grandeza. Ele é também a única voz nas esquerdas a perceber a importância do crescimento das igrejas neopentecostais. Isso coincide com minha percepção de que os evangélicos ensinam as pessoas comuns a nobreza da prosperidade: trazem uma lição liberal. Descartar as contribuições de Mangabeira me parece mais um sintoma do aspecto doentio de nossa vida intelectual.

Votei em Marina Silva e declarei o voto. O projeto PT dava mostras de esgotamento. Marina, com uma trajetória de esquerda autêntica e coerente desde o começo, uma figura de mulher cafusa, ligada às lutas ambientais desde sua colaboração com Chico Mendes, evangélica, que cresceu analfabeta mas estudou com esforço e inteligência notáveis, é uma personalidade que o Brasil tampouco tem o direito de descartar. Conheço a divergência entre sua posição e a de Mangabeira. Quando este publicou “O que a esquerda deve fazer”, participei do evento de lançamento em São Paulo. Eduardo Gianetti, que foi assistir à conversa pública de divulgação da obra, queixou-se comigo depois: “Pena vocês não terem aberto a discussão para a plateia: eu perguntaria por que não há uma única menção à questão ambiental no livro do Mangabeira”. Achei e acho pertinente a pergunta de Gianetti. Mas Mangabeira é indispensável. E quando surge uma orientação dele a respeito de como deve se comportar um governo brasileiro em relação ao problema ecológico, como aconteceu em seu artigo sobre a crise publicado recentemente no caderno Ilustríssima da Folha de São Paulo, vejo que vale a pena esperar por suas observações. As palavras finais desse artigo, aliás, são arrebatadoras. Sei que há a fundamentada desconfiança da figura do intelectual que decide ser político. É uma pergunta que sempre se coloca, a começar pelas experiências de Platão. Mas Unger, que vê o socialismo, o liberalismo e a democracia como braços profanos do cristianismo, apresenta propostas práticas que convidam à discussão e encontram silêncio como resposta. Suas advertências sobre encarar a crítica da “sentimentalização das trocas desiguais” (expressão excelente que ele cunhou e tanto nos ajuda a pensar a sociedade brasileira) ? encará-la mas não parar nela ? são arma para nosso espírito.

Votei em Ciro Gomes na eleição de 1998: eu não era a favor da reeleição. Agora, sabendo-o possível candidato, penso em voltar a fazê-lo. O discurso de Mangabeira em sua volta ao PDT, que vi na internet, me convenceu. A entrevista de Marina à Folha era honesta e amável. Mas a que ela deu ao Valor depois é muito melhor. Mais uma vez, senti que ter a figura daquela mulher representando nosso país no mundo é algo com que meu espírito de artista pop sonha desde sempre. Mesmo assim, se tivesse de decidir hoje entre o que li ali e o que ouvi Mangabeira dizer sobre a candidatura de Ciro, acho que ficaria com este último. Sinto mais integridade e inteireza pessoais nela. E, diferentemente de meus amigos esquerdistas, não rechaço o pensamento político-econômico de Eduardo Giannetti: ele fez sua redescoberta do Brasil de modo também peculiar. Seu diálogo com o liberalismo econômico é crítico (concordo que mais nos livros do que nas entrevistas ligadas à campanha de Marina) ? e ele sabe buscar com sutis formas de afirmação nacional. Mas tendi mais para Ciro. Em grande parte por causa de Mangabeira. Não que Mangabeira vá governar o país através dele. Imagino que Ciro poderá melhor que ninguém aproveitar o que Mangabeira tem para dar.

Um voto é só um voto. Uma pessoa conhecida do público declarar em quem vota pode ter alguma repercussão (inclusive negativa). Creio que vale a pena tentar expressar de público os meandros por que passa uma escolha minha. Tenho a ilusão de que isso pode enriquecer os diálogos internos que alguns poucos outros venham a ter quando se puserem a questão. Lott, João Gilberto, Mestrinho, Adorno, tantas entidades no terreiro para explicar e confundir meu ensaio de voto.

