segunda-feira, 23 de setembro de 2013

Orçamento cada vez mais rígido - BERNARD APPY


O ESTADO DE S. PAULO - 22/09

Nos últimos meses uma série de projetos voltados a ampliar a vinculação de recursos para áreas sociais foi aprovada ouvem sendo discutida no Congresso Nacional. Um exemplo é a Lei n.° 12.858, sancionada no dia 9 deste mês, que destina à educação (75%) e à saúde (25%) a totalidade das receitas dos royalties do petróleo relativas a contratos celebrados a partir de 3 de dezembro de 2012, bem como destina à educação 50% dos recursos do Fundo Social (fundo formado para receber todos os recursos obtidos pela União com a exploração do petróleo no pré-sal).

Embora à primeira vista essa medida pareça positiva - afinal, quem é contra a ampliação de recursos para a educação e para a saúde?ela é o resultado de um modelo extremamente problemático de definição de prioridades para as despesas públicas no Brasil. Esse modelo consiste na vinculação de um montante cada vez maior de recursos a determinadas categorias de despesas, sem uma discussão minimamente adequada sobre como essa vinculação afeta as demais despesas, a carga tributária e a dívida pública do País.

Vou me explicar melhor. À primeira vista, o aumento das despesas sociais decorrentes da Lei n.° 12.858 tem uma fonte de recursos, que são os royalties do petróleo dos novos contratos. Em nenhum momento se discutiu, 110 entanto, o que se está deixando de fazer por conta dessa vinculação.

De fato, os royalties dos novos contratos tendem a substituir, progressivamente, as receitas resultantes dos contratos antigos, que tendem a se reduzir à medida que a produção dos poços antigos vai se esgotando. Como já existem despesas que hoje são financiadas com os royalties, ao vincular a totalidade dos novos recursos à educação e à saúde, a Lei n.° 12.858 está retirando a fonte de financiamento das demais despesas que hoje são cobertas com recursos do petróleo - tanto na União quanto nos Estados e municípios.

Ao perder a fonte de financiamento destas demais despesas, os governos têm três alternativas possíveis: ou cortam essas despesas ou aumentam a carga tributária ou a dívida pública para manter as despesas.

Este c o ponto que eu gostaria de destacar. O modelo vigente no Brasil de vinculação de recursos para determinadas categorias de despesas olha apenas para um lado da moeda, que é o do gasto que se quer privilegiar, mas não olha para o outro lado da moeda, que é o que se está deixando de fazer.

É importante ter em conta que a Lei n.° 12.858 não é um caso isolado. Além de a Constituição federal á determinar a destinação à educação de 18% da receita de impostos da União (líquida de transferências) e de 25% da receita de impostos (acrescida de transferências) dos Estados e municípios, nos últimos 15 anos várias medidas de vinculação de recursos à saúde e à educação foram adotadas.

Uma dessas medidas é a Emenda Constitucional 29, de 2000, que determinou a vinculação de 12% da receita liquidada impostos dos Estados (acrescida de transferências) à saúde, porcentual que sobe para 15% no caso dos municípios, e estabeleceu que as despesas da União com saúde serão corrigidas anualmente com base na variação do PIB. Outra medida é a Lei n.° 11.494, de 2007, que estabeleceu que pelo menos 70% das transferências da União para o Fundo de Desenvolvimento da Educação Básica (FUNDEB) serão financiadas com recursos adicionais a vinculação constitucional de 18% dos impostos.

Não pretendo, neste artigo, discutir se o nível de gastos em educação e saúde no Brasil é adequado (sobre as despesas com educação, recomendo a leitura de três textos do início de setembro 110 blog de Mansueto Almeida -http://mansueto.wordpress.com). Em todo caso, vale destacar que, para vários analistas, antes de aumentar a despesa com educação e saúde, seria preciso tomar medidas voltadas para melhorar a gestão e aumentar a eficiência dos gastos já existentes.

O que me preocupa é a crescente rigidez do Orçamento público. Ao decidir vincular os recursos do petróleo à educação e à saúde, o legislador de hoje está reduzindo o espaço que o legislador de amanhã terá na definição de prioridades.

