segunda-feira, 28 de julho de 2014

Crise da água cai nas agências reguladoras


ANDRÉ BORGES - O ESTADO DE S. PAULO
26 Julho 2014 | 17h 51

Antaq acusa ANA de omissão na função de equilibrar uso da água que, por sua vez, diz que a primeira nunca apresentou uma solução

BRASÍLIA - A escassez de água na Região Sudeste começou a causar fissuras dentro do governo federal. A crise, que até agora era tratada como um problema restrito ao governo de São Paulo, sendo observada à distância pela União, acabou desembocando em troca de acusações e desentendimentos entre as agências reguladoras. 
A Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq), responsável pela administração do transporte fluvial no País, acusa a Agência Nacional de Águas (ANA) de ser omissa em sua função de garantir o equilíbrio no uso da água para diferentes propósitos: abastecimento, geração de energia e transporte de carga. A Antaq também disparou críticas contra o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS), acusado de privilegiar apenas o plano de geração de energia e ignorar o resto.
Chico Siqueira/Estadão
Hidrovia Tiête-Paraná, que era usada para receber barcaças com cinco mil toneladas de grãos, serve agora para diversão de pescadores
“A ANA não faz o básico, que é garantir o uso múltiplo da água. Nem a ANA nem o ONS respeitam essa regra. Não somos consultados em nada, quem decide tudo são eles. Ficamos sabendo das decisões de vazão do Tietê-Paraná na última hora. Todos simplesmente ignoram a navegação”, disse ao Estado o diretor da Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq), Adalberto Tokarski. 
O diretor da ANA, Vicente Andreu, reagiu às acusações. “A Antaq reclama, mas a verdade é que eles nunca apresentaram uma solução. Uso múltiplo da água não significa uso equivalente. O departamento hidroviário de São Paulo apresentou duas propostas para o ONS para resolver o problema. A Antaq nunca apresentou uma proposta”, afirmou.
O ONS afirma que as decisões sobre a vazão dos rios são técnicas e decididas pelos membros do Comitê de Monitoramento do Setor Elétrico, ligado ao Ministério de Minas e Energia.
Rusgas. O clima na Antaq é de indignação. As rusgas entre as agências reguladoras começaram a surgir em maio, com a redução de vazão de água nas hidrelétricas do sistema Tietê-Paraná. A medida afetou diretamente o tráfego de barcaças na hidrovia, que é a mais movimentada do País. Há quase um mês, as operações foram completamente paralisadas. 
O diretor da agência, Adalberto Tokarski, fez um levantamento sobre o reflexo da retenção de água na Tietê-Paraná para a movimentação de carga. “Entre maio e novembro do ano passado, 2 milhões de toneladas de soja e milho passaram por essa hidrovia. Neste ano, se ela permanecer intrafegável nesse período, serão colocados 45 mil caminhões a mais nas estradas da região, para causar, mais uma vez, aquelas filas imensas nos portos do Sudeste. Isso é um absurdo.”
Questionada sobre o assunto, a ministra do Meio Ambiente, Izabella Teixeira, saiu em defesa da ANA. Em entrevista ao Estado, disse que a Antaq não propõe soluções para a situação. “A ANA tem uma proposta clara sobre hidrovia, e é verdade que o ONS tem uma certa resistência a isso. Mas a Antaq nunca soube discutir esse assunto. Ela não está preparada para esse debate político”, disse Izabella. “Por que a Antaq não constrói o diálogo? Por que não procura o seu ministro para discutir o tema? Se a situação está no limite, em vez de ficar acusando, o que ela deveria fazer é provocar o debate e tentar construir o marco regulatório que viabilize isso.” Para a diretoria da Antaq, as suas propostas são constantemente rejeitadas. Adalberto Tokarski diz que os problemas de navegação também começaram a afetar operações no rio São Francisco, onde empresas estão paralisando o transporte de carga e demitindo funcionários. A queixa foi levada à Comissão de Infraestrutura do Senado. “Ninguém está dizendo que não se deve gerar energia ou abastecer a população com água. O que está em questão é a forma de gestão. O uso da água é mal feito”, disse o diretor da agência.

Fundação Casa


JOSÉ DE SOUZA MARTINS - O ESTADO DE S. PAULO
19 Julho 2014 | 16h 00

Escritor mudava de romancista para jornalista com a prontidão do intelectual completo



Arquivo pessoal
Havana, 1981. Márcio Souza, João Ubaldo, Guarnieri e Martins no Prêmio Casa de las Américas