Achei odiosa a campanha de desconstrução de Marina liderada pelo PT quando das últimas eleições. Ao saber da prisão de meu colega Patinhas (o João Santana), senti tristeza e mal-estar, mas também surgiu um “bem feito” no fundo da minha alma, principalmente por causa da campanha contra Marina. Mas votei em Dilma contra Aécio. Eu tinha me comovido diante da urna quando votei em Lula contra Serra. Sabia que era a hora dele ? e nunca me arrependi. Em Dilma foi um voto frio. Os meandros: de cara, o PSDB nunca antes tinha sido tão completamente tomado pela direita. Os fanáticos malucos que pediam a volta da ditadura; colegas meus em euforia conservadora; articulistas reacionários ? minha necessidade de destoar dessa fauna era visceral. Mas, diferentemente de quando votei em Lula na eleição que o levou à presidência, meu voto em Dilma era problemático. Cheguei a dizer ao amigo Silvio Osias que, em certa medida, era um voto contra o PT: dada a combinação da queda do preço das commodities com as decisões nada inspiradas de Dilmantega, quem quer que se elegesse no apertado pleito de 2014 encontraria pesadas dificuldades para tocar o barco. Vencesse o candidato opositor, a essas dificuldades se somariam os movimentos sociais, a jovem esquerda letrada das cidades grandes e o culto populista ao partido de Lula nos rincões do interior. Que a própria Dilma enfrentasse o problema. Li a Construção de Bresser. Conversei com André Nassif e achei que Dilma deveria convidar Nelson Barbosa para a Fazenda. Como Mangabeira, achava que o ajuste fiscal se impunha. Calculava que um desenvolvimentista estaria em sintonia natural com Dilma e poderia fazer o ajuste sem uma grita contra tão maciça como a que se deu com a escolha de Joaquim Levy. O governo teria mais calma para pôr em prática o que era preciso. Ter chamado Levy demonstrou inabilidade. Prova-se agora que reações das organizações políticas e da sociedade não faltam: a tentativa de impeachment é apenas a ponta do iceberg. Não quero ver o Brasil cindido. Estou certo de que desejo muito mais a grandeza do Brasil do que a prova da teoria da mais-valia ou o êxito total do capitalismo. Minhas motivações são de sonho de afirmação nacional, na crença de que podemos criar algo que ensine ao mundo a ternura de que falam tanto Mangabeira quanto Giannetti. A volta de Lula? O pensamento sobre 2018 trouxe a hipótese. Lula é um líder de grandeza incomparável, talvez só Getúlio. Seu discurso em resposta à estranha decisão do juiz Moro de expedir uma condução coercitiva para levá-lo a depor sem que ele tivesse se negado a fazê-lo mostrou um político potente. Pouco depois, ele já aparecia como um ex-líder. Entristece, mas a fórmula de liderança populista é algo que me sugere retrocesso a velhos males latinoamericanos.

Cristóvão Buarque saiu do PDT. Considero uma perda para o partido e para o Brasil. Escrevo em meio a primeiras páginas de jornais e telas de TV gritando as acusações contra Lula e Dilma que Delcídio Amaral teria feito e dando conta do mandado expedido pela Lava Jato contra o ex-presidente. Penso que a leitura de Demétrio Magnoli é realista: o gesto do juiz responde à substituição do Ministro da Justiça sob a queixa do PT de que ele não “controlava a Polícia Federal”. Mas tem muita pinta de gesto midiático e pode ser apenas um teste. Estou com os que acham errada a decisão de Moro. Tenho como base o que motivou a luta estética em que me meti desde moço: superar a brutal desigualdade que fende a sociedade brasileira. Jessé Souza pode ser Tosco, com seus “posto que”, que não parecem homenagem ao famoso escorregão de Vinicius, mas acima de todas as sofisticações da inteligência está o fato de que o Brasil sempre é decidido pela miniminoria de privilegiados. Chega. Lula voltará como Getúlio, nos braços do povo, ou seu desgaste se provará maior do que seu mito? No calor da hora: o MP paulista pede sua prisão preventiva. Sinto-me mais perto do que nunca dos que veem nessa onda o interesse do privilégio, o aspecto horrendo do organismo Brasil defendendo-se de possíveis mudanças. Por isso, carioca, votarei em Freixo. Não quero que o Brasil ensine ao mundo como perpetuar a pobreza, como desencadear linchamentos, como manter jovens negros presos, como ser cruel sem perder o charme. Por tudo isso, gasto tempo falando sobre voto, num momento em que tantos parecem desqualificar os ritos democráticos. Com ruas limpas e sinais de trânsito respeitados por muito menos carros do que se usam hoje, já que teremos transporte público abundante e de qualidade movido a energia não poluente, o Brasil deve ter o que sabemos que pode ter para ensinar ao mundo. Já estamos há tempo demais esperando que sucessivos agravamentos da crise produzam avanço. Até aqui, as crises só têm gerado crises. Escrevo como cantor, baiano, eterno suspeito por fugir das cartilhas e falar demais, com o ânimo de quem pensa que o Brasil da Mangueira de Bethânia tem outro destino que não o simples fiasco.

