terça-feira, 25 de novembro de 2014

A profecia da crise da água em SP. ,via Blog do Miro


Por Felipe Bianchi, em A conta da água, via Blog do Miro, sugestão de NaMaria
Apesar de atingir seu estopim em 2014, as razões para a grave crise hídrica pela qual passa o estado de São Paulo remetem a episódios que pouco têm a ver com falta de chuva ou caprichos da natureza. Um deles nos leva de volta a 2003, quando a Assembleia de São Paulo (Alesp) aprovou  - na calada da noite –  o Projeto de Lei 410/2003, de autoria do PSDB e responsável por abrir o capital da Sabesp ao mercado financeiro. Foram 55 votos contra 22, em sessão iniciada às 4h30 da madrugada do dia 27 de agosto.
Com a mudança na forma de gestão da empresa, 50,3% do seu capital encontram-se mãos do Governo do Estado de São Paulo, enquanto a bolsa de Nova Iorque (NYSE) detém 24,9% e a BM&F Bovespa abocanha 24,8% das ações. Ao longo desse período, a empresa atingiu números impressionantes: sua valorização bateu a marca de 601% e seu valor de mercado passou de R$ 6 bilhões a mais de R$ 17,1 bilhões.
Em 2012, os expressivos resultados foram comemorados no ‘Sabesp Day’, em plena Big Apple, com uma série de atividades especiais na bolsa nova-iorquina. Durante as festividades, a presidente da empresa, Dilma Pena, reafirmou o compromisso de “oferecer 100% de água tratada, 100% de coleta de esgoto e 100% de tratamento de esgoto em todo o interior do Estado de São Paulo até 2014”. Celebrada pelos acionistas, a dirigente argumentou que “a cada novo ano, a Sabesp mostra ter condições de executar seu objetivo com eficiência, de maneira sólida, dinâmica, inovadora e sustentável em termos financeiros, ambientais e sociais”.
Ou faltou combinar com o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, ou trata-se de uma realidade paralela. A conta da água não fecha. Apesar do sucesso da Sabesp na bolsa de valores, São Paulo sofre com a falta de abastecimento –  o sistema da Cantareira, por exemplo, opera com 11% de sua capacidade e já utiliza a segunda cota do volume morto, levantando a seguinte questão: o modelo de gestão da Sabesp é o mais adequado para garantir a universalização do direito básico que é o acesso à água?
Sobre política e profecias
Na ocasião da votação que selou a entrada da Sabesp no mundo financeiro, a então deputada estadual Maria Lúcia Prandi fez uma declaração ‘profética’ sobre o tema, indagando se a empresa seria capaz de manter seu caráter público e priorizar os interesses da população ou se voltaria suas atenções aos desejos dos acionistas.
“Na prática, é uma quase privatização da Sabesp, que poderá perder seu caráter de empresa pública, abrindo espaço para os interesses privados, que visam lucros e não o benefício comum (…). Quem comprar as ações da Sabesp terá grande poder na gestão da empresa. Como ficará a questão das tarifas? Até que ponto a empresa vai querer investir em áreas carentes ou de difícil atendimento, como os morros? Como conseguir que as redes de esgoto e de distribuição de água cheguem a comunidades mais distantes?”
10 anos depois, ela comenta que “não se trata de profecia, mas de visão de mundo e de Estado”. Para a deputada federal, sua fala em 2003 foi uma “demonstração de que, a médio ou longo prazo, a população poderia pagar caro pela escolha que o governo estava prestes a fazer”.
Prandi recorda que, enquanto o PL 410/2003 estava em pauta, houve uma grande resistência na Alesp por parte de partidos à esquerda, que chegaram a realizar longos estudos sobre o tema para embasar o posicionamento contrário à matéria. “A Sabesp, à época, estava muito endividada. Tanto que havia forte pressão sobre os municípios não-conveniados. A capitalização foi uma das ferramentas que o governo lançou mão para sanar a situação e, na votação, foram vitoriosos”.
A tese de Prandi, no entanto, parece jogar luz sobre as origens de uma crise tratada de forma obscura pelo poder público paulista. “Ao vender ações, você sofre pressão de acionistas para aumentar o lucro, colocando os interesses dos donos das ações em primeiro lugar”, argumenta. “O acesso a um serviço essencial como o abastecimento de água nunca poderia ter sido relegado ao segundo plano”.
De acordo com ela, o governo poderia ter feitos ótimos investimentos que prevenissem crises como essa, já que há uma seca história no estado e o governo federal destina um significativo aporte financeiro para essa finalidade. “Mas a prioridade”, sugere, “parece ser agradar os acionistas”.
