FUTURO - O Rio Pinheiros corta São Paulo de norte a sul e terá uma das hidrolinhas
Caio Pimenta/SPTuris
Os maltratados rios e represas de São Paulo são lugares “extraordinários”, na opinião doespecialista em infraestrutura fluvial Alexandre Delijaicov. A descrição é pouco usual,principalmente por se referir a águas que, “em alguns pontos, não são líquidas, mas uma pasta”,nas palavras do próprio acadêmico. O estudioso, no entanto, leva em conta o protagonismo queas águas paulistanas já tiveram e podem voltar a ter na cidade.
HIDROLINHAS - Jair Tatto apresentouproposta que cria as duas primeiraslinhas da cidade
Gute Garbelotto/CMSP
Essa importância histórica, perdida nas últimas décadas, pode serretomada por meio da Lei 16.010/2014, proposta pelo vereadorRicardo Nunes (PMDB) e promulgada em junho. A legislação prevêa incorporação do Sistema de Transporte Público Hidroviário deSão Paulo (STPHSP) à rede de transporte coletivo. Ou seja, opaulistano poderá navegar por rios e represas da cidade e pagarcom o Bilhete Único, já que os portos estarão integrados aosistema de ônibus, metrôs e trens.
Delijaicov, que é arquiteto da Prefeitura de São Paulo, professordoutor e coordenador do Grupo Metrópole Fluvial da Faculdadede Arquitetura e Urbanismo (FAU) da Universidade de São Paulo (USP), diz que o STPHSP poderia ser composto por cincopotenciais hidrovias: uma no Rio Tietê, duas no Rio Pinheiros, umana Represa Guarapiranga e outra na Represa Billings.
A via do Rio Tietê, sozinha, teria 30 quilômetros de extensão, amaior entre as três hidrovias lineares que devem integrar osistema paulistano. Nos rios os trajetos serão feitos em linha reta,mas nas represas não, então é quase impossível calcular a extensão e quantidade das travessias. “Nos lagos (represas), a possiblidade de ligações é ilimitada, lembra uma teia de aranha”, explicaDelijaicov, um dos profissionais que deram subsídios à elaboração da lei.
AUTOR - Projeto de Ricardo Nunes criou sistema hidroviário interligado ao Bilhete Único
Comunicação Ricardo Nunes
LINHAS AQUÁTICAS
Quem tem condições financeiras paracomprar uma embarcação e pagar pelaancoragem sabe o valor de cortar caminho. Aadministradora Renata Maynard leva hoje 13minutos para chegar ao trabalho de jet ski,pela represa Guarapiranga, em vez deperder 2 horas e meia todos os dias em seuautomóvel na Estrada do M’Boi Mirim. Ela foiouvida pela equipe do portal da CâmaraMunicipal de São Paulo (CMSP). Seu pai, oempresário Ricardo Maynard, é outro quedesistiu do asfalto: também vai trabalhar de jet ski, na Capela do Socorro, e chega emapenas 10 minutos. “Aproveito a paisagem eainda tenho segurança”, conta. De carro,levava pelo menos 1 hora e 40 minutos.
Para a mesma reportagem, a equipe do portal fez um teste. Às 10 horas de uma sexta-feira, emperíodo de férias escolares, um dos repórteres percorreu de ônibus em 1 hora e 15 minutos os10,4 quilômetros que separam o Jardim Horizonte Azul, no extremo sul de São Paulo, do bairro de Santo Amaro, também na zona sul. O trajeto foi feito pela congestionada Estrada do M’Boi Mirim. No mesmo dia e horário, outro repórter fez o deslocamento de lancha, a uma velocidade média de 35 km/h, e levou 17 minutos.
A Lei 16.010 determina que o STPHSP tenhadeslocamentos que prezem pela economia,segurança, eficiência, conforto e rapidez. Ofluxo das embarcações deverá ser “constantee regular”. “Do ponto de vista imediato eprático, a legislação poderá beneficiar cercade 2 milhões de pessoas que vivem embairros da zona sul, como Grajaú, Pedreira eJardim Ângela”, acredita o vereador RicardoNunes, autor do projeto.
Até o fechamento desta edição, a Prefeituranão tinha regulamentado a lei e decididocomo vai operacionalizar o sistema. Mas o Plano Diretor Estratégico (PDE) do Município,aprovado pela CMSP e promulgado em julhopelo prefeito Fernando Haddad (PT), adiantaalgumas exigências sobre o que os portos depassageiros devem ter: serviços públicos eproximidade com trens, metrôs, ônibus,ciclovias, serviços de compartilhamento deautomóveis e estacionamentos, além dearticulação com ofertas de moradia popular.
