domingo, 16 de fevereiro de 2014

Chave do carro - FABRÍCIO CARPINEJAR


ZERO HORA - 16/02

Ao perguntar para o homem se ele quer dirigir seu carro, a mulher se mostra apaixonada. Perdidamente interessada.

É um pedido implícito de namoro.

Ninguém está bêbado, estão se conhecendo, sóbrios das palavras e sussurros, e ela concretiza esta prova de amor.

Entrega a chave sorrindo, como se fosse um prêmio de loteria federal.

Não é uma artimanha da sedução, um teste para ver se ele dirige bem ou não, para classificar ou desclassificar o sujeito.

O pretendente talvez seja um péssimo motorista, um barbeiro, com mais de 20 pontos na carteira, nada mudará a natureza da declaração.

Ela não se preocupa com o que vai acontecer, porque dentro dela já aconteceu. Não há acidente que interrompa a escolha de seu coração.

Quando uma mulher oferece seu carro — e só a mulher —, é que ela se entregou para a história.

É quando duplica sua alma. É quando se confessa vulnerável. É quando se anuncia disposta a construir uma vida a dois.

É mais do que um “eu te amo”, é um “não tenho mais reservas com você, não tenho mais segredos, não tenho mais medo”.

Ela vem a dizer que aquilo que é dela é também dele. Ela vem a dizer que ele pode guiá-la, que pode cuidá-la, que pode levá-la para o mau caminho, tanto faz o fim, pois chegaram ao destino no momento em que se encontraram.

A chave do carro é mais importante do que a cópia da chave do apartamento.

Porque o carro não é o mundo para a mulher, como é para o homem. Não é aventura para a mulher, como é para o homem. Não é ostentação para a mulher, como é para o homem. Não é um investimento e senha bancária para a mulher, como é para homem.

Na perspectiva feminina, o carro é extensão de sua personalidade, conquista afetiva, intimidade. É seu quarto, seu guarda-roupa, seu salão de beleza móvel.

Ela não tomará a atitude intempestivamente. Foi um gesto pensado, ponderado, maduro.

Alcançará o posto como um convite psicológico para que ele assuma o ponto de vista dela.

É o equivalente a “ponha-se no meu lugar” e “olhe por mim e através de mim”.

Não tem machismo envolvido, não é fraqueza educada. Trata-se de um sinal de confiança.

É um ato de muita coragem, um mergulho consciente nas inconsequências da paixão.

Talvez conte com seguro do veículo, mas dificilmente terá seguro para cobrir o relacionamento. E ela não se importa.

Tragédia desnecessária - FERREIRA GULLAR (sobre psiquiatria, na Folha)


FOLHA DE SP - 16/02

Hoje, muitas clínicas psiquiátricas possuem campos de esporte e salas de leitura e de jogos


A morte de Eduardo Coutinho chocou o país e particularmente os seus amigos. Morrer assassinado era a última coisa que alguém poderia prever que ocorresse com ele. Por isso mesmo, ao chegar em casa e ver seu rosto na televisão, me detive pensando que se tratava de alguma notícia relacionada com sua atividade de cineasta. Não era, logo ouvi o locutor dizer que ele havia morrido, e fiquei surpreso. E logo acrescentou que havia sido morto por seu filho Daniel, de 41 anos.

Não dava para acreditar naquilo, era absurdo demais. Não obstante, aos poucos, aquele quadro trágico ia se completando e ganhando realidade. O filho era doente mental e consumia drogas. Matara o pai a facadas e tentara fazer o mesmo com a mãe; em seguida, esfaqueou-se a si mesmo, mas não morreu.

Teria declarado a um vizinho que fizera aquilo para libertar os pais e a si mesmo. Sem dúvida, é preciso estar louco e surtado para pensar e agir dessa maneira. Depois de saber essas coisas, não restava dúvida: Daniel agira tomado por um surto esquizofrênico.