Governo optou por tratar água como negócio
Para Edson Aparecido da Silva, sociólogo e coordenador da Frente Nacional pelo Saneamento Ambiental, a opção feita 10 anos atrás pelo governo estadual foi de tratar a gestão da água como negócio. “Na época, a justificativa foi de que era preciso captar recursos em agências financeiras e bancos internacionais. Aderir à bolsa daria segurança aos que emprestassem dinheiro à Sabesp”, explica.
“Uma empresa pública com gestão privada”. Assim o sociólogo define a Sabesp, desde que passou a operar segundo a lógica de ampliação do lucro e de distribuição dos dividendos aos acionistas.
O principal problema, na avaliação de Silva, é a absoluta falta de transparência no modelo de gestão vigente. “Ainda que a quantidade de recursos investidos seja significativa –  cerca de R$ 2 bilhões anuais -, não se tem a menor ideia de como é empregado. Os relatórios dizem apenas se foram feitos na região metropolitana, no interior ou no litoral, sem maiores detalhes, sendo que dentro desse valor podem estar embutidos, por exemplo, pagamentos a empresas terceirizadas que prestam serviço de má qualidade. A crise prova que os investimentos da Sabesp nos últimos anos podem ter sido péssimos”.
Ele repudia a postura de Geraldo Alckmin em não reconhecer publicamente a dimensão da crise e a responsabilidade que cabe à sua gestão, mesmo depois de pedir R$ 3,5 bilhões ao governo federal para bancar um pacote de medidas emergenciais. “Alckmin insiste em negar que há redução da pressão da água durante certos períodos do dia, sendo que boa parte da população das periferias de São Paulo enfrenta o problema quase que diariamente. O governo poderia optar por uma política transparente, informando o cidadão das faixas de horário de racionamento a fim de reduzir, inclusive, o desperdício”.
“Uma marca de cerveja nunca dirá ao seu consumidor ‘não compre cerveja’. É essa regra de mercado que a Sabesp tem seguido, mas seu produto é um serviço público, direito de todos”, afirma Edson Aparecido da Silva
Os números da Sabesp: declínio iminente?
O estatuto da Sabesp prevê que os acionistas podem receber até 25% do lucro líquido anual da empresa, mas desde a aprovação da regulamentação, o índice nunca foi menor que 26,1%. Em 2003, por exemplo, logo após a vitória de Geraldo Alckmin nas urnas de São Paulo, a porção que morreu nas mãos do capital privado atingiu obscenos 60,5% do montante total. Estima-se, ainda, que um terço do lucro líquido total da Sabesp já foi repassado aos acionistas, o que significa aproximadamente R$ 4,13 bilhões — o dobro do que a Sabesp investe anualmente em saneamento básico, segundo os cálculos do Jornal GGN
Presidente do Sindicato dos Trabalhadores em Água, Esgoto e Meio Ambiente (Sintaema) entre 1988 e 1994 e atual vice-presidente da Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB), Nivaldo Santana ressalta que a antes vigorosa taxa de lucro da Sabesp já tem acusado o golpe da crise: “A diminuição da receita tarifária, por conta da menor oferta de água, faz com que a empresa torne-se pouco atraente para os acionistas, até porque o investidor de Nova Iorque, por exemplo, não está preocupado se falta água para a população de São Paulo, mas sim com o retorno de seu investimento. Por isso, a tendência é que a queda nos números se acentue cada vez mais”.
Segundo ele, “o que se vê na Sabesp é uma administração privatista, que segue a lógica privada mesmo tendo uma gestão, ao menos em tese, mista”. “No curto prazo, a aprovação do PL 410/2003 visava fazer caixa para a Sabesp, mas a longo prazo, é parte de um projeto de redução do papel do Estado nos serviços públicos”, assinala.
Por fim, Santana destaca o fator ‘mídia’ como um grande empecilho para a discussão do problema: os grandes meios de comunicação não abordam a dimensão política da crise, em sua opinião, “dando enfoque excessivo ao problema da seca, ao fenômeno natural, como se nos restasse apenas torcer para que chova muito”. Para ele, “trata-se de uma cortina de fumaça sobre os investimentos insuficientes e ruins feitos pela Sabesp, poupando o governo estadual de críticas por parte da opinião pública”.
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segunda-feira, 24 de novembro de 2014