Um dos pontos positivos é que ainfraestrutura para navegação depassageiros exige gastos mínimos. “O cais e a atracagem são muito simples, [requerem]apenas um deque de madeira”, diz Delijaicov.Não seria necessário aprofundar os leitosdos rios, já que, para o transporte depessoas, no máximo 1 metro do casco fica submerso. Tampouco é preciso fazer desapropriaçõese construir eclusas para levar o passageiro de uma estação a outra. Assim como no sistemametroviário, são as pessoas que se locomovem entre os pontos.
As cinco potenciais hidrovias a integrar o STPHSP são indicadas pelos estudos do GrupoMetrópole Fluvial: Rio Tietê, Rio Pinheiros inferior (das imediações da estação de trem Ceasa atéa Usina Elevatória de Traição, na altura da estação de trem Vila Olímpia), Rio Pinheiros superior (desde a estação Vila Olímpia até a Billings) e represas Bilings e Guarapiranga. As duas primeiraslinhas podem surgir de projetos de lei (PLs) em tramitação na CMSP. O PL 136/2013, do vereadorJair Tatto (PT), cria a travessia entre M’Boi Mirim e Capela do Socorro, separados pela represaGuarapiranga. O PL 267/2013, proposto também pelo petista, liga Grajaú e Pedreira, que estãoem margens opostas da represa Billings.
TIETÊ - Ônibus anfíbio navegou o rio canalizado para divulgar evento náutico
Divulgação Boat Show
Com as iniciativas, Tatto pretende reduzir a vulnerabilidade social de quem mora às margens dasrepresas: “Essas regiões não oferecem empregos suficientes para todos os moradores, e por issoa maior parte deles enfrenta horas de trajeto todos os dias, gerando inclusive danos à saúde”. Para Delijaicov, as duas travessias propostas pelo vereador poderiam funcionar como um primeiroteste do sistema hidroviário, com dois barcos em cada trecho. “As linhas propostas são as maisurgentes, mas deveria haver uma também no Canal Pinheiros e outra no Tietê”, observa oespecialista.
LONDRES - Na capital inglesa, as hidrovias foram recuperadas nos anos 1960
Carolline S. C. Rocha
ROTERDÃ - No primeiro plano, táxi aquático em águas holandesas
Wagner Correa
O Grupo Metrópole Fluvial tem transmitido à Prefeitura os detalhes dos portos que imagina para a cidade. Eles teriam centros de cultura, lazer, assistência social, saúde, educação ambiental focada na reciclagem e educação esportiva voltada ao remo e navegação a vela. “Seria uma praça de políticas sociais que, por estar na beira do canal ou lago navegável, passaria a ter um papel importantíssimo para mudar a mentalidade da sociedade, do cidadão, visando à preservação da qualidade ambiental urbana, ao bem-estar coletivo e individual”, diz o coordenador do grupo, Alexandre Delijaicov.
A ideia é que os cais sejam ponto de encontro natural e prazeroso entre os paulistanos, que lá poderão acessar vários serviços públicos. Enquanto os pais usam o corredor aquático para trabalhar ou estudar, por exemplo, os filhos aprendem esportes hoje reservados à elite. “Quem veleja ou rema são os filhos, netos e bisnetos dos diretores de empresas alemãs e suecas que se instalaram na cidade. Essa injustiça social tem que ser superada através do fomento, a toda a população, do direito de remar e velejar”, defende Delijaicov.
NAVEGAÇÃO NO TIETÊ
Em 17 de setembro, um ônibus anfíbio navegou pelo Tietê, como parte das atrações do evento São Paulo Boat Show. Uma das passageiras, Marlene Maia Matos, de 80 anos, chegou a nadar naquelas águas nos anos 1940. “Aprendi a nadar no Tietê, tomei água do rio quando tinha 10 anos. É muito triste estar navegando por ele nestas condições hoje”, contou emocionada.
A questão que muitos paulistanos fazem é: será possível utilizar águas tão poluídas, que lembram esgoto a céu aberto? Para Delijaicov, a melhor saída para despoluir é exatamente voltar a navegar. Primeiramente porque a poluição é inofensiva para os barcos e os passageiros não terão contato com a água. Além disso, o uso tornará mais evidente a necessidade de cuidar dos rios e represas. “A hélice vai enroscar no sofá [atirado à água] no primeiro dia. Com três ou quatro horas diárias de limpeza e manutenção do sistema, como no metrô, não vai enroscar mais”, diz o professor, adepto da teoria de que “quem usa cuida”.
Nas horas dedicadas à manutenção do sistema aquático, entrariam em cena os barcos limpadores, nos moldes dos usados em países como França e Holanda, que utilizam bastante o meio fluvial. São embarcações que aspiram a água, peneiram a superfície com uma escumadeira, escovam as paredes dos canais e retiram objetos maiores, como as bicicletas comumente encontradas nas hidrovias holandesas.