Não sabia que Eduardo Coutinho tinha um filho com esse problema. Segundo ouvir dizer, parece que ele não admitia que o filho fosse doente mental e, se isso for verdade, certamente evitava tratá-lo com tal. Pode não ser verdade mas, se for, não seria o único caso de uma família não admitir que algum de seus membros seja louco. Conheci uma família que manteve trancado num quarto, por mais de uma década, um filho com problemas psíquicos.

Esse tipo de comportamento decorre quase sempre de uma visão preconceituosa da doença mental, como se sua incidência na família fosse uma espécie de maldição. Era assim no passado. Hoje, no entanto, são pessoas avançadas que negam a existência da doença mental. Segundo elas, trata-se apenas de um relacionamento diferente com o mundo real. Admitir que alguém é louco seria nada mais nada menos que um preconceito.

Certamente, quem pensa assim nunca viveu de fato o problema. Como pega bem mostrar-se avançado, aberto, antirrepressivo, muita gente não apenas nega que a loucura seja doença como, coerentemente, se opõe à internação nos chamados "manicômios". Criaram até um movimento que se intitula "antimanicomial", que visa, de fato, acabar com as clínicas psiquiátricas, uma vez que o que se chama de manicômio não existe mais.

É verdade que, no passado, a internação nesses hospitais implicava em agressão física e choques elétricos, mas não por simples crueldade e, sim, pelo desconhecimento das causas da doença e de medicamentos apropriados.

Com a descoberta dos remédios neuroléticos, os hospitais psiquiátricos mudaram radicalmente. Hoje, muitas dessas clínicas possuem campos de esporte e salas de leitura e de jogos. Já não lembram em nada os hospícios de antigamente, que mais pareciam prisões.

Os adeptos da nova psiquiatria fazem por ignorar essa mudança para justificar sua tese contra a internação. Essa tese surgiu em Bolonha, onde foi implantada com resultados desastrosos: os doentes pobres terminavam nas ruas como mendigos.

Isso já começa a acontecer no Brasil que, tendo adotado a tal nova psiquiatria, levou à extinção de mais de 30 mil leitos em hospitais públicos. Quem tem recursos interna seus doentes em clínicas particulares, enquanto os doentes pobres morrem na rua. E isso é obra de um governo que diz trabalhar em favor dos necessitados.

Tive oportunidade de conversar com pessoas que se opõem à internação de doentes mentais e me dei conta de que nada sabem da doença e aceitam a nova psiquiatria por acreditarem que favorece aos doentes. Na verdade, a internação só tem cabimento quando o doente entra em surto e consequentemente torna-se um perigo para si mesmo e para os outros. Foi o que aconteceu no caso de Eduardo Coutinho.

Desconheço a situação por que passava sua família naquele momento, mas não resta dúvida de que o filho Daniel, que é esquizofrênico, entrou em surto. Não sei por que os pais não solicitaram atendimento médico para interná-lo, mas não tenho dúvida de que, se o tivessem feito, aquela tragédia dificilmente teria ocorrido.

Espero que esse exemplo terrível leve as pessoas refletirem melhor sobre essa questão.

Freixo outra vez, por Caetano Veloso, no Globo


O colunista escreve aos domingos


.

