domingo, 23 de fevereiro de 2014

Como dantes - ELIANE CANTANHÊDE


FOLHA DE SP - 23/02

SYDNEY - Lamento informar que o Brasil não é mais o queridinho das reuniões multilaterais. Perdeu a graça, está voltando ao velho patamar.

A economia bombando, Lula encantando plateias mundo afora e Amorim se metendo até no Oriente Médio são coisas do passado.

Hoje, a política econômica é sem brilho e errática, e a externa, pouco ambiciosa. O resultado são índices macroeconômicos medíocres e falta de presença internacional, que deságuam em desconfiança. Amorim deve estar insone com a desconstrução do seu legado. Como Lula...

Parte da culpa é das estrelas e do momento. Lula perdeu três eleições para ganhar justamente quando as condições internas e externas eram favoráveis. FHC deixou as bases, o dinheiro corria farto no mundo, e o carisma de Lula fazia o resto.

Na América do Sul, Lula à esquerda, Michele Bachelet (Chile) ao centro, Álvaro Uribe (Colômbia) à direita saíram, todos, com alta popularidade. Por quê? Entre os principais motivos, condições de tempo e temperatura muito favoráveis. Dilma não teve a mesma sorte nem a visão estratégica. Primeiro, veio a crise financeira mundial irradiada dos EUA. Agora, os EUA e a Europa se recuperam, há interrogações sobre a China, e o Brasil volta ao seu lugar secundário sem ter aproveitado o mar de oportunidades da crise dos países ricos.

Parte da culpa é da teimosia de Dilma, que --como diz um adversário-- não só acha que sabe tudo como acha que só ela sabe tudo. Teimosia gera centralização, que inibe o embate de ideias e a criatividade.

No G20 financeiro, em Sydney, fica claro que se encerrou um ciclo: só se fala de EUA e Ásia. Tudo como dantes no quartel de Abrantes.

Depois de longas análises sobre o fim da crise e as perspectivas da Ásia, os conferencistas lançam alertas para os emergentes e concedem umas poucas palavras para um bloco diferente: a África e a América do Sul. É o balaio do rebaixamento.

O Planalto caiu na arapuca do PMDB - ELIO GASPARI


FOLHA DE SP - 23/02

Dilma achou que podia tudo e viu que os inimigos do seu governo estão naquilo que chamam de 'base de apoio'


A ideia era simples: um ministro cuidaria da base de apoio, e outro lidaria com os movimentos sociais. Primeiro ferveu Gilberto Carvalho, quando os protestos de rua saíram do nada, de fora do cadastro de convênios do palácio. Depois confundiu-se o que seria um desprestígio palaciano da ministra Ideli Salvatti com uma barafunda na qual as lideranças parlamentares não se entendem entre si, nem com o Planalto.

O resultado está aí. Numa reforma ministerial de quinta categoria, sem ideia nem projeto, a doutora Dilma vê-se obrigada a cortejar o PMDB indo a jantares inúteis (se não arriscados) na casa do vice-presidente Michel Temer (PMDB-SP). Enquanto isso, representantes de grandes empresas (Gerdau, Ambev, Andrade Gutierrez, OAS e até a Souza Cruz) foram a outro jantar, pluripartidário, na casa do presidente da Câmara, Henrique Alves (PMDB-RN).

Ano eleitoral é assim mesmo. Empresário que gosta de jantar no Planalto vai à casa de deputado para botar medo num governo assustado. O ministro das Comunicações, Paulo Bernardo, queixa-se dos empresários que ficam "fazendo beicinho" e propõe que se discuta "a relação". Essa é a armadilha em que caiu a doutora. A infantaria do PMDB e a intendência do empresariado entram nessas discussões seguindo o conselho de Ivana, a primeira mulher do folclórico milionário americano Donald Trump. Ela ensinou: "Não fique com raiva, fique com tudo".

O PAPA E A DOUTORA

Eleito papa, Francisco pediu aos argentinos que dessem dinheiro aos pobres em vez de ir a Roma saudá-lo. Há pouco, decidiu tirar um passaporte comum argentino.

Doutora Dilma foi para Roma festejar o barrete de d. Orani Tempesta. Na comitiva, um lote de passaportes especiais.

DEUSES

O ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, quer federalizar a investigação dos crimes cometidos contra jornalistas. Ganha uma viagem de ida a Cuba quem souber explicar por que os jornalistas devem receber essa proteção (se proteção for) e não os padres, pipoqueiros, pintores de parede.