Carência existencial, por José de Souza Martins, no Alias


JOSÉ DE SOUZA MARTINS - O ESTADO DE S. PAULO
04 Outubro 2014 | 16h 00

Muitos protestos ocorridos nos últimos tempos não são de vítimas de carecimentos materiais




MARCOS DE PAULA/ESTADÃO
Confusão. Faltam clareza nas demandas e certezas nas exigências
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O desenvolvimento moderno enriqueceu países que há um século alocavam a prosperidade a um número restrito de pessoas, mas não enriqueceu sociedades. Uma sociedade se enriquece quando emancipa seus membros de suas carências. Não só a falta de comida na mesa ou de casa para morar. Carência não ocorre apenas no âmbito do ter. Sociologicamente, carência é a falta do essencial para ser. É, portanto, muito mais do que o necessário para o hoje e o atual.
No entanto, entre nós, mesmo as religiões tornaram-se materialistas. O discurso sobre a indevidamente chamada exclusão social, que é predominantemente um discurso pseudorreligioso para disfarçar o discurso partidário do púlpito, limita-se às carências do ter. É evidente que na atualidade a justa indignação contra a pobreza ainda se nutra da perspectiva moral das crenças, numa espécie de concepção pré-política dos problemas sociais. Mas também elas sucumbiram à ideologia da precedência dos fatores econômicos como causa dos problemas sociais e da economia como seu remédio. É claro que problemas e soluções passam também por aí. Mas não só, nem mesmo principalmente.
Não se pode deixar de notar que um número significativo de protestos ocorridos na sociedade brasileira nos últimos tempos não o é de grupos humanos que possam ser definidos como de vítimas de carecimentos materiais. O teor difuso dos discursos - em faixas, cartazes, pichações, refrões, gestos e atos - não sugere que nas ruas estejam os pobres das concepções teológicas nem os pobres das concepções partidárias. São outras as carências que alimentam o grito das ruas, das greves universitárias, da violência cotidiana. A principal das quais é a carência de clareza nas demandas e de certeza nas exigências. Protestar é hoje praticamente um rito, mesmo que o conteúdo e a função social não estejam claros para os próprios manifestantes. Os pobres também estão lá, mas como coadjuvantes secundários, como número e não como pessoas. Suas demandas tornaram-se adjetivas em relação a urgências que são, na verdade, as da classe média.
A enorme carência oculta nessas manifestações de tendência autodestrutiva é a carência de esperança, a esperança que quem é condenado a uma vida de pessoa supérflua não pode ter. Quem não tem lugar na sociedade de hoje e não tem certeza de tê-lo na de amanhã não pode ter esperança e, ao não tê-la, não pode se sentir membro da sociedade que hostiliza.
A geração dos pais e avós também foi lesada pelas necessidades não resolvidas, pelas adversidades de um desenvolvimento social que tem estado, historicamente, muito aquém do desenvolvimento econômico. Diferentemente do que aconteceu nos países metropolitanos, pioneiros do desenvolvimento moderno, como a Inglaterra, a Alemanha, os Estados Unidos, a França, aqui as inovações econômicas, com extensas repercussões sociais, foram importadas prontas, causando em meses o impacto que tardou dezenas de anos nos países de origem. Vimos isso acontecer em nossa agricultura nos anos 1950 e 1960, com a precarização do trabalho e o desemprego sazonal, as migrações, a formação das periferias, o desemprego e a subocupação urbana. A sociedade paga hoje o preço do salto tecnológico ocorrido há meio século. Não pode haver amanhã num hoje que já está sobrando e no horizonte de quem é dele sobrante.
De certo modo, a alternativa econômica do salto tecnológico importado produz o descarte mais ou menos rápido de numerosos grupos humanos, tornando obsoletos conhecimentos e pessoas, o chamado capital social e cultural. Tem sido assim em outros países latino-americanos, na Ásia e na África. Aqui no Brasil, nos anos 1950, era raro que um trabalhador ficasse desempregado mais do que uma semana. Hoje é raro que o desemprego de alguém não se estenda por longos meses, com especial impacto nos jovens de diferentes classes sociais, no campo e na cidade. O salto tecnológico do crescimento econômico não foi compensado pelo salto social do desenvolvimento econômico, novas indústrias, novos empregos. A família se reorganizou para enfrentar esse quadro adverso, reinstituindo a economia familiar para socializar os prejuízos do desemprego. Isso atenua e compromete a autonomia de que os jovens carecem para firmar a própria identidade e atualizar seus horizontes. Retarda o ingresso na idade adulta, o que resultou numa geração de numerosos jovens com corpo de adulto e mentalidade de adolescente.
Se antes havia adversários bem definidos do bem comum, equivocadamente ou não, hoje a revolta se dirige contra os mais próximos. É o que explica que em boa parte a conflitividade social dos dias de hoje tenha a forte marca de um conflito de gerações. Ela está tanto nas greves selvagens das universidades como nos linchamentos. Nesses, a incidência de violência fatal é maior contra jovens e até crianças, que a geração adulta vê como uma geração de ociosos e desfrutadores. Não tem em conta as mudanças que levaram a juventude a se sentir supérflua e descartável.
JOSÉ DE SOUZA MARTINS É SOCIÓLOGO, PROFESSOR EMÉRITO DA FACULDADE DE FILOSOFIA DA USP E AUTOR, ENTRE OUTROS, DE EXCLUSÃO SOCIAL E A NOVA DESIGUALDADE (PAULUS)