Esse enrijecimento do Orçamento no longo prazo não é acompanhado de qualquer discussão sobre as alternativas de utilização dos recursos. Não se discute, por exemplo, se há carências mais importantes e urgentes em outros setores, como segurança pública, transporte público ou infraestrutura. Tampouco se avalia se o aumento das receitas do petróleo poderia ser utilizado para viabilizar a redução da carga tributária de outros setores da economia.

O pior é que o Orçamento no Brasil já é extremamente rígido. Para além dos recursos vinculados, há um grande conjunto de despesas que não podem ser reduzidas no curto prazo - como benefícios previdenciários e assistenciais e os gastos com pessoal. O resultado é que a parcela do Orçamento que pode ser gerida pelos governos - como investimentos ou gastos em setores não protegidos por vinculações - é extremamente reduzida. Não é por outro motivo que o Brasil tem uma carga tributária de mais de 35% do PIB e aloca em investimentos públicos (nos três níveis de governo) menos de 3% do PIB.

Em razão dessa alta rigidez do Orçamento, quando se faz necessário algum ajuste nas contas públicas, o que resta ao governo é cortar investimentos ou elevar a carga tributária. Esse tipo de ajuste cobra seu preço na forma de um menor crescimento do País no longo prazo, o que, em última instância, acaba reduzindo inclusive os recursos destinados à saúde eà educação.

Em suma, ainda que despesas em saúde e educação sejam importantes, o aumento da vinculação de recursos a esses setores (ou a qualquer outro setor) não é a solução para o problema.

Finalizo informando que escreverei nesta coluna a cada cinco semanas. Retomarei o tema em meu próximo artigo, com a apresentação de algumas sugestões.

