domingo, 2 de março de 2014

A paternidade postergada - FERNANDO REINACH


O Estado de S.Paulo - 01/03

Mulheres que engravidam tarde correm o risco de gerar filhos com síndrome de Down. Faz anos que se suspeita que homens mais velhos correm o risco de gerar filhos com distúrbios mentais. Mas os estudos eram inconclusivos e sujeitos a críticas. Agora, um estudo envolvendo toda a população da Suécia parece ter colocado um ponto final na questão.

Foram estudadas crianças nascidas na Suécia entre 1973 e 2001, um total de 2.917.399 pessoas. Para cada uma dessas crianças foram determinados sexo, idade do pai na data de nascimento e se a criança era o primeiro, o segundo ou o terceiro filho.

Além disso, foi possível determinar se cada criança havia sido diagnosticada ou tratada para diversos distúrbios psiquiátricos, como autismo, déficit de atenção ou hiperatividade, psicoses, distúrbio bipolar e tentativas de suicídio. Estes dados constam nos bancos de dados do sistema de saúde sueco. O envolvimento com drogas também foi analisado usando o banco de dados da polícia sueca.

Usando os bancos de dados do sistema educacional foi possível determinar o desempenho acadêmico das crianças, se foram reprovadas, a avaliação acadêmica feita aos 10 anos de idade e se cursaram ensino superior.

Em seguida, foram excluídas da amostra crianças cujas datas de nascimento eram incertas, cuja gestação foi longa ou curta, ou que haviam passado uma parte da vida fora da Suécia. A amostra final foi de 2.615.081 crianças.

As crianças foram classificadas em sete grupos. Se, no dia do nascimento, o pai tinha menos de 20 anos, a criança era colocada no primeiro grupo, se a idade do pai estava entre 20 e 24, ela era colocada no segundo grupo, e assim por diante, até o grupo em que os pais tinham entre 40 e 44 anos. Num último grupo estavam as crianças com pais de mais de 45 anos. Em cada um desses grupos foi avaliada a frequência dos diversos distúrbios psiquiátricos e cognitivos. Finalmente foram feitos gráficos em que o risco de a criança desenvolver uma dada doença era colocado no eixo vertical e a idade do pai no dia do nascimento, no eixo horizontal.

Os resultados mostram que para alguns tipos de distúrbios mentais e educacionais o risco de a criança apresentar o problema aumenta à medida que a idade do pai aumenta. Comparando o grupo de crianças nascidas de pais que tinham entre 20 e 24 anos ao grupo com mais de 45 anos, não fica dúvida de que a incidência de autismo, déficit de atenção e hiperatividade, psicoses, desordem bipolar, tentativa de suicídio, uso de drogas, notas baixas na escola e não progressão para o ensino superior são significativamente maiores no grupo de pais mais velhos. No caso do autismo, o aumento do risco é de 3,5 vezes (350%). Esses riscos crescem gradativamente com o aumento da idade do pai a partir dos 25 anos.

A conclusão é que homens idosos (com mais de 45 anos) têm uma chance muito maior de ter filhos com problemas psiquiátricos e cognitivos (pelo menos na Suécia).

Apesar de assustadora, a conclusão está de acordo com a história natural do ser humano. Até recentemente, os seres humanos reproduziam logo após a puberdade e viviam 40 ou 50 anos. Como fomos selecionados durante centenas de milhares de anos para reproduzir antes dos 30 anos, não é de espantar que a reprodução tardia traga problemas. O intrigante é que, conforme nossa sociedade "progride", vivemos mais e temos uma vida sexual mais longa (Viagra). Nossa estrutura econômica e social também incentiva a reproduzir cada vez mais tarde (carreira antes dos filhos). A consequência é o aumento do risco de gerarmos filhos com problemas cognitivos, mentais e psiquiátricos. É mais um dos custos do que chamamos de progresso.

Liberações perigosas - LAURA GREENHALGH


O Estado de S.Paulo - 01/03

O tema sempre volta no carnaval, mas este ano ele se antecipou na esteira de uma brutalidade sofrida no último fim de semana. O professor de educação física Lucas Lopes Xavier, de 27 anos, pagou pela própria indignação ao se dirigir a dois rapazes que, não contendo a micção depois de longa bebedeira, urinavam do lado de fora dos toaletes de um shopping center em Brasília. Mas os moços se sentiram incomodados com a bronca de Lucas. Resultado: convocaram outros grandalhões e juntos deram uma coça no reclamante. Mais uma cena da cordialidade brasileira. A cultura do "pau nele".

