“Foi o melhor dos tempos, foi o pior dos tempos, foi a era da sabedoria, foi a era da insensatez, foi a época da crença, foi a época da incredulidade, foi a estação da Luz, foi a estação das Trevas, foi a primavera da esperança, foi o inverno do desespero, tínhamos tudo diante de nós, não tínhamos nada diante de nós, íamos todos direto para o Paraíso, íamos todos direto no sentido contrário (…)”
Um conto de duas cidades
Charles Dickens
O ano de 2015 presenciou eventos que mostram o que a humanidade tem de pior. Foi também, no entanto, um ano em que a sociedade global mostrou o que tem de melhor, ao se unir para enfrentar ameaças que a afligem. Da incredulidade trazida pelos atentados cometidos pelo Estado Islâmico à crença em um futuro possivelmente melhor trazida por um novo acordo global para combater as mudanças climáticas, vejamos como foi o ano:
Breve volta ao mundo
O Terror e a Paz
O começo do ano foi marcado pelo ataque terrorista, reivindicado pela Al-Qaeda, à redação do jornal satírico francês Charlie Hebdo que publicara charges caricaturando o profeta Maomé. Ao longo do ano, outro grupo terrorista, o Estado Islâmico, que hoje ocupa partes do território do Iraque e da Síria, cometeu atentados em países como Líbia, Iêmen, Egito e Tunísia. Em novembro, este grupo voltou a atacar. Um dia depois de cometer um atentado no Líbano, que destruiu uma área comercial em Beirute e matou 37 pessoas, trouxe o terror de volta a Paris, em uma série de ataques que deixaram 130 mortos.
Apesar dos esforços diplomáticos do presidente francês, François Hollande, a formação de uma aliança efetiva de combate ao Estado Islâmico tem se mostrado uma missão complicada — e o ponto de divergência é a manutenção ou não do regime do presidente Bashar Al-Assad, da Síria, onde a guerra civil, que tem o Estado Islâmico como um dos combatentes, continua. Estados Unidos, Arábia Saudita e Turquia, por exemplo, apoiam os rebeldes contra Assad, enquanto Rússia e Irã preferem que este continue no poder. Com a derrubada de um caça russo pela Turquia em novembro, na fronteira entre esta última e a Síria, e a reação russa, cortando laços econômicos e diplomáticos com a Turquia, a coalizão desejada por Hollande se tornou um pouco mais distante.
A instabilidade política provocada pelas guerras civis no Oriente Médio faz com que um número crescente de refugiados, que fogem das terríveis condições encontradas em seus países, tente chegar à Europa. Assim, a União Europeia, que passou boa parte do ano tentando lidar com a crise na Grécia e as ameaças por esta trazidas para a zona do Euro, precisou enfrentar também o desafio de lidar – com doses diferentes de solidariedade, infelizmente – com essa migração em massa. Em setembro, o bloco aprovou, apesar da oposição de alguns de seus integrantes do leste europeu, um plano para distribuir 120 mil imigrantes entre os países membros – número tímido diante dos quase quatro milhões de refugiados que alguns vizinhos da Síria, como Turquia, Jordânia e Líbano, já hospedam. A fim de estabelecer um “mapa do caminho” para acabar com o conflito na Síria, em 18 de dezembro uma Resolução do Conselho de Segurança da ONU determinou que o secretário geral da organização, Ban Ki-moon, deverá coordenar um processo de negociação entre governo e oposição com o objetivo de decretar um cessar fogo, iniciar o processo de elaboração de uma nova constituição e realizar eleições livres naquele país em 18 meses.