segunda-feira, 6 de março de 2017

O falso dilema dos parques segundo Doria e o caso do Central Park, por Por Luanda Vannuchi* e Mariana Schiller**



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Parque do Ibirapuera (SP) e Central Park (NY). Foto de Satélite/Google
No ano passado, logo após ser eleito, o ainda não empossado prefeito de São Paulo, João Doria Jr., apresentou uma lista de 15 parques-modelo para serem concedidos à iniciativa privada. Pouco depois, o prefeito afirmou que estudava importar o modelo de gestão do Central Park, gigantesca área verde na cidade de Nova York, para o Parque do Ibirapuera, na zona sul da capital paulista. Diante do argumento de que a prefeitura seria incapaz de arcar com os custos de manutenção dos 109 parques da cidade, sobram propostas de concessão, parcerias público-privadas e privatizações. A agenda é tão prioritária para a nova gestão que envolveu a criação de uma pasta exclusiva para isso, a Secretaria de Desestatização e Parcerias.
Preocupa, no entanto, que as concessões sejam anunciadas desacompanhadas de estudos que comprovem o benefício ou mesmo a viabilidade da transferência desses bens para o privado, sem explicações sobre como será feito, sem debate público e, principalmente, sem garantias da manutenção do caráter público desses bens uma vez concedidos ou privatizados. Dessa forma, Doria parece tratar a coisa pública como se fosse propriedade privada da sua gestão.
A privatização é apresentada como solução antes mesmo que o problema seja identificado e trazido a público. Mas qual o problema específico do Parque Ibirapuera? E dos demais parques públicos municipais? É uma questão orçamentária? É um problema de gestão? A privatização poderá solucionar esses problemas? Como? Quais as garantias? Não seria interessante que essas questões fossem trazidas ao debate público?
O argumento de que a prefeitura não tem dinheiro para cuidar dos parques não convence frente ao orçamento de R$ 54 bilhões para toda a cidade em 2017. A questão é antes como e no que os recursos públicos serão utilizados. A população não deveria ter o direito de decidir se a manutenção de parques públicos de qualidade é ou não prioritária? Mas o (falso) dilema que Doria apresenta é de que se não forem concedidos ou privatizados, o destino dos parques é o abandono, como se não houvesse outras alternativas e como se a gestão privada solucionasse magicamente problemas que sequer foram identificados.
A discussão sobre formas alternativas de gestão de bens públicos é fundamental e urge ser qualificada. Para contribuir com o debate, trazemos neste post o exemplo do Central Park, cujo modelo de gestão é considerado por Doria para o Ibirapuera.
Central Park e Central Park Conservancy
O Central Park foi inaugurado em 1860, na cidade de Nova York. Entre os anos de 1960 e 1980, em função da crise econômica e fiscal da cidade e de cortes no orçamento público, o local passou a sofrer com falta de manutenção e grande abandono e acabou sendo estigmatizado como local de violência.
A precarização do Central Park a partir desse cenário mobilizou cidadãos e grupos da sociedade civil organizada de Nova York, especialmente residentes do seu entorno, que passaram a organizar ações voluntárias de manutenção e levantamento de doações. Para regulamentar tais ações foi criada uma organização social privada sem fins lucrativos e de dedicação exclusiva, a Central Park Conservancy (CPC), que passou a gerir a área verde por meio de contrato com a administração municipal.
Atualmente a CPC contribui com 75% do orçamento anual da área, cerca de U$ 67 milhões (o equivalente a aproximadamente R$ 200 milhões). Os outros 25% vem do orçamento público municipal, que desembolsa em torno de U$16,75 milhões por ano. A título de comparação, o orçamento de 2016 para todos os 109 parques da cidade de São Paulo foi de R$ 70 milhões.