A filha do general, na Brasileiros

ELEONORA ZERBINI
Fim do silêncio – Eugenia fala sobre o estupro que sofreu aos 16 anos para tentar resolver um episódio “muito mal digerido”
Quando dava banho em sua filha, Eleonora, a advogada Eugenia Zerbini sempre repetia: “Esse corpinho é seu. Lembre-se sempre disso. Para tocar nele, as pessoas precisam pedir licença”. A menina já estava com 5 anos quando a avó, a advogada Therezinha Godoy Zerbini, célebre por liderar o movimento pela Anistia no Brasil, resolveu dar banho na neta. Houve resistência.
– Precisa pedir licença! – avisou Eleonora.
– Que licença que nada! Onde já se viu? – revidou Therezinha, uma mulher “com poder de mando”, como ela própria se define.
O que Therezinha não sabia era o drama escondido por trás da reação da neta. A menina tampouco sabia. Só entendeu a insistência de Eugenia em alertá-la para proteger o corpo depois de completar 16 anos. Eleonora foi a primeira pessoa a saber o que tinha acontecido com a mãe na tarde da sexta-feira 13 de fevereiro de 1970. Filha do general Euryale de Jesus Zerbini, um dos quatro generais do Exército a resistir ao golpe de 1964, Eugenia foi violentada na sede da Operação Bandeirante (OBAN), o centro de repressão e tortura financiado por empresários, que reunia militares das três Forças Armadas e policiais civis na rua Tutoia, em São Paulo. Eram quase 15 horas quando Eugenia chegou à OBAN, com a intenção de entregar uma maleta com artigos de uso pessoal para a mãe, Therezinha, presa dois dias antes.
– Sou filha do general Zerbini. Quero falar com o oficial do dia – disse Eugenia na entrada, usando um termo que conhecia desde criança, em referência ao militar responsável pela rotina de um quartel.
Àquela altura, o general Zerbini estava cassado. Quase seis anos antes, em março de 1964, o militar tentou resistir ao golpe que derrubou o governo João Goulart. Recém-destacado para o comando da Infantaria em Caçapava, no interior paulista, ele acabou preso no Forte de Copacabana, no Rio de Janeiro. Depois de integrar as fileiras do Exército por quase quatro décadas, o general legalista voltou para casa no dia 22 de maio. Nos primeiros tempos, passava os dias lendo na sala da construção modernista projetada para a família pelo arquiteto Plínio Croce no bairro do Pacaembu. Na sequência, decidiu fazer pós-graduação em Filosofia, na Universidade de São Paulo (USP). Com a orientação da filósofa Marilena Chaui, chegou a redigir um trabalho sobre o pensador francês Maurice Merleau-Ponty. Mais tarde, com o novo regime cada vez mais consolidado, Zerbini não teve outra alternativa a não ser a área civil. Embora os ventos fossem adversos para militares cassados, ele conseguiu emprego como gerente da Indústria de Papel Simão, em Jacareí, a 80 km de casa. Passava apenas os finais de semana com a família em São Paulo, onde chegava no começo das noites de sexta-feira.
Congresso de Ibiúna
Vinte anos mais nova que o marido, Therezinha era formada em Direito e trabalhava como tesoureira dos Correios, no centro paulistano. Envolvida com a política desde os tempos do getulismo, ela atuava na resistência ao regime que tinha expulsado seu marido da caserna. Chegou a esconder na casa de sua mãe, Arminda, o cabo José Anselmo dos Santos. No sobrado do bairro do Cambuci, o então líder marinheiro ficava no quarto de costura, que não tinha janelas para a rua. Therezinha jamais imaginaria que o homem doce, em cujos braços sua mãe estendia fios de lã para reorganizar novelos, seria desmascarado mais tarde como um traidor. Ela também não imaginava que seu nome cairia nas mãos da repressão por causa do congresso clandestino da União Nacional dos Estudantes (UNE), que terminou com cerca de 700 estudantes presos na cidade paulista de Ibiúna, em outubro de 1968.