Vale destacar, por fim, o prêmio Nobel da Paz deste ano, que foi para o Quarteto do Diálogo Nacional Tunisiano, pela contribuição para a redemocratização naquele país após a Revolução de Jasmim de 2011. A atuação do grupo, formado pela União Geral dos Trabalhadores da Tunísia, a Confederação da Indústria, do Comércio e Artesanato, a Liga dos Direitos Humanos e a Ordem Nacional dos Advogados da Tunísia, foi decisiva para a pacificação dos conflitos políticos que quase levaram aquele país à guerra civil em 2013. A Tunísia continua sendo o único dos países envolvidos na série de revoltas que ficou conhecida como Primavera Árabe a alcançar certa estabilidade. Nos demais, como na abertura do livro de Dickens, em vez da “primavera da esperança”, segue prevalecendo o “inverno do desespero”.
Cuba, Irã e o legado de Obama
O presidente norte-americano Barack Obama parece ter resolvido, ante as dificuldades impostas pela oposição republicana para a adoção das políticas internas por ele desejadas, voltar sua atenção para o cenário internacional. Disso se originaram alguns legados importantes.
A reaproximação entre Estados Unidos e Cuba avançou em 2015. Em maio, os Estados Unidos retiraram Cuba da lista de países patrocinadores do terrorismo. Em julho, foi reaberta a embaixada dos Estados Unidos em Havana e a de Cuba em Washington. Mais recentemente, foi liberado o uso de cartões de crédito norte-americanos na ilha e autorizou-se o restabelecimento do serviço postal e a retomada dos voos comerciais entre os dois países.
Falta, ainda, atender certas reivindicações do governo cubano mais difíceis de serem aprovadas, como o fim do embargo econômico, financeiro e comercial imposto à ilha em 1961 e a devolução da base de Guantánamo,usada desde 2001 pelos Estados Unidos para encarcerar e interrogar suspeitos de atos terroristas.
Outro avanço foi a assinatura em julho, em Viena, do acordo nuclear iraniano, após uma negociação que se prolongou por quase dois anos. O pacto entre o Irã e o G5+1 (Estados Unidos, China, França, Grã-Bretanha, Rússia + Alemanha) visa garantir que o programa nuclear iraniano seja usado apenas para fins pacíficos, evitando que se obtenha uma arma atômica. Para tanto, o Irã concordou em reduzir o número de centrífugas de enriquecimento de urânio e em diminuir seu estoque do produto pelos próximos 15 anos. Além disso, aceitou a realização de inspeções sem aviso prévio pela Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA). Em troca, deverão ser retiradas as sanções internacionais contra o Irã, porém isso ocorrerá apenas quando ficar comprovado que a promessa de este restringir sua capacidade nuclear está sendo cumprida.
O Comércio Internacional entre o multi e o plurilateralismo
Parceria Transpacífico e Mercosul
Obama também teve participação fundamental naquele que é, provavelmente, o acordo regional mais amplo da história, por meio do qual os Estados Unidos buscam contrabalancear a influência chinesa sobre o comércio no Pacífico. Abrangendo países que representam 40% da economia global, a Parceria Transpacífico (TPP na sigla em inglês) derruba barreiras tarifárias de mais de 18 mil produtos entre Estados Unidos, Japão, Austrália, Brunei, Canadá, Chile, Malásia, México, Nova Zelândia, Peru, Cingapura e Vietnã.
Mas o TPP, que ainda precisa ser ratificado por seus participantes, vai além da simples redução de tarifas. Ele abrange, por exemplo, disposições relacionadas a direitos sobre propriedade intelectual, compras governamentais, comércio eletrônico e, seguindo a tendência a que acordos de livre comércio incorporem temas relacionados à sustentabilidade, trata de áreas como a proteção do meio ambiente, a promoção de melhores condições de trabalho e o combate à corrupção.