Gosto de Freixo não porque ele é do PSOL. Acho que gosto um tanto do PSOL por ele abrigar Freixo. Sou independente, conforme se vê. Ser estrela é bem fácil. Nada importam as piadas dos articulistas reacionários que classificam minhas posições como Radical Chic. Desprezo a tirada de Tom Wolfe desde o nascedouro. Antigamente tentavam me incluir na chamada esquerda festiva. Isso sim, embora incorreto, me agradava: a expressão brasileira é muito mais alegre, aberta e democrática do que a de Wolfe. Mas tenho vivido para desmontar o esquema que exige adesão automática às ideologias da moda. Deploro o resultado das revoluções comunistas. Todas. E, considerando o Terror que se seguiu a 1789, sou cético quanto a revoluções em geral. Na maioria das vezes, a violência se dá, não para fazer a história humana caminhar, mas para estancar seu fluxo. Olho com desconfiança os moços que entram em transe narcisista ao quebrar vidros crendo que desfazem a trama dos poderes. Ainda hoje não consigo adotar a posição que considera Eduardo Gianetti, um liberal crítico, ou André Lara Rezende, o homem que põe em discussão o crescimento permanente, conservadores. Nem acho que o conservadorismo seja necessariamente um mal. A adesão de alguns colegas meus à nova direita me deixa nauseado, não por ser à direita, mas por ser automática.
Simplesmente me pergunto qual exatamente será a intenção do GLOBO ao estampar manchetes e editoriais induzindo seus leitores a ligarem Marcelo Freixo aos rapazes que lançaram o rojão que matou Santiago Andrade. A matéria publicada no dia em que saiu a chamada de capa com o nome do deputado era uma não notícia. Nela, a mãe de Fábio Raposo, o rapaz que entregou o foguete a Caio Souza, é citada dizendo acreditar que o filho “tem algum tipo de ligação com Freixo”. Isso em resposta a uma possível declaração do advogado Jonas Tadeu Nunes, que, por sua vez, partiu de uma suposta fala da ativista apelidada Sininho. O GLOBO diz que esta nega. Como então virou manchete a revelação da possível ligação entre o deputado e os rapazes envolvidos no trágico episódio? Eu esperaria mais seriedade no trato de assunto tão grave.
Li o artigo do grande Jânio de Freitas em que ele defende a tese de intenção deliberada de assassinar um jornalista, o que está em desacordo com as imagens exibidas na GloboNews. Sem falar na entrevista do fotógrafo, que afirma que o detonador do artefato tinha mirado os policiais. Claro que me lembrei, ao ver a primeira reportagem na GloboNews, dos carros de emissoras de TV incendiados durante as manifestações, o que me levou a participar da indignação dos âncoras do noticioso. Um vínculo simbólico entre aquelas demonstrações de antipatia e o ocorrido em frente à Central é óbvio: um rojão sai das mãos de um manifestante e atinge a cabeça de um jornalista. Mas parece-me abusivo ver nisso o propósito de matar o repórter. Nas matérias que se seguiram, O GLOBO, ecoando falas do advogado Jonas Tadeu, que diz não ser pago por ninguém para defender os dois réus mas conta que um deles diz receber dinheiro para ir às manifestações, insiste em lançar suspeita sobre Freixo, por ser o PSOL, seu partido, um possível doador do alegado dinheiro. Na verdade, as declarações do advogado, mesmo nas páginas do GLOBO, soam inconvincentes. O mesmo Jânio de Freitas, em artigo posterior àquele em que defende a tese de assassinato deliberado, se mostra desconfortável com o comportamento de Jonas Tadeu. Já O GLOBO, no qual detecto uma sinistra euforia por poder atacar um político que aparentemente ameaça interesses não explicitados, trata as falas de Tadeu sem crítica. Uma das manchetes se refere a vereadores do PSOL que teriam contribuído para uma ação na Cinelândia, na véspera de Natal, sugerindo ligação do partido com vândalos, quando se tratava de caridade com moradores de rua. O tom usado no GLOBO é, para mim, de profundo desrespeito pela morte de Santiago.
Freixo, em fala firme ao jornal, desmente qualquer ligação com os dois rapazes. Ele também lembra (assim como faz Jânio) que Jonas Tadeu representou o miliciano Natalino.
Quando Freixo era candidato a prefeito, escrevi artigo elogioso sobre ele. O jornal fez uma chamada de capa que, a meu ver, desqualificava meu texto. Manifestei minha indignação. A pessoa do jornal que dialogava comigo me assegurou não ter havido pressão dos chefes. Acreditei. Agora não posso deixar de me sentir mal ao ver a agressividade do jornal contra o deputado. Tudo — incluindo os artigos de autores por quem tenho respeito e carinho — me é grandemente estranho e faço absoluta questão de dividir essa estranheza com quem me lê.


Leia mais sobre esse assunto em http://oglobo.globo.com/cultura/freixo-outra-vez-11616610#ixzz2tWjCtIbg 
© 1996 - 2014. Todos direitos reservados a Infoglobo Comunicação e Participações S.A. Este material não pode ser publicado, transmitido por broadcast, reescrito ou redistribuído sem autorização.