domingo, 21 de julho de 2013

Reduzir conta de juros não é panaceia - SAMUEL PESSÔA


FOLHA DE SP - 21/07

Se conseguirmos reduzir o gasto com juros, o que sobrará para o Tesouro estará longe de ser panaceia


Nas últimas semanas, tenho defendido que, apesar da elevadíssima carga tributária, a má qualidade dos serviços públicos não se deve a ineficiências generalizadas ou à elevadíssima corrupção.

Tenho argumentado que o gasto é muito elevado por causa de transferências a grupos da sociedade --a maior parte delas aprovadas pelo Congresso Nacional--, que oneram muito o Tesouro Nacional.

Adicionalmente, tenho defendido a ideia de que a operação interna do setor público e as regras de direito administrativo às quais o Estado está sujeito deixam muito pouco espaço para que o Executivo melhore a qualidade com medidas de gestão.

Qualquer agenda de melhoria dos serviços públicos passará necessariamente por novas rodadas de elevação da carga tributária e por complexo programa legislativo de mudanças institucionais do Estado.

Uma rubrica do gasto público de que não tratei até o momento em minhas colunas é do custo do pagamento de juros.

Em geral, os economistas não consideram esse item quando avaliam a situação fiscal do Estado. O motivo é que o gasto com juros não é controlado pela autoridade fiscal. Ele é determinado pela taxa de juros, ligada à política de combate à inflação, e pelo tamanho da dívida pública sobre a qual os juros incidem.

Para a redução da conta com juros, são necessários muitos anos de política fiscal conservadora, que diminuam a dívida pública e, assim, o peso dessa rubrica no Orçamento.

O grande problema com os juros é que, apesar de não estar nas mãos da Fazenda determinar esse gasto, ele representa uma real transferência de renda da sociedade aos poupadores ou rentistas (como desejar o leitor). Esse mecanismo de transferência torna o debate sobre o pagamento de juros um tanto quanto ideológico, o que leva a erros básicos de interpretação.

Por exemplo, é comum pessoas contabilizarem como gasto com juros a amortização da dívida pública. Suponha que um inquilino de um imóvel, após alguns anos, tenha que desocupá-lo, pois o senhorio o requisitou. Considerar que a amortização de um empréstimo é um gasto é equivalente a achar que no ato de devolução de um imóvel alugado o inquilino tem despesa equivalente ao valor do imóvel!

Ao amortizar uma dívida, o Tesouro Nacional está somente devolvendo algo que não lhe pertence.

Entendido esse ponto, é possível dizer que o gasto público com juros tem rodado desde 2008 na casa de 5% do PIB ao ano. Se essa conta fosse substancialmente reduzida, sobraria espaço para melhorar a qualidade do gasto público sem ter que aumentar a carga tributária.

Ocorre que esses números referem-se aos gastos com juros nominais. Os papéis financeiros que compõem a dívida pública perdem valor com a inflação. Assim, parte dos juros pagos simplesmente recompõe o valor do ativo financeiro.

A parcela do pagamento de juros aos rentistas que só repõe o valor real do ativo financeiro não é renda de fato para o detentor do título público. A renda é um recurso que as pessoas têm para gastar sem que a sua situação patrimonial se reduza.

Se elas gastam a correção monetária dos recursos investidos na dívida pública, estão gastando mais do que a renda. E, se essa parte não é renda para o rentista, tampouco é gasto real para o Tesouro.

A inflação no Brasil tem rodado na casa de 5% ao ano, e a dívida pública encontra-se por volta de 40% do PIB. Multiplicando a dívida pela inflação, chega-se a 2% do PIB. Ou seja, dos 5% do PIB de pagamento dos juros nominais, somente 3% correspondem aos juros reais pagos. Esse é, de fato, o gasto do Tesouro Nacional com sua dívida.

Se mantivermos uma política fiscal conservadora por mais alguns anos e conseguirmos reduzir essa conta dos 3% do PIB para 1%, algo mais próximo da experiência internacional, aparecerá no caixa do Tesouro uma parcela adicional de recursos de 2% do PIB. Está longe da panaceia que alguns acreditam.

Há os que consideram que a conta salgada dos juros pagos aos rentistas é o grande problema fiscal brasileiro e que, uma vez resolvida essa questão, muito mais Orçamento será liberado para investimentos e políticas públicas.

Como procurei mostrar neste artigo, é bom que essas pessoas comecem a buscar recursos em outras rubricas das contas públicas.

