quarta-feira, 9 de julho de 2014

Marx, hoje, po r ANTONIO DELFIM NETTO, na FSP



Desde a crise econômica de 2008, voltamos a discutir as ideias de Marx. Relembro aqui texto que escrevi em 2007 com algumas adaptações:
Marc Bloch, um dos maiores historiadores franceses, disse a um amigo, pouco antes de ser fuzilado pelos nazistas em 1944: "Eu também sou marxista, mas não tenho nenhuma necessidade de dizê-lo; sou marxista como sou cartesiano".
Hoje somos todos "marxistas", exatamente como somos cartesianos, kantianos, weberianos, keynesianos, einsteinianos e assim por diante. Para qualquer animal inteligente na segunda década do século 21, Marx é necessário, mas não suficiente. Os dois gigantes que estavam em Marx, o teórico e o revolucionário vão pouco a pouco tomando distância entre si. De sua imensa obra teórica ficarão sólidos resíduos, incorporados definitivamente à consciência da humanidade e que irão perdendo a sua identidade por submergirem no que se supõe ser o estoque das "verdades" que conhecemos.
A sua obra revolucionária, ao contrário, continua a empalidecer porque a experiência mostrou que o "marxismo" implementado distingue-se muito pouco da "ditadura dos intelectuais proletarizados", como queria Bakunin.
É ridículo pretender que Marx não existiu, ou que não tem importância. Ele foi um dos contrapontos com que dialogaram (às vezes até inconscientemente) os construtores da teoria econômica a partir do final do século 19. Por outro lado, o potencial criado pela hipótese do materialismo histórico acabou aprisionando, numa órbita em torno de Marx, quase todos os construtores da sociologia. Eles tentaram fugir à imensa força de atração de Fausto dialogando com ele! Essa tradição continuou até nossos dias. Como se pode entender diferentemente a obra de Croce, Raymond Aron, de Wright Mills, de Mannheim, de Ortega y Gasset ou mesmo de Schumpeter?
A obra de Marx só não conheceu a mais completa absorção pela corrente do pensamento universal porque, depois de 1917, foi falsificada e transformada na religião oficial do Império soviético. Em lugar da sociedade sem classes, eles construíram um mundo fantástico de opressão e de obscurantismo, como só intelectuais sabem fazer. A experiência mostrou que a vontade de poder, o desejo de submeter o outro homem, está no próprio homem e que ele só pode ser controlado por um regime autenticamente político.
A miséria humana não é produto da propriedade privada, pelo menos não exclusivamente. Os "intelectuais proletarizados" nunca entenderam, de fato, as dificuldades que cercam a organização de uma economia moderna. É por isso que o mundo comunista se dissolveu. A "Igreja" faliu. Agora qualquer um de nós pode ser "marxista", sem medo de ser feliz!