Os agressores terão que responder pelos três coágulos no cérebro e a mandíbula quebrada de Lucas - escrevo de olho no boletim médico da UTI do Hospital Santa Helena, na capital federal, segundo o qual o quadro continua grave. Como podem também ser enquadrados no artigo 233 do Código Penal. Diz a lei: "Praticar ato obsceno em lugar público, aberto ou exposto ao público. Pena: Detenção de três meses a um ano. Ou multa". Ou seja, além da violência, tem-se aqui um crime bastante comum no Brasil: urinar em local público, classificado no rol dos atos obscenos, o que gera certa polêmica. Afinal, seria a micção um ato natural ou um atentado ao pudor e à ordem pública?

Discussões contornam a dúvida sobre o "caráter lascivo ou não da exibição do órgão sexual masculino aos olhos da coletividade". Outra polêmica é se existe ato obsceno à falta de dolo. E assim, de tese em tese, o palavreado jurídico vai agregando todo um floreado a uma situação que é velha conhecida nossa: urina-se muito nas ruas, nas avenidas, nas ladeiras, nas praças, nos parques e nos becos das cidades brasileiras. Ou, como diz um amigo arquiteto, lembrando-se de quando escalava aos saltos a escadaria do Viaduto de Santa Ifigênia, em São Paulo, para se esquivar do mau cheiro: "O xixi urbano sempre foi um problema e sempre foi fedido".

Em termos históricos, o xixi urbano já se fazia notar no período colonial. Debret, no Rio de Janeiro do começo do século 19, produziu uma famosa gravura onde se vê o oficial da Corte derramando suas necessidades no Paço, observado por um escravo. Normal num tempo em que urinóis eram despejados fora das casas, nas ruas. Também se tem razoável literatura sobre o Entrudo, folguedo carnavalesco importado de Portugal, no qual o desafio inicialmente era jogar água de cheiro, depois frutas podres e, por fim, urina e fezes nos foliões. Como se pode notar, os brasileiros se esmeram na arte de passar do ponto. Coisa nossa.

Com o crescimento das cidades, o xixi urbano foi ganhando adeptos. E virou um fenômeno caudaloso, que hoje demanda políticas públicas. Policiais têm flagrado os desaguadores em várias partes. No Rio, instituiu-se a multa. Em Salvador, a prefeitura precisou investir em obras num viaduto cujas bases estavam minadas pelo acúmulo excretado. E os xixódromos, eleitos por transeuntes supostamente em situação de aperto, proliferam no País.

Há dois mitos nessa história. Primeiro: só homens fazem em público. Segundo: este é um problema brasileiro, nascido numa terra onde índios, negros e brancos uma dia se aliviaram sob o mesmo chafariz. Pois, ao que se sabe, mulheres liberam também, não são só as velhinhas ou as grávidas. E hoje a geografia do xixi urbano extrapola fronteiras nacionais. É fenômeno global que mereceria ser estudado até do ponto de vista antropológico. Afinal, haveria uma compulsão territorial demarcatória a aproximar indivíduos de diferentes culturas e latitudes?

Na bela Paris, a polícia está autorizada a multar e até recolher o infrator em sua incontinência. No Reino Unido, o problema existe e vem desafiando legisladores. Há um divertido pôster inglês em que se vê um grupo de homens tomando cerveja na calçada de um pub, tendo ao lado da mesa uma privada, aquela bem básica, linha branca. Acompanha a imagem os seguintes dizeres: A toilet. Don't leave home without one. Ou seja, não saia de casa sem o troninho. A cultura cervejeira, tão germânica, deixou recordações olfativas e estomacais nos torcedores que foram à Copa da Alemanha, em 2006. Lembro de um colega meu, aqui do jornal, que voltou da cobertura estarrecido com o odor encontrado nas cidades-sede dos jogos.

Pois passaremos não só pelo carnaval, mas pela Copa, dois momentos de êxtase fisiológico, digamos assim. Sabemos que a falta de atendimento sanitário tornou-se um clássico no país. Banheiros públicos estão sumindo do mapa. Já os químicos, armados para atender grandes concentrações, ou são insuficientes ou tão emporcalhados que muita gente se arrisca a céu aberto. E sempre tem aquele tipo bronco, o chamado "sem noção", que faz onde quer que seja, diante de quem for, na hora que lhe convier. Diante desse quadro, chegou a hora de oferecer à população equipamento sanitário decente, campanhas de esclarecimento de bom nível e a possibilidade de um amplo debate sobre o tema na rede escolar, com finalidade educativa que vá além da Copa. E assim quem sabe, graças ao xixi, aprenderemos a viver a cidade como um território de mediações e consenso, e não de exclusão ou transbordamento.

