segunda-feira, 17 de junho de 2013

Jovens vão às ruas e nos mostram que desaprendemos a sonhar

AOS QUE AINDA SABEM SONHAR
O fundamental não é lutar pelo direito de fumar maconha em paz na sala da sua casa. O fundamental não é o direito de andar vestida como uma vadia sem ser agredida por machos boçais que acham que têm esse direito porque você está "disponível". O fundamental não é garantir a opção de um aborto assistido para as mulheres que foram vítimas de estupro ou que correm risco de vida. O fundamental não é impedir que a internação compulsória de usuários de drogas se transforme em ferramenta de uma política de higienismo social e eliminação estética do que enfeia a cidade. O fundamental não é lutar contra a venda da pena de morte e da redução da maioridade penal como soluções finais para a violência. O fundamental não é esculachar os torturadores impunes da ditadura. O fundamental não é garantir aos indígenas remanescentes o direito à demarcação das suas reservas de terras. O fundamental não é o aumento de 20 centavos num transporte público que fica a cada dia mais lotado e precário.
O fundamental é que estamos vivendo uma brutal ofensiva do pensamento conservador, que coloca em risco muitas décadas de conquistas civilizatórias da sociedade brasileira.
O fundamental é que sob o manto protetor do "crescimento com redução das desigualdades" fermenta um modelo social que reproduz – agora em escala socialmente ampliada – o que há de pior na sociedade de consumo, individualista ao extremo, competitiva, ostentatória e sem nenhum espaço para a solidariedade.
O fundamental é que a modesta redução da nossa brutal desigualdade social ainda não veio acompanhada por uma esperada redução da violência e da criminalidade, muito pelo contrário. E não há projeto nacional de combate à violência que fuja do discurso meramente repressivo ou da elegia à truculência policial.
O fundamental é que a democratização do acesso ao ensino básico e à universidade por vezes deixam de ser um instrumento de iluminação e arejamento dos indivíduos e da própria sociedade, e são reduzidos a uma promessa de escada para a ascensão social via títulos e diplomas, ao som de sertanejo universitário.
O fundamental é que os políticos e grandes partidos antigamente ditos "libertários" e "de esquerda" hoje abriram mão de disputar ideologicamente os corações e mentes dos jovens e dos novos "incluídos sociais" e se contentam em garantir a fidelidade dos seus votos nas urnas, a cada dois anos.
O fundamental é que os políticos e grandes partidos antigamente ditos "sociais-democratas" já não tem nada a oferecer à juventude além de um neo-udenismo moralista que flerta desavergonhadamente com o autoritarismo e o fascismo mais desbragados.
O fundamental é que a promessa da militância verde e ecológica vai aos poucos rendendo-se aos balcões de negócio da velha política partidária ou ao marketing politicamente correto das grandes corporações.
O fundamental é que os sindicatos, movimentos populares e organizações estudantis estão entregues a um processo de burocratização, aparelhamento e defesa de interesses paroquiais que os torna refratários a uma participação dinâmica, entusiasmada e libertária.
O fundamental é que temos em São Paulo um governo estadual que é francamente conservador e repressivo, ao lado de um governo federal que é supostamente "progressista de coalizão". Mas entre a causa da liberação da maconha e defesa da internação compulsória, ambos escolhem a internação. Entre as prostitutas e a hipocrisia, ambos ficam com a hipocrisia. Entre os índios e os agronegócio, ambos aliam-se aos ruralistas. Entre a velha imprensa embolorada e a efervescência libertária da Internet, ambos namoram com a velha mídia. Entre o estado laico e os votos da bancada evangélica, ambos contemporizam com o Malafaia. Entre Jean Willys e Feliciano, ambos ficam em cima do muro, calculando quem pode lhes render mais votos.
O fundamental é que o temor covarde em expor à luz os crimes e julgar os aqueles agentes de estado que torturaram e mataram durante da ditadura acabou conferindo legitimidade a auto-anistia imposta pelos militares, muitos dos quais hoje se orgulham publicamente dos seus crimes bárbaros – o que nos leva a crer que voltarão a cometê-los se lhes for dada nova oportunidade.