André Luís Parreira: A goleada para a Alemanha, na FSP


PUBLICIDADE
Sua respeitada ciência, sua história de reconstrução, a economia robusta, os automóveis e, mais recentemente, a energia renovável fazem a Alemanha estar sempre presente em nossas rodas de conversa. Lá, um povo apaixonado por futebol e cerveja consegue grandes placares também fora do campo.
Por aqui, em 26 de junho e em ritmo de Copa do Mundo, foi sancionado pela Presidência da República o Plano Nacional de Educação (PNE). A meta mais comentada, embora não a mais relevante, tem sido a de se destinar 10% do PIB (Produto Interno Bruto) à educação em dez anos. Hoje, são investidos 6,4%.
Felizmente, há outras metas previstas no PNE, pois somente esse aumento do investimento, ainda que significativo, não será suficiente para alcançarmos placares de patamar alemão ou de qualquer outro país que seja destaque educacional. Podemos concluir isso com a projeção de alguns números recentes do relatório "Education at a Glance", da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).
Proporcionalmente, destinar 10% do PIB à educação faria o investimento médio por estudante saltar de aproximadamente US$ 2.900/ano para cerca de US$ 4.500, o que ainda fica muito aquém dos US$ 10 mil/ano investidos pela Alemanha.
O salário inicial médio de um professor de educação básica no Brasil passaria dos atuais US$ 5.000/ano para US$ 7.500 contra US$ 30 mil/ano na Alemanha. Como exigir cada vez mais anos de estudo e qualificação dos professores quando se oferece tão pouco?
Mas o investimento ainda terá que dar conta de outra triste realidade: a precária estrutura para o desenvolvimento de uma educação de qualidade para a ciência. Já tive a oportunidade de visitar escolas na Alemanha e constatei que o laboratório de ciências, aliado a projeto pedagógico, é parte do dia a dia desde o ensino fundamental.
Por aqui, segundo o portal QEdu.org.br, somente 2% das escolas públicas municipais possuem laboratório de ciências. Se esticarmos a amostra para escolas públicas, o que engloba as estaduais e as federais, o número cresce para 8%. E a pesquisa fala somente em possuir, nada sobre sua utilização efetiva.
No Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa) de 2012, com participação de 65 países, o placar em ciências ficou assim: Brasil com 405 pontos (59º lugar!) x Alemanha com 524 pontos (12º lugar!).
No quesito inovação tecnológica, os alemães solicitaram 20 vezes mais registros de patentes do que nós. E, se colocarmos no placar o número de prêmios Nobel desde 1901, teremos Alemanha 103 x 0 Brasil!
Ou seja, precisamos de muito mais que o investimento do PNE para melhorarmos nosso desempenho. Vamos ter que aprender com os alemães e trabalhar por muitos anos para reduzir as diferenças. Na educação, já estamos na prorrogação.
ANDRÉ LUÍS PARREIRA, 38, físico pela Universidade Federal de São João del-Rei e mestre em tecnologia pelo Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais, é diretor para o Brasil da Hiperlab, fabricante americana de planetários digitais
*

quinta-feira, 3 de julho de 2014

O real no seu 20º aniversário - ROBERTO MACEDO



O ESTADO DE S.PAULO - 03/07


Em face do que representa para a economia brasileira, o Plano Real merece comemorações nos dois dias que marcam os aniversários do que trouxe de bom. A primeira, do lançamento do plano, em 1.º de março de 1994, quando nasceu a Unidade Real de Valor (URV), de vida curta e morte anunciada. A segunda, do surgimento do real como papel-moeda, em 1.º de julho do mesmo ano, quando a URV expirou.

Em torno do último dia 1.º vieram vários artigos e depoimentos sobre o real neste aniversário, abordando vários de seus aspectos. Entre estes, a muito menor taxa de inflação que veio com ele e seu impacto muito favorável sobre os rendimentos dos mais pobres, os que mais sofriam o efeito corrosivo da fortíssima inflação sobre o seu dinheiro. E as dificuldades diante da necessidade de um controle mais firme da inflação, em particular a indisciplina que marca as contas públicas federais.

Vou tocar em outros dois aspectos. Começarei por mostrar como o padrão monetário brasileiro se degenerou por décadas antes do real. Em seguida argumentarei que o extenso período de elevadíssima inflação e de luta pela estabilização do valor da moeda moldou uma geração de economistas e um conjunto de políticas econômicas muito focados nessa estabilização, negligenciando um igualmente indispensável empenho no desenvolvimento econômico do País.

Quanto ao primeiro tema, foram oito (!) os padrões monetários que a partir de 1.º de novembro de 1942 marcaram a fase posterior ao mil-réis: cruzeiro, cruzeiro novo, novamente o cruzeiro, cruzado, cruzado novo, outra vez o cruzeiro, cruzeiro real e real. E por quatro (!) vezes um novo padrão foi introduzido cortando-se três zeros do anterior, começando com 1.000 réis = Cr$ 1. Na época do cruzeiro novo, entre 1967 e 1970, não houve nem emissão de novas notas, usando-se as mesmas do padrão anterior depois de carimbadas com o corte de três zeros.