Madame Natasha procura uma explicação para o fato de, em português, os jornalistas se atribuírem a capacidade de produzir "matérias". Pela sua conta, esse poder só é atribuído a Deus. Em outros idiomas eles produzem histórias, artigos ou reportagens, mas matéria, ainda não. Talvez Cardozo queira dar tratamento divino aos jornalistas. Até 1964 eles eram isentos do pagamento de Imposto de Renda e tinham desconto de 50% nas passagens aéreas. Resultado: Zica, o "Rei do Contrabando", era jornalista.

EREMILDO, O IDIOTA

Eremildo é um idiota e não está entendo mais nada:

Quem toca fogo em carros no Brasil é terrorista. Em Kiev é manifestante. No máximo, quando estocam armas, são "manifestantes radicais". Quando o venezuelano Leopoldo Lopez entrega-se à Justiça de punho fechado, é "líder da oposição". Para os comissários bolivarianos, ele é um terrorista ligado aos "manifestantes" que incendiaram a entrada do Ministério Público de Caracas.

SANTA RUTH

Quando surgiram os primeiros indícios do mensalão mineiro, Ruth Cardoso defendeu, numa conversa de grão-tucanos, que o partido se afastasse do ex-governador Eduardo Azeredo, que então presidia o PSDB.

À época isso poderia ter sido feito com elegância.

A DAMA DOURADA

Está chegando às livrarias "A Dama Dourada", com a linda história do retrato da milionária Adele Bloch-Bauer, pintado em 1907 por Gustav Klimt.

É um daqueles livros que acaba e recomeça. No caso, pelo menos quatro vezes. Primeiro vem o quadro em si, com uma milionária posando (e namorando?) um pintor excêntrico. Ela morre aos 34 anos, em 1925, e depois a fortuna de seu marido é confiscada pelos nazistas. A história podia acabar aí, mas o governo austríaco tentou ficar com o quadro, tungando herdeiros.

Nessa hora apareceram uma sobrinha que vivia nos Estados Unidos, um repórter e um jovem advogado. Humilharam os poderosos de Viena e hoje o quadro está na Quinta Avenida, em Nova York, na Neue Gallery, a poucos quarteirões do Metropolitan Museum. Valeu 135 milhões de dólares.

A história da "Dama Dourada" é uma viagem a um tempo de surpresas. O marido de Adele era um barão do açúcar e morreu pobre. A sobrinha cuidava de uma loja de roupas e morreu milionária. Uma tia foi para o Canadá. Num jantar, sua filha conheceu um jovem que fugira da Alemanha aos 15 anos e lavara pratos num hotel. Era um príncipe da casa de Auersperg, cuja linhagem remonta ao século 11. Apaixonaram-se e viveram felizes para sempre. Ela tornou-se uma grande cancerologista.

SETE DESTINOS MUDADOS NUM NOVO PAÍS

De técnico de futebol, vidente e sociólogo, todo mundo tem um pouco. Aqui vai um teste para quem se julga capaz de estimar o futuro de oito jovens cariocas.

Duas moram na Rocinha. O pai de uma das meninas é garagista, e a renda da família fica em R$ 1.300. O pai da outra é porteiro. Uma terceira mora com a mãe num quarto alugado de outra comunidade. Não têm ajuda do pai e vivem com R$ 630 por mês. A quarta mora em Caxias, seu pai é vendedor e leva para casa R$ 2.500.

O quinto garoto vive com a mãe, que é cozinheira ocasional. Outro jovem mora num porão de loja, com pai desempregado e mãe diarista, levando para casa R$ 1.100 mensais.

Do grupo, só uma jovem vive em apartamento próprio, em bairro de classe média.

A sabedoria convencional projetaria futuros de dificuldades e catástrofes para quase todos. Afinal, o Brasil seria um país de injustiças, com um sistema educacional elitista. Prova disso viu-se entre 1996 e 1998, quando a PUC paulista organizou uma campanha financeira junto a 120 mil ex-alunos (24 mil dos quais ex-bolsistas) e arrecadou pouco mais que a postagem de 40 mil cartas.

As coisas mudam. Desde 2010, um dos maiores empresários do país, formado em universidade pública, patrocina o curso e a manutenção básica de estudantes estudantes pobres, aprovados no vestibular de engenharia uma das melhores (e mais caras) universidades do país. Deu no seguinte:

sete tiveram bom desempenho. Seis estão a caminho da formatura como engenheiros, e um vai se diplomar em sistemas de informação. Três preparam-se para buscar intercâmbios no Canadá, Portugal ou na China. Dois estudam alemão.