O envolvimento de Therezinha com o encontro dos estudantes foi uma casualidade. No segundo semestre daquele ano, o general estava trabalhando em Jacareí, quando ela recebeu a visita do sitiante Domingos Simões. Filho do zelador de um prédio em São Paulo, Simões havia escapado do serviço militar com a ajuda do general Zerbini. Era um episódio do passado, mas ele continuava ligado aos Zerbini e gostava de retribuir o antigo favor, levando legumes e verduras do seu sítio para a família. Tinha acabado de entregar umas abóboras a Therezinha quando chegou o frei Tito de Alencar Lima, do convento dos dominicanos. O religioso estava atrás do general, seu colega de turma na pós-graduação na USP. Acabou contando a Therezinha que procurava um lugar que pudesse sediar um congresso da UNE, então na ilegalidade. Na mesma hora, ela apresentou frei Tito a Simões e os dois começaram as tratativas para usar o sítio de Ibiúna. Por causa disso, Therezinha responderia a um Inquérito Policial-Militar e seria indiciada em dezembro de 1969.
Estátua de sal
Na Quarta-feira de Cinzas de 1970, Therezinha jantava com o marido e a filha Eugenia na casa do Pacaembu quando tocaram a campainha. O outro filho do casal, Euryale Jorge, mais novo do que Eugenia, estava no Rio de Janeiro, na casa do general Luiz Tavares da Cunha Mello, também cassado pelo golpe. O período era de férias escolares. Antes, Marcos, filho de Cunha Mello, havia passado o Carnaval com os Zerbini em Campos do Jordão. Na casa do Pacaembu, a empregada, Lita de Aragão, atendeu à porta e disse que “um tal” capitão Guimarães queria falar com Therezinha. Eugenia se lembra em detalhes daquela noite. “Eu, com 16 anos recém-completados, achava que entendia de muita coisa e comentei que devia ser alguém pedindo carta de apresentação para o tio Eurípedes”, conta Eugenia, referindo-se ao irmão do general, o médico Eurípedes de Jesus Zerbini, que realizou a primeira cirurgia de transplante de coração no Brasil. “Embora meu pai estivesse cassado, muita gente, principalmente do Exército, recorria a ele ou à minha mãe quando precisava de alguma coisa.”
Therezinha mandou abrir a porta para a visita, mas estava sentada de costas para a entrada. Só o general, na cabeceira da mesa, e Eugênia, de frente para as escadas que levam à porta principal da casa, viram descer três homens sem farda nem identificação, dois deles com metralhadoras. O que estava desarmado se apresentou como capitão Guimarães e disse que tinha ordens de levar Therezinha para a OBAN. “Tive a impressão de que o ar poderia ser cortado com uma tesoura, de tão denso que ficou”, lembra Eugenia. “Minha mãe perguntou se poderia terminar de jantar e pediu que eles esperassem na sala. O nosso cachorro, o Zorba (um poodle), entrou latindo, o que quebrou um pouco o gelo. Mas meu pai já tinha se levantado. Ele era muito calmo, mas se levantou como um general. Começou a andar em direção ao telefone, como se fosse ligar para o comandante do II Exército, que supostamente era a patente mais alta em São Paulo.”
– A quem vocês se reportam? – perguntou o general Zerbini.
– É um órgão novo. Não é do seu tempo – respondeu um dos militares sem farda.
Therezinha, por sua vez, se dirigiu ao marido:
– Não peça favor para ninguém. Eu entrei nisso sozinha, eu saio disso sozinha.
 Esse é bem seu estilo. Não por acaso, Eugenia costuma repetir, mesmo na frente da mãe, que é filha de general, mas foi criada por um sargentão. Enfim, naquela noite, assim que terminou o jantar, Therezinha subiu com a filha para o terceiro pavimento da casa, onde até hoje fica seu quarto. Escovou os dentes, tirou da bolsa a caderneta de telefones e colocou a carteirinha da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Chegou a pensar em levar uma muda de roupa. “Eu mesma disse que levar roupas seria como assinar uma confissão de culpa. Argumentei que ela deveria ir como se fosse da outra vez, para prestar depoimento e voltar para casa. Combinei que, se ela não voltasse no dia seguinte, eu levaria as coisas dela. Então, foi uma ideia minha. Ela poderia ter me enquadrado, falado que a OBAN não era lugar para crianças, para moças, mas tinha tanta coisa para pensar. As coisas foram como foram.”
