domingo, 23 de junho de 2013

Sinal de desgaste do contrato social - SAMUEL PESSÔA


FOLHA DE SP - 23/06

O baixo crescimento sob Dilma explicitou à sociedade os limites à melhora da situação de cada um


Impossível não tratar o tema das enormes manifestações que ocorrem há várias semanas em diversas cidades do país. Meu entendimento é que os protestos representam um sinal de que o contrato social da redemocratização brasileira está desgastado.

Desde a Constituição de 1988, foi-se consolidando a decisão da sociedade de construir um abrangente Estado de bem-estar social. Universalizamos a educação fundamental e avançamos muito em direção a universalizar o ensino médio.

Instituímos o SUS, um serviço de saúde universal e integral, isto é, que cobre todos os procedimentos médicos. Finalmente, os diversos programas sociais para idosos, em associação com a aposentadoria do INSS e do funcionalismo, universalizaram, na prática, a aposentadoria.

Além desses programas universais, criamos diversas iniciativas para ajudar as famílias a enfrentar riscos típicos das economias de mercado. Foram criados o seguro-desemprego, o auxílio-doença, a aposentadoria por invalidez e o Bolsa Família, entre outros programas.

Finalmente, introduziu-se o Minha Casa, Minha Vida, que subsidia a aquisição da casa própria por pessoas de baixa renda. Recentemente, o programa foi estendido, com a criação de um subsídio adicional para a aquisição de mobiliário e eletrodomésticos.

A partir da virada na política econômica em 2009, o governo trouxe para a agenda os interesses da indústria. Acumulamos reservas internacionais para ajudar a manter o câmbio mais desvalorizado, e o Tesouro emprestou quantias expressivas de recursos para o BNDES, com o objetivo de elevar o volume de crédito subsidiado ao investimento produtivo.

Adicionalmente, a agenda da indústria levou a inúmeras medidas de desoneração de tributos e à elevação da alíquota de importação para diversos produtos, com o objetivo de aumentar a competitividade manufatureira.

O resultado é um Estado que arrecada muito, por volta de 35% do PIB, transfere muitos recursos às famílias na forma de aposentadoria e programas sociais, cerca 14% do PIB, e gasta muito com juros e subsídios. Apesar da queda da taxa básica, a Selic, o custo de carregamento das reservas e dos subsídios implícitos nas operações do BNDES onera muito a conta de juros.

Não sobram, portanto, recursos para investimentos em logística, que poderão ser viabilizados se o governo aceitar taxas de remuneração maiores nos leilões de concessão. Mas, principalmente, faltam recursos para investimento em infraestrutura urbana.

Para terminar essa longa lista, é preciso lembrar que, apesar de termos caminhado muito na agenda de extensão de direitos, há o crônico problema da baixa qualidade dos serviços públicos, principalmente em educação e saúde. Nesse desafio, como em outros, pouco temos avançado.

O crescimento mais elevado no governo Lula deixou a sociedade em torpor com relação às fragilidades do contrato social da redemocratização. O crescimento bem mais baixo ao longo do mandato da presidente Dilma, que, provavelmente, fechará seu quadriênio com expansão média do PIB próxima a 2%, explicitou à sociedade os limites existentes à melhora da situação de cada um.

Aparentemente, o atual movimento de protestos levanta bandeiras pela melhoria da qualidade dos péssimos serviços públicos de educação, saúde e transporte urbano, entre outros. O aumento da passagem de ônibus e o reconhecimento dos elevados custos dos eventos esportivos serviram com detonadores da insatisfação.

A notícia que circulou na semana de que a adoção do passe livre requererá dobrar a alíquota de imposto predial coloca a discussão em bases racionais. Pode-se considerar a criação do pedágio urbano. Outras possibilidades podem ser imaginadas.

Com relação à melhora da qualidade dos serviços de saúde e educação, há uma extensa agenda que depende da criação de instrumentos que tornem a gestão desses serviços mais eficiente.

Não há saída simples e indolor nas escolhas das políticas públicas para enfrentar as deficiências do contrato social da redemocratização. Oxalá o processo eleitoral de 2014 sirva para que a sociedade amadureça esses temas e encontre os caminhos mais adequados.