O Brasil, que exporta cerca de US$ 54 bilhões para os países membros do TPP e pode perder espaço para seus produtos, ainda assim hesita em se movimentar para negociar uma adesão ao bloco. Já o novo presidente da Argentina, Mauricio Macri, mencionou que seu país deveria se aproximar do TPP e promete destravar tanto o Mercosul quanto a negociação de um acordo de livre comércio entre este e a União Europeia, que já dura mais de quinze anos. Entre os integrantes do Mercosul, o destaque negativo continua sendo a Venezuela que, neste ano, entrou em um conflito de fronteira com a Colômbia e prendeu líderes opositores – o que, inclusive, havia levado Macri, ainda em campanha, a ameaçar pedir a exclusão da Venezuela do bloco com base na cláusula democrática estabelecida pelo Protocolo de Ushuaia. Na Cúpula do Mercosul realizada no final de dezembro, o presidente argentino reiterou suas críticas e pediu, expressamente, a rápida libertação dos presos políticos venezuelanos. Vale lembrar que, nas eleições de dezembro, a oposição venezuelana conquistou a maioria do Congresso, e a forma como reagirá a isso o governo de Nicolás Maduro – que dias depois de ser derrotado anunciou a criação de um "Parlamento Comunal" paralelo – poderá agravar a situação daquele país e sua relação com seus parceiros de bloco.
OMC
No final de julho, foi decidido que o Acordo de Tecnologia da Informação (ITA) da Organização Mundial do Comércio, assinado em 1996, será ampliado a fim de zerar as tarifas de importação de 201 produtos como equipamentos médicos, aparelhos de GPS, consoles de videogames, alto-falantes e insumos tecnológicos como componentes de TV, DVD e semicondutores, cujo comércio é estimado em US$ 1,3 trilhão por ano. Essa expansão do ITA foi aceita por 53 membros da organização, que representam 90% do comércio mundial desses produtos, nesta que foi a primeira grande negociação na OMC para redução de alíquotas em 18 anos.
Esse resultado já antecipava uma tendência que viria a se comprovar no final do ano, na 10ª conferência ministerial da OMC, realizada em Nairóbi, no Quênia, onde se confirmou a ampliação do ITA. Incapaz de concluir a Rodada Doha, que se arrasta desde 2001 e não foi declarada morta por um triz naquela reunião, a organização parece que deixará de apostar no modelo das grandes negociações multilaterais abrangentes e passará a focar em negociações menores, que tenham caráter plurilateral ou que tratem de áreas ou assuntos específicos. Em Nairóbi, se obteve um relevante acordo para acabar com os subsídios à exportação de produtos agrícolas – que vale imediatamente para os países desenvolvidos e deverá ser implementado pelos países em desenvolvimento até 2018, ou 2023 em alguns casos – festejado pelo diretor geral da OMC, Roberto Azevêdo, como o resultado mais significativo para a agricultura nos 20 anos da organização.
A evolução do Direito Internacional da Sustentabilidade
Um marco da jurisprudência?
Em 2015, alguns acontecimentos impulsionaram o movimento que tem levado ao surgimento de normas, diretrizes, instituições e princípios que começam a formar um sistema jurídico próprio – um verdadeiro “Direito Internacional da Sustentabilidade” que já tive a oportunidade de discutir de forma mais aprofundada em
artigo publicado aqui nesta
ConJur.
Nesse sentido, chamou a atenção em junho deste ano a inédita decisão de um tribunal holandês que ordenou ao Estado que, até 2020, reduza as emissões de gases de efeito estufa em 25% em relação a 1990. Essa sentença se apoiou na obrigação assumida pela Holanda em acordos internacionais, como os tratados constitutivos da União Europeia, de respeitar o desenvolvimento sustentável como princípio.
O governo holandês decidiu apelar. Ainda assim, em resposta a essa sentença, já concordou em fechar usinas de carvão e aumentar o uso de energias renováveis – lembrando que a Holanda, com boa parte do seu território abaixo do nível do mar, é especialmente vulnerável ao aquecimento global.
Se esse entendimento pelo judiciário se consolidar como tendência e práticas dos Estados contrárias à sustentabilidade forem suscetíveis de questionamento em juízo, aumentaria o poder coercitivo do Direito Internacional da Sustentabilidade, que passaria a ser munido de “dentes” mesmo que normalmente as normas a ele relacionadas se encontrem em instrumentos desprovidos de sanções.