“Zé, me arruma um lápis e um pedaço de papel” - disse-me João Ubaldo, um pouco afobado, depois de apalpar-se à procura de um e outro. Eu também não tinha nem lápis nem papel. Tínhamos sido levados em ônibus especial do Habana Riviera, onde estávamos hospedados, para aquela casa, sem que soubéssemos do que se tratava. Lá, ficamos sabendo que era a casa de Armando Hart, ministro da Cultura de Cuba. Tratava-se de um encontro social de encerramento das atividades do júri do Prêmio Casa de las Américas, no início de 1981, para o qual cinco brasileiros haviam sido convidados: Antonio Candido, João Ubaldo Ribeiro, Gianfrancesco Guarnieri, Márcio Souza e eu. 
Em cadeiras de plástico, no jardim da casa, sentei-me ao lado de João Ubaldo e de Berenice, sua mulher, que estava grávida do primeiro filho de ambos. Pelo canto do olho, vi que um carro preto parara na entrada da casa e dele saía Fidel Castro. Disse a João Ubaldo: Fidel chegou. Ele ria de mim, como se eu estivesse fazendo troça, quando Fidel entrou no jardim, nos cumprimentou e sentou bem perto de nós. Ubaldo saiu por um instante à procura de papel e lápis e voltou com um exemplar do Granma, o jornal do Partido Comunista Cubano, e um lápis. Na margem branca anotava o que Fidel dizia no bate-papo que ali começava e duraria umas três horas e o tempo de consumo de dois charutos. Numa surpreendente informalidade, Fidel discorreu sobre as relações de Cuba com os diferentes países da América Latina, contou o que os cubanos “andaram aprontando” na Venezuela, pintou um retrato de Cuba naquele momento. Pouco depois de nossa volta ao Brasil, João Ubaldo publicou a “reportagem” inesperada nas páginas do Pasquim. Vi a metamorfose do romancista e contador de casos em jornalista na minha frente, uma transfiguração súbita a denotar a prontidão de um intelectual completo. 
Nós nos conhecemos em Havana, no aeroporto, chegando. Brincalhão, juntava os diferentes e os desconhecidos, que éramos quase todos ali, mas um brincalhão sério. Deixou isso claro na noite de nosso último jantar no pequeno hotel em que fomos alojados, na Ilha de Pinos, para fazer a leitura dos numerosos originais de livros em língua portuguesa que concorriam ao prêmio. Sairíamos de lá para Havana com o nome da vencedora brasileira, Ana Maria Machado, pelo belo livro De Olho nas Penas. 
Estávamos conversando quando Ubaldo pegou uma laranja da mesa e cortou-a ao meio. De relance, o vimos tirar de dentro dela uma nota de um dólar, ainda molhada de sumo. Escritor fazendo mágica? “Não é mágica”, explicou. Cortou outra, e outra nota de dólar saiu de dentro. Os dois cicerones que nos acompanhavam, e se soube serem do serviço secreto, alarmados, queriam saber como se fazia aquilo. “Aqui dólar dá nas laranjeiras”, explicou com malícia. “Vocês estão perdendo dinheiro.” Provavelmente, não dormiram naquela noite. 
Depois da volta, sobretudo depois de 2000, com a internet, trocamos muitas mensagens em torno de um interesse comum, o uso popular das palavras “novas” que, através da publicidade, do rádio e da TV chegam ao cotidiano das pessoas comuns. Ele tinha uma besteiroteca de fotos de propaganda e avisos que documentam o uso popular da língua portuguesa, como o escrito num bolo: “Parabéns grassa você é muito espessial”, “Deus potrêja esta casa”, “Vende-se filhote de lavrador” (num canil), “Vende-se cochão altopédico”. Acrescentava pequenos comentários, como se fosse coisa séria.
Certa vez, decidi escrever um artigo para minha coluna no caderno Metrópole sobre a casa da marquesa de Santos. Um colega vira na Academia Brasileira de Letras cartas de amor trocadas entre d. Pedro I e sua amante. Ele se assinava “Imperador” e ao lado da assinatura colava alguns dos seus pelos pubianos. Escrevi a João Ubaldo pedindo socorro. Na mensagem à bibliotecária da Academia, ele explicou que um amigo precisava de informações sobre d. Pedro I. Mas formal, para evitar a suspeita de malícia, foi logo esclarecendo: “Não é minha intenção envolver a senhora com as trapalhadas amorosas de Sua Majestade”. Não sei como ele fez, porém em pouco tempo alguém me escrevia dizendo mais ou menos o seguinte: “Professor, encontrei as cartas, mas não encontrei os pelos. Tenho uma amiga que é bibliotecária na Biblioteca Nacional, onde também há cartas de d. Pedro. Vou pedir a ela que faça uma busca”. Mais adiante uma simpática pessoa da BN me escrevia: “Professor, não achei as cartas, mas achei os pelos numa caixinha”.
*
José de Souza Martins é sociólogo, professor emérito da Faculdade de Filosofia da USP e autor, entre outros, de 'uma arqueologia da memória social - autobiografia de um moleque de fábrica' (Ateliê)

Padrão Máfia


WÁLTER FANGANIELLO MAIEROVITCH - O ESTADO DE S. PAULO
19 Julho 2014 | 16h 00

Esquema desbaratado pela Operação Jules Rimet aponta para responsabilidade da Fifa, por conivência ou negligência