O general passou a noite em claro, na sala. Na manhã da quinta-feira, antes de seguir para o trabalho em Jacareí, perguntou à filha se queria ir para a casa da avó ou de uma de suas tias. Ao mesmo tempo, ponderou que seria melhor que ficasse na casa, com a empregada, para o caso de telefonarem dando notícias de Therezinha. Ninguém ligou. Na sexta, às 14h30, Eugenia chamou um táxi do ponto da rua Professor João Arruda, em Perdizes, o mais próximo de sua casa. Ao embarcar, levava para a mãe um malinha com artigos de higiene pessoal e roupas de baixo: “Eu sabia um pouco do risco que estava correndo. Ouvia as conversas dos meus pais. Tinha medo de ver sangue, de ver uma cena de tortura, mas eu não pensei que eu iria responder por esse ato com o meu próprio corpo”. Pouco antes das 15 horas, ela chegou à sede da OBAN, se identificou como filha do general Zerbini para o homem à paisana na porta e pediu para falar com o oficial do dia.
“Naquela época, ninguém sabia quem era um general da ativa ou um reformado. Só quatro generais foram contra o golpe. Em todo o caso, eu era filha de uma autoridade. Não falei que me chamava Eugenia. Enfim, esse sujeito me acompanhou até uma espécie de recepção, no mesmo piso. Daí, ele entrou e voltou rápido. E me mandou entrar. Não andei muito, não subi nenhuma escada, não atravessei nenhum labirinto de corredores. Era algo próximo. Eu não estava muito longe da entrada”, recorda Eugenia. “A única coisa que me chamou a atenção foi o fato de a sala ser muito despida. Tinha só uma mesa e duas cadeiras. Mais nada, nenhuma folhinha na parede, nada.” Pouco depois, entrou um homem sem farda nem identificação, e sentou-se na cadeira em frente à de Eugenia: “Tinha uns 30, 35 anos. Tinha cara de ruim? Nem ruim nem bom. Nem feio nem bonito. Tenho certeza de que era mais alto do que eu. Eu tenho 1,65 m. Muito mais forte? Os homens são mais fortes que as mulheres”. Eugenia se lembra ainda que ele não tinham cabelo “de reco” (recruta). Na época, militares vinculados aos porões da repressão usavam cabelos mais longos, como se fossem civis. Diante desse homem, Eugenia mudou o discurso. Disse que era filha de Therezinha Zerbini, que a mãe estava detida e pediu que lhe entregasse a malinha com objetos pessoais.
– O que a sua mãe está fazendo aqui? Por que prenderam sua mãe? – perguntou o homem.
– Os senhores é quem devem saber. Os senhores é que prenderam – respondeu a filha do general.
“Era verdade, mas quis fazer um pouco de ironia. Daí, eu me levantei e ele me agarrou. Por que não gritei? Gritar na Operação Bandeirantes? E o medo que ele me desse um murro e me arrebentasse os dentes? E o medo de que as coisas pudessem ficar muito piores? Eu fiquei paralisada. Tinha me preparado para ver sangue, ouvir gritos, mas isso eu nunca imaginei. A porta estava fechada. Estava trancada? Eu não sei. Juro que não sei”, diz Eugenia. “Quando acabou, ele abriu a porta. De repente, vi que estava na porta para a rua. Eu nem olhei para trás. Nem queria saber como cheguei naquela porta. Queria ir embora, ficar longe daquilo. Tanto que enquanto andava na rua Tutoia, procurando um táxi, eu falava para mim mesma ‘vai, vai, não olha para trás’. Naquela hora, veio a ideia da Bíblia, de Sodoma e Gomorra, porque a mulher de Lot, ao sair da cidade, desobedece Deus, olha para trás e vira uma estátua de sal.”
Google Imagens
Eugenia voltou para casa e não contou para ninguém o que tinha acontecido: “Papai poderia fazer uma loucura. Quando eu nasci, ele tinha 46 anos. Fui a primeira filha. A mulher que ele amava estava presa e eu dizer que tinha acontecido aquilo comigo? Contar para a minha avó Arminda, a mãe da minha mãe? Dar essa dor para ela? A filha dela já estava presa. As duas filhas, porque junto com a minha mãe foi presa a minha tia Antonieta. Era uma política de intimidação. Imagine que tia Antonieta assinava Maria Antonieta, por causa da rainha da França. Apesar de ter ficado viúva muito cedo, a vida para ela era uma bolha de sabão. Não tinha consciência política nenhuma. Só havia hospedado o Simões (o dono do sítio de Ibiúna), a pedido de minha mãe. Contar para os meus colegas do Colégio Rio Branco, que diziam que eu era filha de comunista? Nessa época, a classe média e a classe média alta estavam eufóricas. Ganhavam rios de dinheiro no mercado financeiro. As pessoas estavam pouco se importando com a tortura. Eu queria sumir”.