A universidade e o empresário monitoram as notas e as contas dos jovens. Ele gratifica-se trocando mensagens e aconselhando a garotada. As doações custam R$ 360 mil por ano, ou US$ 150 mil. Parece muito dinheiro, mas, fazendo-se a conta, vê-se que o valor real está na alma de quem dá. As anuidades dos cursos de engenharia nas grandes universidades americanas estão cerca de US$ 50 mil. Cada bolsista brasileiro custa US$ 19 mil anuais. Se um em cada dez endinheirados nacionais que estudaram de graça seguisse o exemplo do empresário, o Brasil seria outro, mais depressa.

Os lados da História - PERCIVAL PUGGINA (sobre a CNV)


ZERO HORA - 23/02

Aí está o pecado original de uma Comissão cujo símbolo deveria ser um Saci-Pererê maneta



Há poucos dias, em Petrópolis/RJ, com a presença da ministra dos Direitos Humanos, realizou-se evento para assinalar a desapropriação de um prédio identificado como centro de tortura. No final da cerimônia, um coral cantou _ adivinhe o quê? nosso Hino Nacional? _ não, o hino da Internacional Comunista, peça musical de fervor revolucionário que chegou a ser hino oficial da URSS durante décadas. Cumprindo a tradição, a performance foi acompanhada e aplaudida por uma plateia de punhos cerrados e erguidos. Ninguém desafinou. Nem vaiou.
Dizer-se democrata e cantar o hino de uma ditadura comunista é desinformar. A propósito, nenhum dos três livros que acabo de importar chamou a atenção das editoras nacionais, apesar de sua cronométrica e milimétrica aproximação à atualidade brasileira, inclusive com o ocorrido em Petrópolis. São eles: Disinformation, que trata das técnicas para construir imagens e versões, e solapar as liberdades; The Killing of History, a propósito de como certas teorias sociais e críticas literárias estão matando os fatos; e The Tyranny of Clichés, sobre como as esquerdas trapaceiam no conflito das ideias. Não seria fantasioso, de modo algum, considerar que o mutismo a respeito dessas e de outras obras seja uma evidência da realidade abordada nos três livros. Pergunto: não seria, também, por desejo de desinformar, de matar a História e de vencer o debate trapaceando que não se traduzem esses livros? A hipótese explicaria muito bem, por exemplo, a ocultação pela mídia nacional de Camaradas, obra de William Waack, escrita após minuciosa pesquisa nos Arquivos de Moscou, com foco na estratégia e na influência da URSS sobre a atuação dos comunistas no Brasil durante a primeira parte do século passado. Tanto se desinforma, se vandaliza a História e se trapaceia no debate de ideias que hoje ninguém duvida da influência e da participação da CIA nos atos e fatos de 1964. Ao mesmo tempo, sequer entra em cogitação a óbvia consequência disso: que tenha havido simétrica influência e participação soviética na América e no Brasil.
Entre 1945 e 1991, a Guerra Fria, sabemos todos, campeou solta no mundo inteiro. Luta estratégica, de vida ou morte, que não poupou a Lua e o espaço sideral. Surpreendentemente, segundo a história que nos é contada, só a CIA se interessava pelo Brasil. A URSS, que estendia malhas, a ferro e fogo, no leste europeu, na África, na Ásia, na América Central, no Caribe e na América do Sul, mediante movimentos guerrilheiros e forças de ocupação, ignoraria solenemente as terrinhas descobertas por Cabral! Se já ouvira falar no Brasil, não prestara atenção. Aqui só xeretariam os gananciosos ianques, difundindo a paranoia de um tal de comunismo que nos humilhava com seu desprezo.
Nas primeiras páginas do The Tyranny of Clichés, o autor Jonah Goldberg cita uma frase que cai como roupa de bom alfaiate sobre o que está em curso no Brasil: “A História não tem lados, mas os historiadores têm”. Foi esse ensinamento que não pude deixar de associar ao fato narrado na abertura deste texto _ a reunião da Comissão Nacional da Verdade ocorrida em Petrópolis. Aí está o pecado original de uma Comissão cujo símbolo deveria ser um Saci-Pererê maneta. Com membros apenas do lado esquerdo, essa Comissão não inspira confiança alguma em quem tenha apreço pela verdade. Saberiam cantar o Hino Nacional, com igual fervor e sem desafinar?