quarta-feira, 9 de julho de 2014

O inferno de Dante

JUCA NA COPA

Jamais a seleção brasileira sofreu um massacre semelhante, nunca foi tão humilhada
DA ESTRELA de David Luiz para o inferno de Dante, e de seus companheiros, foi um passo. Ou melhor, cinco. Cinco passos, cinco passes, cinco gols em menos de meia hora numa semifinal de Copa do Mundo em casa!
Entre tantas exclusividades que o futebol brasileiro amealhou em sua portentosa história, agora há mais uma, acachapante.
Claro que a culpa não foi de Dante, mas ele, na defesa vazada sete vezes, e Bernard, no ataque inoperante, foram as novidades de Felipão, que agora apanhará feito boi ladrão porque resolveu atacar em vez de defender.
A vida é assim. Nós, brasileiros, que detestamos a prudência dos três volantes, regredimos tanto no futebol de fantasia que já foi jogado por aqui que invertemos as prioridades.
Se o cartola da CBF falou em ir para o inferno em caso de derrota, esperemos que de lá ele não volte e que os que ficarem por aqui entendam que a derrota tem de servir para fazer desta merecida lição a base para novos tempos, como os alemães fizeram depois da Copa deles, em 2006, no saneamento das finanças dos clubes, na presença dos torcedores nos estádios, na execução do jogo limpo e bonito e na punição aos corruptos, porque corruptos também há por lá, mas punidos sempre que pegos, como aconteceu com o presidente do Bayern Munique.
Os 5 a 0 do primeiro tempo, como uma homenagem aos pentacampeões, um gol para cada título, soaram tão espantosos que ensinaram que a humilhação dói menos que o golpe inesperado, como o de 1950, no Maracanã.
Convenhamos que, por mais que o futebol permita tudo, que piores ganhem de melhores e que a esperança é sempre a última que morre, se a frustração de 50 foi uma surpresa, a derrota de agora era meio que inevitável, embora não por 7 a 1, algo tão inverossímil que até parece mesmo conta de mentiroso.
Jamais havia visto um estado de tamanha perplexidade num estádio e não apenas entre os derrotados. Os vencedores também não esperavam tamanha facilidade, tanta que ficou constrangedor comemorar.
Castigo pior só o de ter de conviver com o Brasileirão daqui a uma semana se a lição que nossos treinadores tirarem desta bela Copa de gols e goleiros seja a de jogar atrás para não tomar de sete, em vez de jogar na frente para fazer sete.
Que Dilma Rousseff, ao menos, comece desde já a reforma que prometeu ao Bom Senso FC, porque é evidente que trocar Marin por Del Nero não renova coisa alguma, como não renovará a mera troca de técnicos da seleção.
O resto, como diria Felipão, que vá para o inferno.