Caminho da transformação - HENRIQUE MEIRELLES


FOLHA DE SP - 23/06

Há uma sensação de mal-estar difuso e generalizado no país. Muitos associam as manifestações a esse sentimen-to. Existem explicações diversas para isso, que passam pela piora da economia, a rejeição de práticas políticas, os gastos com a Copa.

Eu gostaria de focar hoje a questão da qualidade de vida da população.

Vemos a irritação das pessoas com o trânsito, o mau funcionamento dos telefones, a superlotação dos aeroportos, a precariedade dos hospitais e dos serviços. Notícias de mau uso dos recursos públicos são frequentes.

Mas o problema vai além dos serviços públicos. Um amigo que está reformando sua casa me relatou, com grande indignação, que nenhum de seus fornecedores entregou serviços e produtos no prazo nem deu qualquer satisfação.

Não há dúvidas de que vivemos uma crise de produtividade no país, e isso está longe de ser mero conceito econômico teórico. É algo que atinge a todos diariamente.

Quando discutimos a necessidade de aumentar a produtividade com licitações de portos, rodovias, aeroportos e ferrovias, por exemplo, debatemos algo que terá impacto na vida de cada um e nos preços dos produtos. A demanda muito maior por produtos e serviços, fruto do desenvolvimento econômico da última década, deve ser acompanhada por investimentos.

Já o desemprego muito baixo reduz a preocupação com a manutenção do emprego e a exigência de qualificação. "Isso, por um lado, é muito bom, porque dá mais segurança às pessoas em relação ao emprego, e toda teoria econô- mica existe, em última análise, para elevar o bem-estar dos cidadãos.

O problema é como, nesse ambiente, motivar as organizações privadas e os governos a investir na qualidade dos seus produtos e serviços e em treinamento. E também como motivar as pessoas a fazer um bom trabalho, a prestar bom serviço e a seguir a lei.

Mais importante ainda, é preciso consolidar os valores de um trabalho bem execu- tado. Eles devem estar pre- sentes da escola fundamen- tal à universidade e seguir no governo, na empresa e no terceiro setor.

Portanto, o grande desafio do país é voltarmos a recuperar o orgulho de um trabalho bem-feito em todos os níveis. A ética, nesse movimento, será fundamental.

Em minha experiência profissional, no setor público e na área privada, vi como as pessoas podem se orgulhar de um serviço bem-feito, de uma instituição que funcione bem, do bom uso dos recursos.

Precisamos reforçar esses valores e trabalhar para que prevaleçam cada vez mais. É um caminho eficiente para a transformação tão claramente desejada pela população.

Poderes e corrupção - ROBERTO ROMANO


O ESTADÃO - 23/06

As fraturas no Estado brasileiro fortalecem a corrupção que entre nós está sedimentada. Naquele artefato político anacrônico o Poder Executivo é essencial, os demais setores são adjetivos. Ele não se modificou em profundidade desde 1824 e o poder de quem o controla foi hipertrofiado após as ditaduras do século 20. A Presidência, para se manter, deve pedágios aos oligarcas do Congresso e garante a escolha de seus candidatos aos tribunais superiores. Da crise entre o Judiciário e parlamentares pode vir um fortalecimento desastroso do Executivo. A Constituição de 1988 em farrapos não encontra quem a interprete de maneira inconteste. O mito da harmonia entre poderes é desmentido a cada minuto. Para entender o desarrazoado que nos rege, podem ajudar algumas achegas ao pensamento jurídico conservador e liberal.

O Congresso abriga líderes sem compromisso com os programas oferecidos nas urnas. Eles fazem política sem doutrinas, domesticados por verbas ou cargos num farsesco realismo miúdo. Em vez de atenuar os delitos políticos, tal atitude reforça na população a esperança em algum salvador que, da Presidência e de modo autoritário, limparia os costumes. O golpe de 1964, recordemos, foi justificado pelo combate à corrupção. Figuras como Jânio Quadros, Collor de Mello e outras usaram a indignação das massas para chegar à Presidência, lá ficando por breve tempo, sem apoio político.