Eugenia seguiu em frente. Nos oito meses em que sua mãe esteve presa, ela assumiu o comando da casa do Pacaembu: “Cresci ouvindo minha mãe dizer que eu precisava ser forte. Foi assim quando o meu pai foi preso, em 1964. Então, quando ela estava presa, eu precisava fazer alguma coisa que a deixasse feliz. E fui muito forte”. Formada em Direito pela USP, mestre e doutora em Direito Internacional, Eugenia fez carreira como alta executiva do setor financeiro, inclusive como uma das vice-presidentes do Citibank em Nova York. Foi também professora universitária. Hoje, aos 60 anos, ela trabalha em uma biografia da imperatriz Teresa Cristina, mulher de D. Pedro II. Seu romance de estreia, de 2004, o premiado As Netas da Ema, relata uma cena de estupro: “Aquele é uma ficção”. A própria violação Eugenia decidiu trazer a público pela primeira vez, na Brasileiros, por considerar que era uma história muito mal digerida: “Já passei horas no Google Images atrás de fotografias dos antigos torturadores, tentando identificar aquele homem. 
Agora, com a abertura dos arquivos, com a Comissão da Verdade, as pessoas falam. O meu depoimento será considerado. Antes, a maior dor que poderia me ser infringida, se não fossem suficientes as dores do dia 13 de fevereiro de 1970, seria duvidarem do meu relato”. Quarenta e quatro anos depois, Eugenia conta com o apoio da confidente original, a filha Eleonora Zerbini, autora da fotografia ao lado. Aos 19 anos, a fotógrafa Eleonora é aquela menina que enfrentou a avó na hora do banho.