Tempos atrás os jornais noticiaram o flagrante de um universitário carioca, que mandou ver na muvuca de um bloco carnavalesco de Ipanema. O jovem contratou bons advogados, que o defenderam com o argumento de que o cliente liberou, sim, mas havia se esquivado do olhar público. Tanto que, escondido, acabou regando o pé de um arbusto. Processo arquivado. Já um vendedor detido na Lapa, ao ouvir do delegado que é crime urinar na rua, defendeu-se simplesmente com o óbvio: "Xii, doutor, então vai faltar cadeia".

O caminho da ponderação - EDITORIAL O ESTADÃO


O ESTADO DE S. PAULO - 02/03
Durante as comemorações dos 20 anos do Plano Real no Senado Federal, seu criador, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, não se deixou ficar sentado sobre os louros do sucesso da política monetária que comandou e revolucionou a economia nacional. Também se recusou a adotar uma retórica da crítica pela crítica aos adversários do Partido dos Trabalhadores (PT) que lhe sucederam na Presidência. Em vez disso, o tucano - eleito duas vezes em primeiro turno, tamanha foi a repercussão na vida do cidadão comum de seu plano de estabilização - tratou do futuro do País.
Em Brasília, Fernando Henrique Cardoso atuou como principal cabo eleitoral de um presidenciável do partido, o senador Aécio Neves, principal obstáculo à reeleição da presidente Dilma Rousseff. Para ele, o Brasil clama por mudanças, por gente nova, e há uma "fadiga de material". Não se trata, propriamente, de uma novidade espetacular, pois, desde as manifestações nas ruas contra a péssima gestão do Estado brasileiro, esse desejo de mudança é público e notório.

Assim que as multidões deixaram as ruas no meio do ano passado, os institutos de pesquisa saíram a campo para pesquisar e constataram que nada menos do que 66% dos brasileiros entrevistados exigiam mudanças na gestão pública. Na semana passada, esse clamor se fez ouvir de novo: o instituto MDA, em levantamento patrocinado pela Confederação Nacional do Transporte (CNT), revelou que o anseio continua o mesmo. Apenas 12,1% dos entrevistados aceitam a manutenção do estilo da atual administração federal. Enquanto isso, 23,1% preferem manter algumas das ações do governo Dilma e 25%, a maioria de tais iniciativas. A maior parte dos consultados, 43,7%, porém, reivindica uma mudança total do que está sendo feito pela aliança liderada pelo PT. Ao constatar isso, Fernando Henrique Cardoso chamou a atenção para os 12 anos de gestão petista, embora não os tenha citado de forma explícita.

O que explicitou, isso sim, foi o reconhecimento de que o Brasil carece muito de líderes jovens e capacitados a procurar o sucesso fora das fórmulas e soluções do passado, no qual modestamente se incluiu. "Minha geração já passou. Nós já morremos. Não dá mais. Tem de passar (as responsabilidades) para outra geração", disse ele.

Como qualquer brasileiro responsável, o ex-presidente está preocupado com o acirramento do debate político neste ano de eleições para a Presidência da República e os governos estaduais. Mesmo reconhecendo que a guerra nos palanques faz parte do jogo da democracia, nem sempre limpo (pois "sem emoção ninguém consegue transmitir nada"), ele fez votos para que esta campanha, pelo menos, "não seja de insultos nem de dossiês falsos, toda essa coisa".

Ele próprio contribuiu para esse apaziguamento ao discordar do presidenciável tucano Aécio Neves, ao seu lado, que prenunciou "anos difíceis" para o sucessor de Dilma, qualquer que seja ele, porque o País estaria "mergulhado num ambiente de desesperança e descrença no futuro". FHC contemporizou: "Eu me preocupo, mas não posso ser injusto e dizer que o governo não controla a inflação. A inflação, comparada com a do início do Plano Real, que era de 20%, 30% ao mês, agora é de 6% ao ano. (...) Agora o Brasil está com um compasso diferente do compasso do mundo. Tem que ajustar. Vamos ser otimistas. Eu sou otimista. Não temos que ficar apenas jogando pedra. Temos que construir".

Tal ponderação condiz com o conselho de mais velho dado a Aécio. "Temos um bom candidato. (...) Ele tem que dizer ao País: é isso, tem um caminho, o caminho é esse", pontificou o ex-presidente. Com sua bagagem de cientista social respeitado no mundo inteiro, ele tocou no ponto nevrálgico da fragilidade da oposição à atual aliança governista: a falta de propostas concretas que animem o eleitor a evitar o "mais do mesmo", que é, no fundo, o mote da campanha pela reeleição de Dilma. O eleitor quer mudar, sim, mas também exige garantias de que a mudança venha para melhorar sua vida.