quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

A lição que veio do frio - EDITORIAL GAZETA DO POVO - PR


GAZETA DO POVO - PR - 02/01

Estudo de pesquisadora norte-americana contraria o modelo educacional coreano e defende as benesses da escola criativa, que desenvolve poucas e boas tarefas, e se esmera na formação de professores. Esse lugar existe. Fica na Finlândia


A jornalista norte-americana Amanda Ripley inventou um exercício simples e, por causa dele, está fazendo a bola do mundo girar. Estudiosa de educação, debruçou-se sobre uma tabela com dados sobre avanço escolar em nações ricas. Não gostou do que viu – seu país, os Estados Unidos, progrediu muito pouco em meio século, apesar de toda a tecnologia disponível em sala de aula e do dinheiro em cascata investido no setor.

Em vez de lamentar, pôs-se em campo, fazendo estágios em três países onde crianças e adolescentes americanos fazem intercâmbio – Polônia, Finlândia e Coreia do Sul. Não por acaso, são lugares bem avaliados no Pisa, teste que desde o início do século mede o desempenho de 65 países, incluindo o Brasil.

Para começo de conversa, Ripley bate palmas para o exame internacional, um medidor que incentiva o pensamento crítico, passando uma carraspana na decoreba. Não por menos, o diferencial encontrado pela pesquisadora na Polônia e na Finlândia, em particular, foi a criticidade. É palavra perigosa em terras brasileiras, pois por aqui se entende criticidade, não raro, como uma receita pronta e monótona. São seus ingredientes as teorias da conspiração envolvendo os meios de comunicação, o ódio aos Estados Unidos e ao mercado liberal, e a afirmação do paternalismo do Estado.

Não é o caso. Ripley relaciona ser crítico a ser criativo. A depender de sua análise, o livro As crianças mais inteligentes do mundo, que lança no Brasil em 2014, pode se tornar a nova Bíblia dos educadores – ou pelo menos dos educadores ocupados em fazer reviravoltas. Nesse trabalho, a autora defende que melhor que pencas de lição de casa é a lição estimulante, que represente a resolução de um problema. E que, mais do que parafernália eletrônica em sala de aula, conta ter bons professores, quesito básico que faz a educação dar saltos triplos, cravados.

Em comparação com a Coreia do Sul – pródiga em tarefas estafantes e em número de horas passadas entre os muros da escola –, os outros dois países, com suas particularidades, se destacam por gerar expectativas nos alunos, e por fazê-los “donos” do conhecimento com o qual estão tendo contato. Ponha-se na conta a Holanda, também alvo da análise da pesquisadora, país conhecido por abraçar uma educação que caminha na contramão dos massacres coreanos.

O pesquisador polonês-americano Martin Carnoy, ao estudar o mistério da educação cubana, tinha chegado a conclusão semelhante. O que faz as escolas da ilha de Fidel proeminentes, mesmo que estejam prestes a desabar, seria a política das avaliações criativas, feitas por um grupo de professores notáveis, que passa de instituição em instituição estimulando os professores a fazer exercícios diferentes e marcantes. A depender de Martin e de Amanda, a afirmação da escola penitente está com os dias contados.

Sabe-se que não é assim tão fácil. Ainda mais no Brasil, onde as práticas pedagógicas não são um mar de rosas. Houve melhoras no ensino, inclusive entre os mais velhos. Pressionados pela competição no mercado de trabalho, o número de brasileiros entre 30 e 64 anos que voltaram à escola saltou de 1,5% em 1992 para 3,4% em 2012, de acordo com os dados do IBGE. Nas demais faixas, igualmente, os avanços são sensíveis. O que não se consegue mudar é a relação entre aumento de escolaridade e níveis de desenvolvimento, o que é paçoca nas nações ricas.

Os motivos dessa “trava” merecem investigação, mas bem se pode adiantar que o problema passa pela qualidade de ensino. Amanda Ripley facilmente identificaria que o nosso nó está no despreparo de uma grande massa de professores para a tarefa de ensinar. Não é que não queiram. Ensinar bem exige vigilância constante, treino, debates, estratégias, o que não se consegue sem trabalho pesado e boas políticas públicas.

Quando o economista Gustavo Ioschpe fala no desperdício de dinheiro – e de talentos – na educação brasileira, a outra coisa não se refere senão ao que já se tornou um culto ao despreparo. A escola se defende com pedras na mão. Mas não se pode aceitar passivamente que cinco anos de aprendizagem numa escola brasileira sejam tão inferiores aos mesmos cinco anos passados num colégio finlandês – como bem alerta o analista Samuel Pessôa.

Com perdão ao clichê desta época do ano, eis um bom ponto para 2014.