O fantasma da órfã - JOÃO UBALDO RIBEIRO


O GLOBO - 21/07

A propalada truculência da presidente está virando folclore e em lugar de força, mais parece denunciar exasperação impotente



Atribuem ao presidente Kennedy a observação de que a vitória tem muitos pais, mas a derrota é órfã. Melancólica verdade, sobretudo na política, que sempre a confirma sem perdão, bastando ver como as mãos políticas que hoje afagam são as mesmas que ontem apedrejavam e vice-versa. Em nosso caso, temos ainda uma tradição de adesismo por que zelar, bem como a prevalência do Sonho Brasileiro, que é descolar uma mamata vitalícia em algum lugar do governo ou do estado, porque aqui governo e estado são a mesma coisa. Entra um governo novo e declara “o estado é nosso e só faz o que nós queremos”. Isso torna impossível a realização do sonho sem que o sonhador abandone o inditoso derrotado e passe para o lado do futuroso vencedor. Suponho que devemos encarar essas coisas com compreensão e até caridade, pois o pessoal está apenas querendo sobreviver e subir na vida, é natural.

Vários outros princípios e paradigmas de conduta estão também envolvidos na questão, entre os quais sobressai o “farinha pouca, meu pirão primeiro”, farol ético que parece nortear nossa formação coletiva, tal o vigor com que se evidencia no comportamento de nossos governantes. Às vezes penso que a frase devia constar de algum emblema nacional, é muito injusto que não receba o reconhecimento merecido. No momento, a farinha ainda não está propriamente pouca, mas há sempre os previdentes, que não querem deixar seu pirão aos cuidados do acaso. Melhor tratar de farejar os ares e descortinar por onde anda a temível assombração da derrota, para ir-se afastando dela quanto antes. Não sei se já começou a debandada, mas acho que pelo menos há alguns sinais dela, difusos nos noticiários e comentários políticos.

O moral do governo não parece andar muito alto. O saco de gatos dos ministérios é um espetáculo triste, desanimado, desarvorado e sem aparentar saber muito para onde ir, ou o que fazer. Ninguém — arrisco-me a dizer que nem mesmo a presidente — é capaz de lembrar todos os ministérios e muito menos todos os ministros. Sabe-se que muitos destes se esgueiram obscuramente pelos corredores e salas dos fundos do poder, sem sequer terem a chance de dar um bom-dia à presidente, quanto mais de despachar alguma coisa. Fica aquela pasmaceira, interrompida por momentos de falatório vago e repetitivo, que não prenunciam nada de importante. E há, seguramente, ministros que, se perguntados de surpresa, não saberão bem o que fazem suas pastas, acrescido o pormenor de que vários ministérios, ou grande parte deles, não fazem nada mesmo, a não ser dar despesa.

A reação às manifestações de rua mostrou um esforço atarantado para manter a aparência de calma, equilíbrio e controle da situação, quando era visível que não havia nada disso e estava todo mundo de olho arregalado e sem saber o que dizer ou, pior ainda, fazer. Comentou-se em toda parte que, como já teria acontecido antes com frequência, a presidente peregrinou ao ex-presidente, para saber dele como agir, porque ela mesma não fazia ideia, o que vem sublinhando a imagem de despreparo e insegurança mal articulada que ela cada vez mais projeta. Ouvidos também os vizires do momento, saiu do Planalto uma voz chocha e pouco inspiradora, naquele tom de professora repetindo uma aula decorada a contragosto e sem nenhum entusiasmo ou até confiança, propondo absurdos, tentando espertezas quase amadorísticas e, em última análise, mostrando a incompetência do esquema que a rodeia.

A tal governabilidade, que tanto mal tem produzido, tão pouco bem tem causado e nunca funcionou direito, servindo basicamente para o intricado jogo das nomeações, colocações, favores e outros objetivos dos nossos homens públicos, está cada vez mais caindo pelas tabelas. Todo dia um cai fora, outro proclama dissidência e independência, formam-se alas e subalas, o rebuliço surdinado é grande. A turma da base aliada, que sempre deu trabalho e aporrinhação e nunca agiu pelos belos olhos da nação, começa a enxergar um governo fraco e a querer distância dele, ainda mais com as ruas pressionando. A corte continua lá, o ex-presidente continua lá, mas é de se acreditar que, de agora em diante, a solidão da presidente vai agravar-se.

A inflação está voltando e as negativas e bravatas das autoridades não convencem, diante da realidade dos preços. As declarações otimistas do ministro da Fazenda são recebidas quase com deboche. O crescimento é minguado, e a economia cambaleia cada vez mais e o governo caracteriza seu comportamento por ações meramente conjunturais e pontuais, respondendo de forma superficial e casuística aos problemas que aparecem. Os índices de popularidade da presidente desabaram e mesmo um antes improvável segundo turno nas eleições já está sendo previsto. Até uma surpreendente vaia de prefeitos ela tomou em Brasília. Tudo isso com certeza provoca inquietude na alma e comichões nos pés de quem quer ficar longe da órfã derrota.

Para completar o quadro, o governo não dispõe de um Big Bang para apresentar, no encerramento destes seus quatro anos. Nenhuma grande obra, nenhum grande passo, nenhum grande marco. Inflação subindo, PIB baixando, educação alarmante, saúde escangalhada, infraestrutura desmantelada, transporte urbano infernal, segurança pública impotente, estrutura fiscal pervertida, ferrovia Norte-Sul em descalabro, transposição do São Francisco roubada e sucateada — nada a apresentar, nada a trombetear, nada a comemorar. A propalada truculência da presidente está virando folclore e em lugar de força, mais parece denunciar exasperação impotente. Cara de derrota para o governo e ninguém vai querer ser o pai dela. Mas receio que não terão dificuldade em apontar a mãe.