Mais um capítulo da decadência

JOEL RUFINO DOS SANTOS
TENDÊNCIAS/DEBATES
O ASSUNTO É: A DERROTA DO BRASIL

A partir de 1970, começou a morrer o futebol "arte popular", que era da mesma natureza das sofisticadas cantigas do mar de Caymmi...
A Copa do Mundo me fez lembrar coisas insólitas, como é próprio das lembranças: "Vede --a pátria ao bretão ajoelhou-se, beijou-lhe os pés, no lodo mergulhou-se! Eles a prostituíram!". É verso de um poeta com então 19 anos de idade, Álvares de Azevedo, escrito há 150 anos, em que pedia anistia para os revolucionários da Praieira (1848-49).
Atualmente, não temos problemas com bretões, como a Argentina. O imperialismo bretão é frio. O norte-americano, depois de se livrar do soviético, arranjou tantos líos (confusão, como dizem os chilenos) que até nos permite enfrentá-lo diplomaticamente, como no caso Snowden.
Quem é, então, nosso bretão, que nos põe de joelhos, prostituindo Estados nacionais? Seu território é um paraíso luminoso sem fronteiras; suas igrejas, as arenas que chamávamos de estádios; seu Deus, a organização. Quem será?
Como nosso futebol chegou a colonizado da Fifa?
Nos primeiros 20 anos, o "football" foi inglês e de ricos, como o squash. Nas duas décadas seguintes, os brasileiros se apaixonaram por ele. Inventaram uma maneira de jogar sem os manuais comprados em lojas --o folder com as regras, as funções de cada posição, o uniforme, a chuteira, a bola, o glossário... Ignorando os manuais, a maneira popular desordenada de levar a bola até o gol driblando (se dizia, significativamente, "comendo") foi um processo cultural autônomo, desses que brotam sem cessar da vida social.
A partir da Revolução de 1930, que pareceu virar tudo de ponta-cabeça, a profissionalização e a federalização dos clubes enquadrariam esse processo. O futebol avançaria, agora, entre duas margens, a do Estado e a do mercado, dominação e lucro. Os saudosistas da fase anterior se chamavam legião porque, como no evangelho, eram muitos --é verdade que tinham saudade do amadorismo, mas não dos campos de terra, pastagens e zonas de agrião.
A nova fase deixou atrás de si esplêndidas ruínas. Fausto, a Maravilha Negra, por exemplo, foi sacrificado e morreu (1939) sem dinheiro e sem glória. Por quê? Sua arte era amadora, boêmia, resistente a táticas --o majestático parece, aliás, característico da arte popular, vide a escultura clássica, o auto medieval, o cordel, o mestre-sala... O triste fim de Fausto, como o de Policarpo Quaresma, não violou a primeira lei da história: ao vencedor, as batatas.
Na fase seguinte, mais ou menos entre 1940 e 1970, sob a república populista, tornamo-nos "os melhores do mundo", "o país do futebol" etc. Populista aqui não na acepção de demagogia, mas como a fórmula de poder carismático que empurrou as massas para dentro do jogo político. Foi bom ser povo naqueles anos: poderosos e pobres confiavam medianamente uns nos outros. Promiscuidade entre os de cima e os de baixo, mascarando a desigualdade e a violência, nossas melhores tradições. Leônidas, o Diamante Negro, foi o Getúlio Vargas do futebol.
A partir de 1970, começa a morrer o futebol "arte popular", que era da mesma natureza das esculturas de Nhô Caboclo, das alegorias de Fernando Pinto, das sofisticadas cantigas do mar de Caymmi...
O papel do técnico passou a ser o do tirano. Exerce tamanho controle emocional que os jogadores ficam intimidados, não conseguem mudar o jogo dentro de campo.
A primeira massificação do "football" no Brasil lhe dera uma nova qualidade: o drible, a finta, o suingue, o gesto de capoeira, o estilo machadiano de ir, mas não ir. Enquanto isso, a Europa renascia da guerra, a juvenilidade e o mercado feminino criaram o consumo de massa, que restabeleceu a renda média do sistema. Mercado de entretenimento --o disco, o cinema, a roupa, o esporte... É a sua lei, não pode ser violada.
Qualquer juízo de qualidade sobre o futebol que se joga hoje só faz sentido real se considerada essa história. O saudosista, ao ouvir um elogio a Neymar, comenta: "É que você não viu o Pelé!". O pai de Pelé, Dondinho, deve ter dito quando lhe elogiavam o filho: "É que você não viu o Zizinho!". Acabo de assistir à catástrofe Alemanha 7 x 1 Brasil. A saudade mata a gente.

Marx, hoje, po r ANTONIO DELFIM NETTO, na FSP



Desde a crise econômica de 2008, voltamos a discutir as ideias de Marx. Relembro aqui texto que escrevi em 2007 com algumas adaptações:
Marc Bloch, um dos maiores historiadores franceses, disse a um amigo, pouco antes de ser fuzilado pelos nazistas em 1944: "Eu também sou marxista, mas não tenho nenhuma necessidade de dizê-lo; sou marxista como sou cartesiano".
Hoje somos todos "marxistas", exatamente como somos cartesianos, kantianos, weberianos, keynesianos, einsteinianos e assim por diante. Para qualquer animal inteligente na segunda década do século 21, Marx é necessário, mas não suficiente. Os dois gigantes que estavam em Marx, o teórico e o revolucionário vão pouco a pouco tomando distância entre si. De sua imensa obra teórica ficarão sólidos resíduos, incorporados definitivamente à consciência da humanidade e que irão perdendo a sua identidade por submergirem no que se supõe ser o estoque das "verdades" que conhecemos.
A sua obra revolucionária, ao contrário, continua a empalidecer porque a experiência mostrou que o "marxismo" implementado distingue-se muito pouco da "ditadura dos intelectuais proletarizados", como queria Bakunin.
É ridículo pretender que Marx não existiu, ou que não tem importância. Ele foi um dos contrapontos com que dialogaram (às vezes até inconscientemente) os construtores da teoria econômica a partir do final do século 19. Por outro lado, o potencial criado pela hipótese do materialismo histórico acabou aprisionando, numa órbita em torno de Marx, quase todos os construtores da sociologia. Eles tentaram fugir à imensa força de atração de Fausto dialogando com ele! Essa tradição continuou até nossos dias. Como se pode entender diferentemente a obra de Croce, Raymond Aron, de Wright Mills, de Mannheim, de Ortega y Gasset ou mesmo de Schumpeter?
A obra de Marx só não conheceu a mais completa absorção pela corrente do pensamento universal porque, depois de 1917, foi falsificada e transformada na religião oficial do Império soviético. Em lugar da sociedade sem classes, eles construíram um mundo fantástico de opressão e de obscurantismo, como só intelectuais sabem fazer. A experiência mostrou que a vontade de poder, o desejo de submeter o outro homem, está no próprio homem e que ele só pode ser controlado por um regime autenticamente político.
A miséria humana não é produto da propriedade privada, pelo menos não exclusivamente. Os "intelectuais proletarizados" nunca entenderam, de fato, as dificuldades que cercam a organização de uma economia moderna. É por isso que o mundo comunista se dissolveu. A "Igreja" faliu. Agora qualquer um de nós pode ser "marxista", sem medo de ser feliz!