A chave desse modelo de administração está em sua fonte de recursos. A maior parte deles vem de doações de fundações privadas, empresas e moradores da área – uma das mais ricas da cidade. O modelo tira proveito da cultura filantrópica enraizada nos EUA, onde é comum que os mais ricos façam grandes doações para instituições culturais e projetos sociais, gozando muitas vezes de benefícios fiscais ou na tributação sobre heranças. Em 2012, o parque chegou a receber doação de U$100 milhões de uma única pessoa.
Uma “Política de Aceitação de Presentes”, divulgada pela CPC, regulamenta as formas de doação, que podem vir na forma de dinheiro, títulos, imóveis ou ações de fundos, que devem passar por análise de rentabilidade. Em troca, os doadores podem receber benefícios que vão desde pequenos brindes até convites para eventos exclusivos. Em caso de doações maiores, os benfeitores podem adotar um banco, uma árvore ou um pedaço da pavimentação do parque e fazer a inscrição que escolherem, normalmente em homenagem a alguém. Para doações de valores muito elevados, as contrapartidas podem incluir a nomeação de partes do parque, como é o caso da pista de corrida Stephanie and Fred Shuman Running Track, homenagem ao casal cuja doação permitiu sua reforma. Mas é importante ressaltar que se trata de doações, não de investimentos. As doações não dão direito a anúncios publicitários e as inscrições nos bancos e pavimentos são discretas e não interferem na paisagem. Uma parte menos expressiva dos recursos provém também da exploração comercial do parque por meio de eventos como filmagens, concertos, corridas, entre outros – atividades ocasionais que ocorrem em espaços específicos e jamais acarretam no fechamento do parque para o uso público.
A CPC é responsável pela gestão e aplicação desses recursos e pela manutenção integral do Central Park, incluindo plantios e cuidado com áreas verdes, serviços de infraestrutura, restauros, coleta de lixo, atendimento ao público, programas de educação ambiental e atividades culturais. Para isso, a organização emprega 80% do seu quadro de funcionários, aos quais se junta um número expressivo de voluntários. Mas apesar de desempenhar papel majoritário na gestão, sua atuação ainda se dá em parceria com o poder público, que mantém o controle geral e a responsabilidade última pelo parque. A prefeitura deve aprovar todas as melhorias planejadas pela organização, e são de responsabilidade exclusiva da gestão pública as concessões, normas e segurança pública do local.
A estrutura do CPC possui traços corporativos, mas com grande controle social. O CEO do parque responde a um grupo gestor composto por 52 membros que tem a atribuição de monitorar e supervisionar as atividades da diretoria, do levantamento de doações ao planejamento das intervenções e à realização das atividades propostas. Dessas, cerca de 10 cadeiras são indicadas pela prefeitura ou ocupadas pela própria diretoria do parque, o que na gestão atual inclui milionários e representantes de grandes empresas como Bank of America, Fox ou Bloomberg. Mas a maioria absoluta do conselho é composta por cidadãos comuns: 43 membros eleitos diretamente, com mandatos que duram dois anos. Por fim, o CPC possui uma política especial para resolver casos de conflito de interesse, questões éticas e um canal para receber denúncias anônimas relativas a membros da própria organização ou do comitê gestor. O intento é evitar que o bem público seja utilizado para ganhos privados.
Assim, o modelo não pode ser chamado de concessão nem de privatização. A organização não tem fim lucrativo; seu objetivo é levantar e administrar recursos provenientes de entidades privadas para a manutenção de um bem público, cujo funcionamento, acesso gratuito e caráter não comercial são assim assegurados. O Central Park pode até ser rentável, mas toda sua rentabilidade é investida no próprio parque – ideia oposta à de uma concessão ou privatização stricto sensu, na qual a rentabilidade seria embolsada pela concessionária.