Sobre o humanismo - LUIS FERNANDO VERÍSSIMO


ESTADÃO - 21/07

Há quem diga que o único humanista autêntico é o canibal. Seu amor pela humanidade é o mesmo amor que temos por um bom bife, e é sincero. Já o humanismo, na sua forma não antropofágica, é mais difícil de classificar. O que é, afinal, um humanista? A própria palavra humanismo tem interpretações e conotações diferentes. No dicionário, ela é descrita como uma doutrina segundo a qual o ser humano é o criador dos seus próprios valores morais. O que não ajuda muito.

Melhor, ou mais simples, seria dizer que para um humanista o ser humano é, ou deve ser, a medida de todas as coisas, e assim como o sistema métrico que mede o mundo teve origem nas dimensões do corpo humano, todos os sistemas éticos e morais do mundo devem obedecer à primazia do humano. Ou seja: ser humanista é não reconhecer nenhum determinante metafísico, nenhuma interferência divina, no ser humano e nas suas circunstâncias.

Mas estas interpretações não cobrem todos os significados de “humanismo”. A própria história do humanismo é discutível. Sua origem seria na Renascença, quando as trevas da Idade Média retrocederam diante da redescoberta do mundo clássico e não só as pinturas e esculturas de Michelangelo, Leonardo e os outros glorificaram o corpo humano redescoberto como a glória da Grécia antiga, berço da democracia e da filosofia, também voltou à luz do dia depois da noite medieval.

Mas a arte da Renascença foi toda feita em louvor e com o subsídio da Igreja, seus temas predominantes eram os santos, os mártires e os mitos da Igreja e dificilmente se encontraria um humanista, mesmo camuflado, entre os seus praticantes. E antes de se exaltar a Grécia antiga como um ideal de virtudes cívicas e civilização, é bom não esquecer que aquela era uma sociedade escravocrata, também um mau exemplo de humanismo.

O humanismo autêntico seria então um subproduto do Iluminismo do século 18, e sua origem estaria no pensamento iconoclasta de alguns magníficos hereges como Voltaire, Diderot, Descartes, aquela turma. Mas até hoje se debate a ligação direta entre o Iluminismo e o terror que se seguiu a revolução francesa, e se a idade da razão não gerou um monstro em vez de uma sociedade iluminada. O mesmo pode-se dizer de Marx e dos outros filósofos dedicados a mudar o mundo e a História em vez de apenas entendê-los, e cuja generosa proposta de igualdade e fraternidade universal desaguou no totalitarismo e no terror stalinista.

O escritor e satirista Karl Kraus, talvez o mais vienense de todos os vienenses, escreveu certa vez que na Áustria, nos estertores do império austro-húngaro, estava acontecendo um ensaio do fim do mundo. Na verdade, o que tomava forma em Viena no começo do século 20 era um novo mundo. O colapso do império dos Habsburg coincidiu com duas novidades de certa forma opostas no espírito europeu e na História: o fascismo e a psicanálise. Dizem que a história do mundo teria sido outra se Hitler tivesse se tratado com seu contemporâneo e conterrâneo Freud, mas infelizmente o encontro nunca se deu.

Freud era um humanista, mas assim como suas teorias sobre patologia e neuroses coletivas nada fizeram para deter o pesadelo nazista que se iniciava, suas descobertas sobre o inconsciente humano em nada ajudaram o humanismo. Pois o que ele dizia era que o ser humano não devia sua existência e seu destino à interferência divina, mas era regido por forças imateriais, quase que por uma metafísica interna, que desconhecia tanto quanto desconhecia os desígnios de Deus. O ser humano não era a medida de todas as coisas. O ser humano, seus recônditos obscuros e os mistérios do seu ego, eram a medida de todas as coisas.

O que significa ser um humanista hoje? Ao contrário dos canibais, que sabem do que gostam, não temos muita certeza que a humanidade nos apeteça, depois de tudo que ela aprontou. Continuamos preferindo a lógica e a razão a qualquer tipo de superstição ou pensamento mágico, mas com a consciência de que cada vez mais humanos preferem o contrário.

A divisão entre ricos e pobres aumenta, uma superprodução de alimentos convive com a fome endêmica no mesmo planeta há anos, a intransigência e o fanatismo religioso conflagram regiões inteiras - tudo prova que o humanismo está longe das sedes do poder e dos princípios da maioria. E muito longe de ser uma doutrina viável, ou mesmo um sonho para um outro tempo.

A solução talvez seja o humanismo se reconciliar com a metafísica e pedir ajuda à providência divina, para não desaparecer.