O cruzado novo veio em 1989 com o corte de três zeros, mas já no ano seguinte surgiu outro cruzeiro, sem esse corte e que durou até 1993. Entre esses dois anos, porém, a inflação foi tanta que surgiu uma nota de Cr$ 500.000 (!) com a efígie de Mário de Andrade. Este, entre outras obras, escreveu Macunaíma, o "herói sem caráter". Mais para vilão, o nosso padrão monetário também não tinha caráter.

O primeiro cruzeiro começou em 1942, estampado com vultos históricos como Cabral, Duque de Caxias, Pedro I e outros. Getúlio Vargas, então ditador, ditou que também deveria ser mostrado. Mais à frente vieram expoentes da pintura, música e literatura. E na nota de valor imediatamente inferior (Cr$ 100.000) à que "homenageou" Mário de Andrade, um ninho de beija-flores. As duas últimas notas antes do real tiveram figuras folclóricas, uma baiana na nota de CR$ 50.000 e um gaúcho noutra de um décimo desse valor, ou CR$ 5.000, o que virou motivo de piadas e mostra a falta de cuidados em escolhas como essa.

É ver para crer. Essas notas e todas as demais desde o primeiro cruzeiro estão no portal do Banco Central (www.bcb.gov.br/?PADMONET). O que ali se vê é trágico e serve para assustar e prevenir quanto a um retorno ao passado pré-real. Este conseguiu reverter a história quando chegou. Já dura mais que todos os padrões que vieram após o cruzeiro de 1942, que chegou perto de 25 anos. Com mais cinco o real vai ultrapassá-lo.

Passando ao outro tema, quando comecei a estudar Economia, em meados dos anos 1960, no Brasil o tema de maior interesse da área era o desenvolvimento econômico. Dados de contas nacionais passaram a evidenciar, com o produto interno bruto (PIB) por habitante, as enormes diferenças entre países ricos e pobres. Após a 2.ª Guerra Mundial e até a década de 1970, o do Brasil cresceu bastante, mas sobreveio forte inflação que prejudicou o País. Em meados dos anos 1980, ela escapou do controle. E se tornou a preocupação central de economistas acadêmicos e de gestores da política econômica.

Com isso ganhou realce a disciplina Macroeconomia, cujos livros focam mais no propósito de estabilizar a economia. Em geral oriundos dos EUA, esses manuais costumam deixar o crescimento econômico numa posição secundária, recebendo apenas a atenção de uns poucos capítulos ao final.

Nos EUA isso é compreensível, porque já é um país desenvolvido. Aqui não se pode aceitar que as questões ligadas ao desenvolvimento econômico sejam também postas em segundo plano, pois ele é tão primordial quanto a estabilização. Saindo do economês, um avião tem muitos mecanismos para estabilização do seu voo, mas sem motores não voará. No Brasil é escassa a atenção dada aos motores da economia, em particular o investimento na expansão da sua capacidade produtiva.

Outro fator a moldar esse quadro é a grande influência exercida pelo mercado financeiro, cujas instituições hoje dispõem de grandes departamentos econômicos e economistas bem treinados, a fornecer enorme quantidade de informações que tomam grande espaço na mídia. Mas a preocupação central dessas instituições é gerir seus ativos, como ao ficarem de olho nas taxas de juros e para saberem se o governo vai pagar direitinho sua dívida com o mesmo mercado. O desenvolvimento econômico e outras questões de horizonte mais longo ficam, se tanto, na margem do alcance de seus radares.

Mais especificamente, o debate sobre a política macroeconômica é muito centrado no curto prazo e no chamado tripé, formado pelas políticas de metas da inflação, de contas públicas bem administradas, em particular seus déficits e dívidas, para não causar turbulências financeiras, e de taxa de câmbio flutuante, para atenuar desequilíbrios do setor externo. Uma luneta com zoom precisa apoiar-se nesse tripé para acomodar a visão de um País economicamente maior e também mais desenvolvido noutras dimensões e num futuro que não seja tão longínquo como que hoje se contempla.