Na história recente as teses da direita elogiam o Executivo em detrimento dos outros poderes. É o caso de Carl Schmitt, o autor de A ditadura. Emulado por juristas como Francisco Campos, Schmitt cunhou a fórmula segundo a qual "soberano é quem decide sobre o estado de exceção". Ele foi crítico (e, não raro, com acerto) do Parlamento. Para levar a sério a democracia, afirmava, só o povo pode decidir o seu destino e jamais os deputados. Em O Protetor da Constituição, ele apela ao presidente da República, o único vigia seguro da Carta, e menciona o Poder Moderador brasileiro posto acima das pretensões parlamentares. Nega também que o Judiciário possa guardar a Constituição porque age atrasado para sanar desvios institucionais. "A independência é a necessidade primeira para um protetor da Constituição", juízes e deputados não podem cumprir o mister, pois não são independentes o bastante para garantir o Estado. Só o presidente suspende o direito "em virtude de um direito de autoconservação". É o golpe e a ditadura. Schmitt retoma o slogan contra o regime democrático: nele se discute, pouco se decide. Mas a democracia é um processo no qual não existem garantias de vitórias sem amarguras. Cada costume melhorado incentiva o bem público. Hoje, infelizmente, boa parte de nossos parlamentares age como lobistas. Quando se ouve falar em "bancadas" no Congresso, o que temos são grupos que atuam em prol de interesses particularíssimos.

Carl Schmitt não cita por acaso a Carta brasileira de 1824. O Poder Moderador, nela, foi um golpe contra a soberania popular e o Parlamento. Os idealizadores de nosso Estado seguiram a contrarrevolução europeia. O movimento de 1789, no seu entendimento, resultou em anarquia. Para barrar tal ameaça, fomos submetidos ao monarca "pela graça de Deus". Segundo o conservador Guizot, "o mais simples bom senso reconhece a necessidade da limitação de todos os poderes, quaisquer que sejam seus nomes e formas. Abri o livro em que o sr. Benjamin Constant tão engenhosamente representou a realeza como poder neutro, moderador, elevado acima dos acidentes, das lutas sociais, e que só intervém nas grandes crises. É preciso que haja nesta ideia algo muito próprio a mover os espíritos, pois ela passou com uma rapidez singular dos livros para os fatos. Um soberano dela fez, na Constituição do Brasil, a base de seu trono; a realeza é representada como Poder Moderador elevado acima dos poderes ativos, com espectador e juiz".

Segundo Constant, o Poder Moderador é neutro e apanágio da realeza, os ministros respondem pelo governo e os legisladores nada recebem. O julgamento pelo júri é a norma e impera a livre imprensa. No elogio do Poder Moderador feito por Guizot há um desvio do conceito. Constant define aquele poder como neutro para coordenar os demais. Pôr os quatro poderes numa hierarquia vertical foi o golpe em 1824. A tendência centralizadora definiu o Estado com privilégio do chefe, amesquinhando o Parlamento e o Judiciário.

As prerrogativas do Poder Moderador, inconfessadas, persistem hoje na Presidência da República, o que leva às fraturas no Estado, pois o Executivo negocia apoio parlamentar (com várias técnicas), nomeia os juízes do Supremo, controla o Senado, mas é praticamente destituído de responsabilidade. Vivemos como se ainda vigorasse o Título 5, Capítulo primeiro, artigo 99 da Constituição de 1824. Sagrada, a pessoa presidencial não está sujeita a sérios questionamentos. Ela domestica, pela propaganda e controle dos recursos públicos, a soberania popular, distorce a representação do Parlamento. As duas ditaduras que marcaram o século anterior levaram ao paroxismo a distorção da máquina estatal. A Presidência brasileira é absolutista e propensa à ditadura. A lei da reeleição, as medidas provisórias que se eternizam, a prerrogativa de foro para agentes dos poderes definem alguns dos principais óbices para a democracia. E temos a sucessão de crise após crise, porque não existe limite efetivo para o Executivo. Se este último ignora barreiras, o mesmo tentam fazer os demais. Reaparece, surgida da indecisão jurídica nacional, outra fórmula cunhada por Carl Schmitt: política é o campo onde os inimigos são definidos. Inimigo harmônico é quimera, algo tão fantasioso quanto as leis no Estado brasileiro.