O que esperar da Justiça? - JOSÉ RENATO NALINI


O Estado de S.Paulo - 02/01

O Judiciário é o grande protagonista da cena estatal neste início do século 21. Todas as questões humanas são agora livremente submetidas à sua apreciação. No cenário micro, as pessoas perderam o receio de ingressar no Fórum, descobriram o acesso à Justiça e a ela recorrem com desenvoltura. No mundo macro, todas as políticas públicas passam pelo Estado-juiz, graças a uma Constituição que subordina a administração pública a princípios judicialmente aferíveis. Qualquer atuação estatal resta jungida à avaliação de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. Diante desse comando explícito, ficou superado o óbice à incursão judicial sobre o mérito administrativo. Antes, alguns assuntos residiam na esfera da discricionariedade do administrador. Agora, incumbe ao juiz examinar se o gestor da coisa pública observou estritamente a vontade constituinte. Constatado o desvio, o julgador se arroga na função governativa.

Resultado dessa redescoberta da Justiça foi o excessivo demandismo brasileiro. Tramitam atualmente 93 milhões de processos para 200 milhões de pessoas. Como se todos os habitantes desta Nação estivessem a litigar. A beligerância parece a regra para quem observa o Judiciário desta era. Administrar o crescente número de ações judiciais requer prudente análise do fenômeno. A resposta singela e tradicional é multiplicar as estruturas do Judiciário, com criação de mais unidades, ampliação do quadro de pessoal e urgência na obtenção de orçamento compatível com as necessidades atuais e vindouras.

Outra leitura implicará prover a Justiça de gestão competente para acelerar a outorga da prestação jurisdicional sem aumentar em demasia as atuais estruturas. Para isso a informatização deve ser otimizada, de maneira a propiciar maiores resultados, a par de capacitação e motivação do funcionalismo a oferecer o melhor de seus préstimos, sem a promessa de inflação do quadro de servidores. O funcionário estimulado se convenceria de que é mais eficaz investir numa carreira prestigiada, com perspectivas de ascensão funcional e de retribuição por desempenho, em lugar da proliferação infinita de cargos e funções mal remuneradas.

As especificidades da Justiça não a isentam de absorver a cultura dominante, em que o ritmo da sociedade não se compadece mais com a lentidão do processo judicial. O modelo de quatro graus de jurisdição impõe ao demandante e ao demandado um suplício que se não confunde com perder o pleito: aguardar durante longos anos que se profira o julgamento definitivo, após as idas e vindas de instâncias intermediárias. Sem falar nas dezenas de oportunidades de reapreciação do mesmo tema, ante o caótico esquema recursal.

A par disso, a Justiça tem de continuar a conviver em harmonia com as várias alternativas de solução de conflito que prescindem da intervenção judicial. Seu papel é sinalizar qual a leitura predominante do ordenamento para que a pacificação resulte de um desenvolvimento da autonomia cidadã. Incentivar a conciliação, a mediação, a negociação, a transação, a celebração de acordos após imersão das partes na realidade que bem conhecem é fundamental para que impere a efetiva justiça no Brasil.

Investir na cultura do diálogo não interessa exclusivamente ao Judiciário, para mero alívio de sua insuportável carga de trabalho. A questão é muito mais séria e abrangente. Entregar todos os interesses ao Judiciário, agora, significa formatar uma cidadania inoperante, incapaz do diálogo, e tornar cada vez mais remota a potencialidade de implementação de uma democracia participativa. Como preparar o cidadão para contribuir na gestão da coisa pública, se seus problemas, até os de menor dimensão, precisam ser decididos no formalismo do Judiciário?

Não interessa à República brasileira inibir o protagonismo dos brasileiros, convertendo-os em membros de uma sociedade tutelada, a depender do Estado-juiz para a resolução de problemas que podem ser enfrentados na madura e saudável discussão dos próprios interessados. A solução negociada é muito mais ética que a decisão judicial. Esta é a mais forte, a mais poderosa, mas também a mais precária das respostas. A parte insatisfeita sempre poderá fazer ressurgir o conflito mal resolvido, pois a decisão nem sempre atinge o mérito e se resume a um aspecto processual, além do sabor frustrante de um julgamento epidérmico. Aquele que não enfrentou o cerne da controvérsia, manteve-se nos aspectos rituais e manteve incólume - ou até agravada - a desinteligência deflagradora da ação judicial.

Embora a teoria chame de "sujeito processual" a parte em litígio, na verdade o interessado representa um "objeto da vontade do Estado-juiz". Este é que tarifará a dor, o prejuízo, a angústia, a liberdade ou o patrimônio de quem recorre ao Judiciário. Iniciada a ação, o interessado não tem vez nem voz direta no processo. Resta-lhe aguardar, pacientemente, o advento da coisa julgada, após labiríntico percurso nos meandros das instâncias.

Promover a paz, evitar os conflitos, é dever de todos. Mas é obrigação precípua da comunidade jurídica. Todos devem contribuir para evitar lides temerárias, para promover a conciliação, para tornar o convívio algo respeitoso, se possível amistoso e saudável.

Postas as alternativas - manter o crescimento e a atual concepção do que deva ser o Judiciário ou proceder a um inadiável aggiornamento -, cabe indagar: o que se deve aguardar da Justiça brasileira?

O Judiciário é um Poder da República e se exterioriza em serviço público posto à disposição da população. O erário, que sustenta a máquina, é fruto da arrecadação tributária a todos imposta. Por isso a população titulariza o direito e, mais que isso, o dever de participar das discussões que redesenhem a Justiça. Ou se continua no curso de dilatação dimensional para fazer do Brasil um imenso tribunal, com um juiz em cada esquina, ou se ajusta o passo do Judiciário com a contemporaneidade.