Ainda assim, apesar do Central Park ser um caso de sucesso, existem problemas próprios desse modelo de funcionamento e gestão. Nos Estados Unidos, a diminuição abrupta de investimentos públicos diante da alternativa filantrópica, a incerteza sobre o futuro dos parques frente à dependência de doações privadas, os elevados custos associados ao levantamento de doações e o desequilíbrio a respeito de quais parques recebem investimentos e quais não, são alguns dos problemas associados ao modelo do CPC.
De volta a São Paulo
No Parque do Ibirapuera já existe uma Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP) inspirada no exemplo do Central Park, a Ibirapuera Conservação. O grupo organiza voluntários em mutirões e algumas ações de reforma de áreas específicas do parque a partir de doações, mas não participa oficialmente da gestão do Ibirapuera. Eles inclusive cobram em sua página no Facebook a falta de transparência da gestão pública do parque, com podas de árvores realizadas sem aviso ao grupo gestor e outras decisões tomadas unilateralmente, sem consulta a quem deveria participar das deliberações.  Mas embora o exemplo do Central Park possa ser bastante sedutor à primeira vista – um símbolo de gestão eficiente e que custa pouco para a prefeitura –, ele não é inteiramente importável, pois está inserido em uma cultura específica de filantropia e participação da sociedade civil na dimensão pública norte-americana, muito diferente da nossa. Além disso, para ter o mesmo caráter é tão importante  que se traga para a cidade os mecanismos que garantem real controle social dos espaços concedidos à iniciativa privada, como as regras de contrapartida e a não priorização do lucro dos investidores, como ocorre no Central Park.
Além disso, se por um lado o envolvimento da sociedade civil e dos usuários é sempre bem-vindo, é necessário que existam mecanismos democráticos para se pensar as prioridades de atuação. O Ibirapuera não é, afinal, um parque degradado e abandonado onde as pessoas têm medo de pisar. Ao contrário, é uma das áreas públicas mais utilizadas da cidade, por pessoas que vêm de todos os cantos de São Paulo. Usos tão distintos por tantas pessoas tão diferentes não acontecem sem conflitos, e as decisões sobre este espaço não podem ficar restritas aos habitantes endinheirados do seu entorno, benfeitores, concessionários ou parceiros. O desafio é precisamente encontrar um modelo de gestão que dê conta das suas carências atuais frente a uma frequência maior, intensa e tão heterogênea.
Mas se já existe um problema de transparência, controle social e democratização dos processos decisórios hoje no Ibirapuera e nos demais parques da cidade, a situação deve piorar muito com qualquer tipo de concessão ou privatização. Mais do que isso, uma vez entregue à iniciativa privada – sobretudo na perspectiva apresentada por Doria, São Paulo como uma grande oportunidade para negócios – o lucro seria parte inerente da medida. Afinal, se uma empresa privada, com fins lucrativos, for investir na manutenção do parque, vai ter que ganhar com isso de algum modo.
Por fim, é inegável que a gestão pública tem problemas. Qualquer um que já tenha trabalhado no setor público sabe como os controles burocráticos dos processos de compras e contratações, criados para evitar corrupção e favorecimentos, dificulta a gestão cotidiana dos serviços públicos, a resolução de problemas simples de manutenção, consertos, pequenas compras. Ironicamente, a experiência mostra que esse controle administrativo não parece impedir a corrupção ou favorecimentos. O caso do Central Park mostra que uma gestão honesta e eficiente não se faz apenas com controle burocrático, mas antes com controle social. Os problemas do Parque Ibirapuera e dos demais parques paulistanos é complexo e para resolvê-los é necessário entrar em um debate sério sobre os problemas reais da gestão pública. E o binarismo controle público estatal versus gestão empresarial não dá conta desta discussão.
*Luanda Vannuchi é geógrafa, mestre em estudos urbanos pela Vrije Universiteit Brussel, doutoranda em Planejamento Urbano na FAU USP e faz parte da equipe do ObservaSP
**Mariana Schiller é estudante de graduação da FFLCH-USP e faz parte da equipe do ObservaSP