Ives Gandra: José Dirceu foi condenado sem provas

Ives Gandra: "Do ponto de vista jurídico, eu não aceito a teoria do domínio do fato. A teoria que sempre prevaleceu no Supremo foi a do na dúvida pró-réu"
MÔNICA BERGAMO
COLUNISTA DA FOLHA
O ex-ministro José Dirceu foi condenado sem provas. A teoria do domínio do fato foi adotada de forma inédita pelo STF (Supremo Tribunal Federal) para condená-lo.
Sua adoção traz uma insegurança jurídica “monumental”: a partir de agora, mesmo um inocente pode ser condenado com base apenas em presunções e indícios.
Quem diz isso não é um petista fiel ao principal réu do mensalão. E sim o jurista Ives Gandra Martins, 78, que se situa no polo oposto do espectro político e divergiu “sempre e muito” de Dirceu.
Com 56 anos de advocacia e dezenas de livros publicados, inclusive em parceria com alguns ministros do STF, Gandra, professor emérito da Universidade Mackenzie, da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército e da Escola Superior de Guerra, diz que o julgamento do escândalo do mensalão tem dois lados.
Um deles é positivo: abre a expectativa de “um novo país” em que políticos corruptos seriam punidos.
O outro é ruim e perigoso pois a corte teria abandonado o princípio fundamental de que a dúvida deve sempre favorecer o réu.
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Folha – O senhor já falou que o julgamento teve um lado bom e um lado ruim. Vamos começar pelo primeiro.
Ives Gandra Martins - O povo tem um desconforto enorme. Acha que todos os políticos são corruptos e que a impunidade reina em todas as esferas de governo. O mensalão como que abriu uma janela em um ambiente fechado para entrar o ar novo, em um novo país em que haveria a punição dos que praticam crimes. Esse é o lado indiscutivelmente positivo. Do ponto de vista jurídico, eu não aceito a teoria do domínio do fato.
Por quê?
Com ela, eu passo a trabalhar com indícios e presunções. Eu não busco a verdade material. Você tem pessoas que trabalham com você. Uma delas comete um crime e o atribui a você. E você não sabe de nada. Não há nenhuma prova senão o depoimento dela -e basta um só depoimento. Como você é a chefe dela, pela teoria do domínio do fato, está condenada, você deveria saber. Todos os executivos brasileiros correm agora esse risco. É uma insegurança jurídica monumental. Como um velho advogado, com 56 anos de advocacia, isso me preocupa. A teoria que sempre prevaleceu no Supremo foi a do “in dubio pro reo” [a dúvida favorece o réu].
Houve uma mudança nesse julgamento?
O domínio do fato é novidade absoluta no Supremo. Nunca houve essa teoria. Foi inventada, tiraram de um autor alemão, mas também na Alemanha ela não é aplicada. E foi com base nela que condenaram José Dirceu como chefe de quadrilha [do mensalão]. Aliás, pela teoria do domínio do fato, o maior beneficiário era o presidente Lula, o que vale dizer que se trouxe a teoria pela metade.
O domínio do fato e o “in dubio pro reo” são excludentes?
Não há possibilidade de convivência. Se eu tiver a prova material do crime, eu não preciso da teoria do domínio do fato [para condenar].
E no caso do mensalão?
Eu li todo o processo sobre o José Dirceu, ele me mandou. Nós nos conhecemos desde os tempos em que debatíamos no programa do Ferreira Netto na TV [na década de 1980]. Eu me dou bem com o Zé, apesar de termos divergido sempre e muito. Não há provas contra ele. Nos embargos infringentes, o Dirceu dificilmente vai ser condenado pelo crime de quadrilha.
O “in dubio pro reo” não serviu historicamente para justificar a impunidade?
Facilita a impunidade se você não conseguir provar, indiscutivelmente. O Ministério Público e a polícia têm que ter solidez na acusação. É mais difícil. Mas eles têm instrumentos para isso. Agora, num regime democrático, evita muitas injustiças diante do poder. A Constituição assegura a ampla defesa -ampla é adjetivo de uma densidade impressionante. Todos pensam que o processo penal é a defesa da sociedade. Não. Ele objetiva fundamentalmente a defesa do acusado.
E a sociedade?
A sociedade já está se defendendo tendo todo o seu aparelho para condenar. O que nós temos que ter no processo democrático é o direito do acusado de se defender. Ou a sociedade faria justiça pelas próprias mãos.
Discutiu-se muito nos últimos dias sobre o clamor popular e a pressão da mídia sobre o STF. O que pensa disso?
O ministro Marco Aurélio [Mello] deu a entender, no voto dele [contra os embargos infringentes], que houve essa pressão. Mas o próprio Marco Aurélio nunca deu atenção à mídia. O [ministro] Gilmar Mendes nunca deu atenção à mídia, sempre votou como quis.
Eles estão preocupados, na verdade, com a reação da sociedade. Nesse caso se discute pela primeira vez no Brasil, em profundidade, se os políticos desonestos devem ou não ser punidos. O fato de ter juntado 40 réus e se transformado num caso político tornou o julgamento paradigmático: vamos ou não entrar em uma nova era? E o Supremo sentiu o peso da decisão. Tudo isso influenciou para a adoção da teoria do domínio do fato.
Algum ministro pode ter votado pressionado?
Normalmente, eles não deveriam. Eu não saberia dizer. Teria que perguntar a cada um. É possível. Eu diria que indiscutivelmente, graças à televisão, o Supremo foi colocado numa posição de muitas vezes representar tudo o que a sociedade quer ou o que ela não quer. Eles estão na verdade é na berlinda. A televisão põe o Supremo na berlinda. Mas eu creio que cada um deles decidiu de acordo com as suas convicções pessoais, em que pode ter entrado inclusive convicções também de natureza política.
Foi um julgamento político?
Pode ter alguma conotação política. Aliás o Marco Aurélio deu bem essa conotação. E o Gilmar também. Disse que esse é um caso que abala a estrutura da política. Os tribunais do mundo inteiro são cortes políticas também, no sentido de manter a estabilidade das instituições. A função da Suprema Corte é menos fazer justiça e mais dar essa estabilidade. Todos os ministros têm suas posições, políticas inclusive.
Isso conta na hora em que eles vão julgar?
Conta. Como nos EUA conta. Mas, na prática, os ministros estão sempre acobertados pelo direito. São todos grandes juristas.
Como o senhor vê a atuação do ministro Ricardo Lewandowski, relator do caso?
Ele ficou exatamente no direito e foi sacrificado por isso na população. Mas foi mantendo a postura, com tranquilidade e integridade. Na comunidade jurídica, continua bem visto, como um homem com a coragem de ter enfrentado tudo sozinho.
E Joaquim Barbosa?
É extremamente culto. No tribunal, é duro e às vezes indelicado com os colegas. Até o governo Lula, os ministros tinham debates duros, mas extremamente respeitosos. Agora, não. Mudou um pouco o estilo. Houve uma mudança de perfil.
Em que sentido?
Sempre houve, em outros governos, um intervalo de três a quatro anos entre a nomeação dos ministros. Os novos se adaptavam à tradição do Supremo. Na era Lula, nove se aposentaram e foram substituídos. A mudança foi rápida. O Supremo tinha uma tradição que era seguida. Agora, são 11 unidades decidindo individualmente.
E que tradição foi quebrada?
A tradição, por exemplo, de nunca invadir as competências [de outro poder] não existe mais. O STF virou um legislador ativo. Pelo artigo 49, inciso 11, da Constituição, Congresso pode anular decisões do Supremo. E, se houver um conflito entre os poderes, o Congresso pode chamar as Forças Armadas. É um risco que tem que ser evitado. Pela tradição, num julgamento como o do mensalão, eles julgariam em função do “in dubio pro reo”. Pode ser que reflua e que o Supremo volte a ser como era antigamente. É possível que, para outros [julgamentos], voltem a adotar a teoria do “in dubio pro reo”
Por que o senhor acha isso?
Porque a teoria do domínio do fato traz insegurança para todo mundo.