UANDERSON FERNANDES/AGÊNCIA O DIA
Investigação. Ingressos apreendidos com Paul Whelan, filho do CEO da Match
Certa vez, sobre o fenômeno representado pela criminalidade organizada transnacional, a pesquisadora escocesa Alison Jamieson sustentou que as máfias tinham trocado, fazia muito tempo, a metralhadora pelo mouse do computador. 
Em outras palavras, nas internacionais criminosas de matriz mafiosa a ideologia dominante é a do lucro. E, diante disso, as máfias passaram a privilegiar - em vez dos crimes de sangue espetaculares - o emprego de tecnologia de ponta, a infiltração nos órgãos de poder e corporações. Mais ainda - isto está no DNA mafioso -, tendem a submeter as instituições financeiras a que se tornem dependentes das movimentações financeiras de suas atividades ilegais.
Com efeito, na Convenção das Nações Unidas de 1988 contra o tráfico ilícito de drogas, concluiu-se que estava o crime organizado utilizando o sistema bancário-financeiro para lavar dinheiro e reciclar capitais em atividades formalmente ilícitas.
Por outro lado, na abertura da Convenção das ONU sobre crime organizado sem fronteiras, em dezembro de 2000 na cidade italiana de Palermo, o então secretário-geral Kofi Annan advertiu sobre a forma de atuar do crime organizado, ou seja, de maneira reticular, e isso estava a gerar lucro a crescer 40% ao ano. Para o ex-czar antidrogas da ONU Antonio Maria Costa, na crise econômica norte-americana o sistema interbancário de compensações não quebrou porque circulava o capital movimentado pela criminalidade organizada. E a supracitada Convenção de Palermo de 2000 - único instrumento jurídico internacional de contraste às associações criminosas transnacionais - preconizou, além da cooperação internacional, a adoção de um tipo penal comum, minimalista e abrangente a ponto de alcançar também associações de doleiros, lavadores de dinheiro sujo, traficantes, cambistas e quejandos.
Diante desse quadro criminal preocupante, com evasões e sonegações fiscais continuadas de permeio, não podem ser consideradas surpresas as recentes ações de cambistas a operar no Brasil redes criminosas transnacionais, empenhadas na venda de ingressos para os jogos da Copa da Fifa. Na disputa da África do Sul ocorreu o mesmo e a Fifa, com seu secretário-geral, Jérôme Valcke,- agora no Brasil e sem corar num discurso do agrado apenas à criminalidade organizada-, sustentou a impossibilidade de se colocar um fim a esse sistema criminoso. Só que os cambistas associados criminosamente não contavam com a eficiência da Polícia Civil do Rio de Janeiro e o empenho do Ministério Público desse Estado federado.
Pelo que se percebe, a Fifa terceirizou, para o mundial no Brasil, a venda de ingressos e a distribuição de “pacotes de hospitalidade” (jogo com mordomias). O terceiro comprometeu-se a vender pelo preço de face, mas, sem honrar o compromisso e sem construir um mecanismo eficaz de controle, os bilhetes viraram uma espécie de título ao portador, negociáveis por tradição: de mão em mão.
No caso de maior repercussão na mídia, a empresa terceirizada de razão Match Services, cujo sócio-proprietário afirmou prestar serviços à Fifa desde 1999, enviou ao Brasil seu CEO (Chief Executive Officer), Raymond Whelan. Por seu turno, Whelan teria revendido ingressos e pacotes de hospitalidade a um notório cambista internacional, o argelino Lamine Fofana. Segundo a polícia do Rio, Fofana, que ingressou no Brasil como turista e se apresenta como proprietário de uma empresa de nome Atlanta, ligou 900 vezes para um celular da Fifa e tentou subornar policiais que investigavam sua organização criminosa.
Conforme as investigações - já existe uma ação judicial penal em curso promovida pelo Ministério Público -, Fofana operava uma rede abastecida de ingressos por Whelan. O tal Whelan e seu cunhado - também sócio-proprietário da terceirizada Match, sediada na Suíça - negam as increpações e alertam que as vendas a Fofana foram por uns trocados acima do preço de face. Nada falaram sobre a divisão de lucros ilícitos após a revenda por parte do argelino.
A organização criminosa operada por Fofana restou desbaratada na operação policial Jules Rimet. A eventual coautoria Raymond-Fofana será objeto, no devido processo, de decisão judicial de mérito. Dados investigatórios recentes apontam para um esquema ilícito de revenda, no câmbio negro, de mais de mil ingressos por partida disputada na Copa. Pelos cálculos policiais, o ganho ilegal líquido teria, por baixo, alcançado R$ 200 milhões.
Pano rápido. Não dá para engolir a “cara de paisagem” do presidente da Fifa, como se a entidade não tivesse nenhuma responsabilidade no caso, quer por negligência, quer por conivência. Terceirizar, muitas vezes, é uma forma mafiosa de colocação de laranjas e posterior recebimento por fora. E a terceirização da Fifa é feita, como admitiu o secretário-geral Jérôme Valcke, com a ciência de que seria impossível evitar a revenda criminosa no câmbio negro. No particular, o padrão Fifa copia objetivamente, no quesito terceirizações, o padrão Máfia.
*
Walter Fanganiello Maierovitch é desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) e presidente do Instituto Brasileiro Giovanni Falcone de Ciências Criminais