domingo, 5 de março de 2017

Por que Lula?, OESP


É a candidatura que visa interditar, no grito, as investigações contra ele
Vera Magalhães
05 Março 2017 | 03h08

A semana promete ser tomada pelo “lançamento” da sexta candidatura de Luiz Inácio Lula da Silva à Presidência. O pontapé inicial foi um manifesto “espontâneo” assinado pelos intelectuais de cabeceira do petismo, e que dará origem a um site e um road show do ex-presidente e réu na Lava Jato pelo País. O título do abaixo-assinado é “Por que Lula?”. 
Está aí uma boa pergunta, mas a resposta está longe de ser o misto de ingenuidade, desonestidade intelectual e manipulação contidos no documento.
Por que Lula? Por que o Brasil precisa dele ou por que ele precisa dessa candidatura como escudo para se defender das acusações de que, no exercício da Presidência e depois de deixá-la, praticou corrupção passiva, tráfico de influência, lavagem de dinheiro e outros crimes investigados no petrolão?
O calendário do lançamento de Lula coincide com a reta final de um dos processos nos quais o petista é réu, sob a acusação de ter recebido propina de até R$ 3,7 milhões na forma de “mimos” da OAS, que reformou um triplex no Guarujá que seria ofertado à sua família e pagou pela guarda das “tranqueiras” que ele carregou quando deixou o Alvorada.
Lula vai depor em maio diante do juiz Sérgio Moro. Até lá, deve rodar o País entoando a cantilena de que é vítima de perseguição política e de que os processos nada mais são do que uma tentativa de tirá-lo da vida pública e impedir uma nova candidatura.
Não será o contrário? Lula nunca desejou de fato ser candidato novamente à Presidência. Não o fez quando teve a faca e o queijo na mão: petistas como Rui Falcão e Marta Suplicy lançaram o “volta Lula” em 2014, e ele não o levou adiante.
Não foi em respeito a Dilma Rousseff que ele deixou de ser candidato. Lula desistiu porque não podia vislumbrar a possibilidade – na época, ainda bastante remota – de não ser eleito nem a perspectiva, esta bem concreta, de fazer um governo pior do que os anteriores.
Por que, então, teria mudado de ideia agora que é réu em cinco ações penais, o PT foi varrido do mapa nas eleições municipais, Dilma sofreu impeachment e a economia está em frangalhos? Altruísmo? Senso de dever para com aqueles que o PT diz ter incluído e que voltaram à miséria?
Talvez Chico Buarque ou Leonardo Boff acredite de fato nisso, embora seja espantoso.
A desigualdade social e o desemprego galopam no País por obra e graça dos governos Lula e Dilma. Ele por não ter aproveitado o vento favorável na economia mundial que vigorou até 2009 para fazer as reformas que eram necessárias. Ela por se lançar na tal “nova matriz econômica”, que nada mais era do que desculpa para abraçar a irresponsabilidade fiscal como se não houvesse amanhã.
A Lava Jato nada mais é do que a resposta da Justiça a um esquema de desvio de recursos públicos sem precedentes, montado de forma deliberada e reiterada pelos governos do PT – neste caso mais dele do que dela – para sustentar um projeto de poder que era para durar ao menos 20 anos.
O fato de Lula responder agora pelos crimes dos quais é acusado não é perseguição política, mas consequência do amadurecimento democrático e institucional do Brasil. Não à toa, os defensores do ex-presidente falam em “Justiça para todos e para Lula”, sem esconder a pretensão a que o cacique petista seja beneficiado por uma indulgência que não se destinaria a “todos”, só a ele.
É esse o desejo indisfarçado que transborda do texto dos “intelectuais” lulistas. O por que Lula, aqui, parece pressupor um complemento: por que Lula tem de responder como qualquer mortal perante a Justiça?
Portanto, não é a Lava Jato que quer impedir a candidatura do petista. É a candidatura que visa interditar, no grito, as investigações contra ele. Por que Lula? Por que não ele?