RAPIDEZ - Ricardo Maynard vai de jet ski ao trabalho, pela Guarapiranga, em 10 minutos
Luiz França/CMSP
Com um sistema rodoviário saturado, “a cidade poderá sair na frente na construção de uma alternativa eficiente, barata e ambientalmente adequada” de transporte, diz o vereador Ricardo Nunes. Os Estados Unidos e alguns países da Europa, por exemplo, possuem hidrovias regionais, interligando cidades. Projetos para sistemas hidroviários urbanos, dentro de uma cidade, no entanto, são raridade no mundo.
A “infraestrutura azul” paulistana pode ser uma ótima solução, até mesmo revolucionária para os transportes na capital. Mas vai além. “Não pense que o sistema hidroviário municipal é um projeto setorial de transporte. É também, mas toda hidrovia urbana é um projeto de desenvolvimento urbano”, diz Delijaicov.
Sistema confortável e sustentável
De acordo com os especialistas que vêm elaborando a implementação do Sistema de Transporte Público Hidroviário de São Paulo (STPHSP), as embarcações utilizadas deverão ser movidas a eletricidade, para não poluir o meio ambiente. Também não haverá poluição sonora, já que os barcos serão silenciosos. As cabines deverão ser fechadas com vidro e terão ar-condicionado, proporcionando conforto aos passageiros e protegendo-os do mau cheiro. Os vidros também evitarão que se atirem objetos na água. Todos os viajantes terão de fazer os percursos sentados e os barcos maiores vão acomodar no máximo 200 pessoas, de modo que o embarque e o desembarque não demorem.
As embarcações serão controladas por robôs, com pilotos para situações de emergência. “Pode parecer estranho, mas não é algo banal, como um barco feito no quintal”, diz o professor Alexandre Delijaicov, coordenador do Grupo Metrópole Fluvial, da USP. Segundo o especialista, o preço dos veículos aquáticos é equivalente ao dos utilizados no transporte público terrestre.
Modelo na utilização do transporte hidroviário, Londres possui, atualmente, alguns barcos com acesso à internet sem fio e lanchonetes. Os roteiros feitos por eles têm vistas privilegiadas, como o trajeto entre os museus Tate Britain e Tate Modern. Apesar da importância histórica, as hidrovias londrinas passaram por um processo de abandono e foram recuperadas apenas nos anos 1960. Com a Lei 16.010/2014, espera-se que São Paulo siga o mesmo exemplo.
Isriya Paireepairit/Flickr/CreativeCommons
Quando São Paulo era navegada
Durante séculos, foi possível se deslocar pelos cursos d´água da cidade de São Paulo. No lugar onde hoje fica a Avenida Juscelino Kubitschek havia um rio por onde circulavam canoas. Até o século 19, a Rua 25 de Março recebia embarcações e a Ladeira Porto Geral tem esse nome porque já abrigou um porto. O Rio Pinheiros já foi uma rota para interligar aldeias indígenas e depois sediou regatas. O Tietê era local de recreio, com passeio em barcos por suas águas limpas e calmas, embelezadas por florestas. Em 1920, as embarcações paulistanas chegavam a 2 mil – considerando apenas as licenciadas, mas o foco nos transportes rodoviários fez esses números caírem vertiginosamente ao longo dos anos.
Em 1899 surgiu o Clube Esperia, à época voltado ao remo no então sinuoso Tietê. Outra agremiação icônica foi o Clube de Regatas Tietê, fechado em 2012 após 105 anos de funcionamento. No rio, acontecia uma famosa prova de natação, a São Paulo a Nado, com percurso de 5,5 quilômetros entre a Ponte Vila Maria e a Ponte das Bandeiras. A travessia foi realizada entre 1924 e 1944, quando a poluição começava a deteriorar aquelas águas.
Assim como ocorre com o Rio Pinheiros, o trecho paulistano do Tietê passa por um canal artificial, construído dentro do chamado leito maior do rio, que se estende pela grande área antes alagada durante as cheias. De 1937 a 1958, o Pinheiros teve seu curso revertido para geração de energia – deixou de ser um afluente do Tietê para desaguar na represa Billings.
“Invadimos, loteamos e vendemos o leito maior dos dois rios. Não faço juízo de valor, aconteceu e a cidade não vai retroceder”, diz o professor Alexandre Delijaicov, sobre as margens aterradas e hoje ocupadas por avenidas. Segundo ele, mais da metade da metrópole ocupa, atualmente, o leito maior dos rios. Dois exemplos são a Vila Guilherme e a parte baixa da Vila Maria, que estão no leito maior do Tietê, e o Jardim Europa, no Pinheiros.
Fontes: Alexandre Delijaicov, vereador Ricardo Nunes, Clube Esperia e livro Tietê, presente e futuro
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Arthur Busin, atleta do Clube Esperia, salta de trampolim no Tietê em 1927
Acervo Histórico Clube Esperia
Sede do Clube Esperia, em 1910
Acervo Histórico Clube Esperia
Regata mista no Rio Tietê, na década de 1910
Acervo Histórico Clube Esperia
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