Você, brasileiro, é que decide.

Revolucionário ou apenas mais um - RICARDO MEDEIROS


CORREIO BRAZILIENSE - 02/01

Francisco ganhou a batalha pela opinião pública. Com espírito desarmado, sorriso no rosto e ação conciliadora, em apenas nove meses, o papa recobrou a simpatia que a Igreja Católica perdeu nos anos de Bento XVI. Adotou tom de maior tolerância com quem a doutrina vê como desviados e de mais respeito com outras religiões, além de promover reformas administrativas na Cúria Romana. Mas as mudanças anunciadas até agora são de forma, não de conteúdo. Nem de longe é possível considerar seu pontificado revolucionário, como analistas vêm fazendo apressadamente.

Não se trata de minimizar o que Francisco tem dito e feito, mas de dar o devido peso a suas palavras e seus atos. Bento XVI, seu antecessor, costumava apontar o dedo inquisitorial para identificar desvios de conduta, especialmente em outras confissões religiosas e no comportamento de homossexuais e divorciados ou em qualquer coisa que fugisse à ortodoxia católica. Francisco estendeu a mão ao outro, sob o argumento de que somos todos "pecadores". Para quem está do lado de cá dos portais das catedrais, certamente é melhor ser tratado de forma amena do que encarado como inimigo.

"Quem sou eu para julgar?", perguntou Francisco, e todos se encantaram com a demonstração de humildade. Nada de fundo se alterou, porém. Jorge Mario Bergoglio é tão conservador quanto Joseph Ratzinger em relação à doutrina, mas consegue embrulhá-la num papel mais suave. O papa argentino, tal qual o alemão, acredita que manter relações sexuais com pessoas do mesmo sexo contraria as leis divinas e que, por isso, quem comete esse "pecado" e não se arrepende está condenado à danação eterna. Ambos concordam que mulheres são indignas de ordenação, que sacerdotes não podem ter vida sexual e que métodos contraceptivos devem ser proscritos.

O deslumbramento com o primeiro papa jesuíta e latino-americano é tamanho, não só no Brasil, que muitos nem se deram conta: a fórmula "quem sou eu para julgar" é pura condescendência, no pior sentido do termo. A recusa em sentenciar se dá de uma posição pretensamente superior, de quem acredita estar certo, mas trata quem discorda de maneira paternalista, passando-lhe a mão na cabeça. Essa piedade papal dificilmente pode redundar em avanços na luta por direitos básicos de homossexuais, como o de casar, adotar crianças ou andar nas ruas sem temer ser alvo de violência gratuita.

Muitos dirão que a Igreja Católica nunca se modernizará, pois, se o fizer, deixará de ser uma referência sólida. Que mal faria modificar uma ideologia que exclui e marginaliza? Se instituições e pessoas não evoluíssem, ainda seríamos caçadores nômades que conquistam mulheres pela força do porrete. As colunas da Basílica de São Pedro não se moveriam nem um milímetro caso o papa resolvesse anunciar que nada há de errado no amor entre duas pessoas do mesmo sexo ou numa relação que se segue a um matrimônio malsucedido. Tanto num quanto noutra, há apenas a busca da felicidade.

Os alicerces da civilização ocidental continuariam os mesmos se, porventura, o bispo de Roma afirmasse que filhos são muito bem-vindos, mas devem ser adiados até que os pais tenham condições psicológicas e materiais de os orientar. Nenhum fiel se imolaria na Capela Sistina caso mulheres pudessem ser ordenadas, exercendo a vocação pastoral de forma plena, e se a padres e solteiros fosse permitido usufruir da dádiva do desejo. Abraçando as diferenças de forma sincera, não como quem lida com incapazes, a Igreja cresceria moralmente, pois estaria concretizando o mandamento do amor.

Quem usar o propalado discernimento jesuíta concluirá que Deus, retrato da suprema sabedoria e da infinita bondade, se existir, não estará preocupado com assuntos comportamentais como os condenados pela Igreja. É desnecessário estudar teologia para intuir isso. Basta consultar a própria consciência, na qual o certo e o errado estão gravados, e empregar o senso de proporção. Insistir numa postura que desconhece a complexidade dos seres humanos é mais do que lhes dar as costas, é deixar de reconhecer neles a centelha da divindade.

Francisco contribui para reduzir a tensão entre a Igreja e as pessoas que ainda lhe dão importância. Insistindo na volta à simplicidade, no conforto espiritual e na ajuda aos pobres, ele retorna à missão indevidamente abandonada. Pela via administrativa, combate a corrupção na Santa Sé e reduz os jogos de poder que minam a atuação pastoral. O papa representou, até agora, novo estilo, mas não pode ser qualificado como progressista - muito menos como revolucionário. Sem tentar, ainda que de maneira gradual, viabilizar reformas substanciais e de fundo doutrinário, a personalidade do ano da revista Time será apenas mais um a ocupar o trono de Pedro.