A segunda morte, por José de Souza Martins, in Alias


JOSÉ DE SOUZA MARTINS - O ESTADO DE S. PAULO
08 Novembro 2014 | 16h 00

Com o declínio das visitas aos cemitérios os finados morrem definitivamente, relegados à indiferença e ao esquecimento

GABRIELA BILÓ/ESTADÃO
Baixa frequência. Cemitério do Araçá, em SP, no domingo do dia dos mortos
A declinante frequência de visitantes dos cemitérios no Dia de Finados provoca apreensão sobre os fatores do declínio. Há uma ponta de censura aos contemporâneos e à modernidade pelo desapego à tradição e aos lugares da memória. Já em tempos recuados, quando os cemitérios ainda eram recentes entre nós, um jornalista do Correio Paulistano visitou os cemitérios da cidade, no Dia de Finados de 1898. Constatou que poucos apresentavam sinais de que haviam sido objeto do interesse de alguém, como a limpeza e a colocação de flores, não obstante o lugar dos enterramentos fosse ainda considerado lugar sagrado. O progresso material e a decorrente banalização da morte, o arrefecimento dos laços de família e de amizade, afetaram ainda mais a observância do dia por excelência do ritual do luto. 
Desde então vem se robustecendo uma insidiosa segunda morte de nossos mortos. Raramente temos consciência de que eles morrem uma segunda e definitiva vez quando os relegamos ao esquecimento e à indiferença em relação ao que foram para nós. Uma coisa é morrer biologicamente, o que os antigos chamavam de “último suspiro”. Outra coisa é a morte decorrente da cessação da relação interativa com quem se vai. A morte mata um pouco, também, quem fica, que na morte do outro perde uma de suas referências, perde a referência bilateral da ressocialização contínua, que é o pilar da sociedade. 
A ressurreição é mais comum e normal do que supomos. Nas aulas de sociologia que eventualmente dou nos cemitérios para alunos do curso de Ciências Sociais da Faculdade de Filosofia da USP, segunda morte e ressurreição são temas subjacentes e implícitos. A maioria nem se dá conta de que a visita aos lugares da memória é um modo de resistir, em nome do que os mortos foram, à segunda morte. Nossos mortos morrem de novo quando nós os abandonamos pelo esquecimento. Renascem quando deles nos recordamos, seja nas visitas a seus jazigos, seja nas conversações em que os rememoramos. 
Nunca encontrei Monteiro Lobato pessoalmente, mas me lembro vivamente de um dia de 1948 quando a professora do terceiro ano do Grupo Escolar Pedro Taques, na estação de Guaianases, um pequeno povoado de gente muito pobre, comunicou aos alunos que ele havia morrido. E nos disse que ele faria falta porque escrevera histórias para crianças como nós. Mais tarde, quando tive dinheiro para comprar livros, eu descobriria que histórias eram essas. E numa visita ao Cemitério da Consolação fui visitar seu túmulo para ouvir as palavras de seu silêncio que falam dentro de mim sobre a imortalidade de seu saber e de sua alma de criança. 