Os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável
A sustentabilidade extrapola a proteção do meio ambiente, como demonstra a abrangência dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU aprovados por 193 países em setembro. Estes consistem em 17 grandes objetivos e 169 metas correlatas que compõem uma ambiciosa agenda global a ser implementada nos próximos quinze anos.
Os ODS substituíram os ODM (Objetivos de Desenvolvimento do Milênio), adotados pela ONU no ano 2000, que abrangiam oito objetivos a serem cumpridos em 15 anos, como acabar com a fome e a miséria e reduzir a mortalidade infantil. Esse ciclo se encerrou neste ano com resultados positivos, mas sem atingir completo sucesso.
Neste novo esforço, os países não apenas renovam o compromisso de acabar com a pobreza e com a fome, mas também pretendem, até 2030, atingir objetivos como garantir uma vida saudável e o bem-estar para todos, uma educação inclusiva, equitativa e de qualidade, a igualdade de gênero e o empoderamento das mulheres, padrões de consumo e produção sustentável e o uso racional das florestas e da água, bem como reduzir a desigualdade entre os países e dentro deles.
O Acordo de Paris
Da cidade luz, castigada pelas trevas do obscurantismo neste ano, veio uma das melhores notícias de 2015.
Em dezembro, Paris sediou a 21ª Conferência das Partes da Convenção do Clima da ONU (COP-21). Durante o ano, a comunidade internacional já havia reafirmado, por meio de uma série de declarações, seu compromisso em combater o aquecimento global. Foi esse o tom, por exemplo, do comunicado do G7 no começo de junho, prometendo extinguir o uso de combustíveis fósseis até o final deste século, do anúncio, em agosto, pelo presidente Obama, de seu Plano de Energia Limpa, e até mesmo, em outro plano, da encíclica Laudato Si do Papa Francisco, dedicada à proteção do meio ambiente.
Foi nesse clima que os países se reuniram e, em 12 de dezembro, adotaram o Acordo de Paris, instrumento de caráter universal — abrange 195 países — que, a partir de 2020, substituirá o Protocolo de Kyoto, instrumento que não foi bem-sucedido em seu objetivo de cortar as emissões de gases de efeito estufa.
A ausência de metas globais com caráter vinculante poderia levar a uma visão pessimista do resultado da COP-21. Principalmente se combinada com disposições do Acordo que deixaram a desejar, como aquelas relativas ao financiamento pelos países desenvolvidos para mitigação e adaptação às mudanças climáticas pelos países em desenvolvimento, cuja promessa se mantém em US$ 100 bilhões ao ano, montante já previsto desde a COP-15 e que é insuficiente.
Entretanto, há no Acordo de Paris um tripé que pode assegurar que este cumpra o que dele se aguarda. O primeiro elemento que suporta essa crença é seu nível de ambição. Pretende-se conter o aumento da temperatura média global em bem menos do que 2ºC acima dos níveis pré-industriais, procurando não passar de 1,5ºC. O segundo é a obrigação de revisar progressivamente as contribuições nacionalmente determinadas (INDCs), comunicando-as a cada 5 anos – devendo o limite de 1,5ºC ser visto como um norte. O terceiro é a transparência – é preciso medir, relatar e verificar o cumprimento das metas a fim de criar a confiança mútua de que cada país realmente efetuará as contribuições prometidas.
Com isso, o Acordo de Paris confere o sinal, que muitas empresas que vêm apostando na nova economia de baixo carbono esperavam, de que o modelo econômico baseado no uso dos combustíveis fósseis se esgotou. Isso faz dele um acordo histórico, que pode marcar o início de um novo tempo que terá a sustentabilidade como imperativo. Uma era da sabedoria, após uma era de insensatez.