Tenho um número grande de conhecidos nos cemitérios de São Paulo e de outros lugares. Gente que nunca vi, mas que mesmo na sua morte deram vida à sociedade em que vivo. Já saí de minha casa, no Butantã, só para visitar o túmulo do capitão Joaquim Távora no Cemitério do Chora Menino, lá para os lados de Santana. Ele foi o grande comandante da Revolução de 1924 que sonhou com um país que não chegou a ver, democrático e próspero: fora abatido num ato de traição em combate na Rua Vergueiro. Surpreendeu-me que, sepultado tão longe de seus familiares e amigos, ainda haja quem mantenha limpa e bem cuidada sua campa. Alguém que o ressuscita todos os dias em nome de uma generosa consciência de pátria. 
No Cemitério da Consolação, visito imaginariamente o túmulo, que já não existe, de Emiliano, o filho do poeta Fagundes Varela. Em horas tardias vinha o poeta chorar os versos do Cântico do Calvário sobre um montículo de terra, na Quadra dos Anjos Pequenos, a dor pelo seu menino que morrera de pobreza numa casa simples do bairro do Brás, aos 3 meses de idade. Ainda posso ouvir seus versos soprados pela brisa da manhã: “Eras na vida a pomba predileta / Que sobre um mar de angústias conduzia / O ramo da esperança”. 
Com frequência junto minha gratidão à Prece, do escultor Bruno Giorgi, no túmulo de Armando Sales de Oliveira, criador da Universidade de São Paulo. Milhares de brasileiros, de São Paulo e de outros Estados, puderam estudar na melhor universidade pública do País graças à decisão desse estadista que, em 25 de janeiro de 1934, a criou como um grande e imorredouro gesto da civilização contra a barbárie. Não fosse esse gesto eu mesmo e a maioria dos alunos que ali me ouvem nunca teríamos tido a oportunidade de ingressar na universidade.
A ressurreição está também simbolizada na mais bela escultura cemiterial que conheço, O Sepultamento, de Victor Brecheret. No Cemitério da Consolação, ela celebra a vida cidadã de d. Olívia Guedes Penteado e seu marido, patronos da formação de grandes artistas paulistas. Mesmo que muita gente se mostre indiferente aos mortos e ao que eles representam, a arte funerária dos nossos cemitérios fala pelos ausentes e os povoa com a saudade do belo. Quem assume a grande missão da emancipação dos seres humanos de suas misérias e carências, as da matéria e as do espírito, nunca está só. Nem morre.
*
José de Souza Martins é sociólogo, professor emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Autor, entre outros livros, de Uma Sociologia da Vida Cotidiana (Contexto, 2014)