O fundamental é que vivemos numa sociedade que (para usar dois termos anacrônicos) vai ficando cada vez mais bunda-mole e careta. Assustadoramente careta na política, nos costumes e nas liberdades individuais se comparada com os sonhos libertários dos anos 1960, ou mesmo com as esperanças democráticas dos anos 1980. Vivemos uma grande ofensiva do coxismo: conservador nas ideias, conformado no dia-a-dia, revoltadinho no trânsito engarrafado e no teclado do Facebook.
O fundamental é que nenhum grupo político no poder ou fora dele tem hoje qualquer nível mínimo de interlocução com uma parte enorme da molecada – seja nas universidades ou nas periferias – que não se conforma com a falta de perspectivas minimamente interessantes dentro dessa sociedade cada vez mais bundona, careta e medíocre.
Os mesmos indignados que se esgoelam no mundo virtual clamando que a juventude e os estudantes "se levantem" contra o governo e a inação da sociedade, são os primeiros a pedir que a tropa de choque baixe a borracha nos "vagabundos" quando eles fecham a 23 de Maio e atrapalham o deslocamento dos seus SUVs rumo à happy-hour nos Jardins.
Acuados, os políticos "de esquerda" se horrorizam com as cenas de sacos de lixo pegando fogo no meio da rua e se apressam a condenar na TV os atos de "vandalismo", pois morrem de medo que essas fogueiras causem pavor em uma classe média cada vez mais conservadora e isso possa lhes custar preciosos votos na próxima eleição.
Enquanto isso a molecada, no seu saudável inconformismo, vai para as ruas defender – FUNDAMENTALMENTE – o seu direito de sonhar com um mundo diferente. Um mundo onde o ensino, os trens e os ônibus sejam de qualidade e gratuitos para quem deles precisa. Onde os cidadãos tenham autonomia de decidir sobre o que devem e o que não devem fumar ou beber. Onde os índios possam nos mostrar que existem outros modos de vida possíveis nesse planeta, fora da lógica do agribusiness e das safras recordes. Onde crenças e religião sejam assunto de foro íntimo, e não políticas de Estado. Onde cada um possa decidir livremente com quem prefere trepar, casar e compartilhar (ou não) a criação dos filhos. Onde o conceito de Democracia não se resuma à obrigação de digitar meia dúzia de números nas urnas eletrônicas a cada dois anos.
Sempre vai haver quem prefira como modelo de estudante exemplar aquele sujeito valoroso que trabalha na firma das 8 da manhã às 6 da tarde, pega sem reclamar o metrô lotado, encara mais quatro horas de aulas meia-boca numa sala cheia de alunos sonolentos em busca de um canudo de papel, volta para casa dos pais tarde da noite para jantar, dormir e sonhar com um cargo de gerente e um apartamento com varanda gourmet.
Não é meu caso. Não tenho nem sombra de dúvida de que prefiro esses inconformados que atrapalham o trânsito e jogam pedra na polícia. Ainda que eles nos pareçam filhinhos-de-papai, ingênuos em seus sonhos, utópicos em suas propostas, politicamente manobráveis em suas reivindicações, irresponsavelmente seduzidos pelos provocadores de sempre.
Desde a Antiguidade, esses jovens ingênuos e irresponsáveis são o sal da terra, a luz do sol que impede que a humanidade apodreça no bolor da mediocridade, na inércia do conformismo, na falta de sentido do consumismo ostentatório, nas milenares pilantragens travestidas de iluminação espiritual.
Esses moleques que tomam as ruas e dão a cara para bater incomodam porque quebram vidros, depredam ônibus e paralisam o trânsito. Mas incomodam muito mais porque nos obrigam a olhar para dentro das nossas próprias vidas e, nessa hora, descobrimos que desaprendemos a sonhar.

A falência dos políticos

JOSÉ ROBERTO DE TOLEDO - O Estado de S.Paulo
Balas de chumbo e borracha tomaram o lugar da política na resolução de conflitos entre o Estado e segmentos da sociedade no Brasil. Índios, manifestantes e jornalistas acabaram do lado errado dos canos das armas da polícia - enquanto autoridades se escudavam atrás de microfones na segurança de seus gabinetes.
A inapetência das lideranças políticas brasileiras não distingue partidos. Nem prefeito, nem governador, nem sequer um vereador deu a cara nas cenas de conflito para tentar mediar impasses. Passaram a responsabilidade para policiais. Deu no que deu.
Se os políticos profissionais se escalam para assistir jogo da seleção - e, quiçá, vaiar os colegas -, mas evitam as esquinas onde seus eleitores aspiram gás lacrimogêneo, cabe perguntar: eles servem a quem?
O apagão de lideranças no Brasil é mais contundente do que os cassetetes da PM paulista. Não é coincidência que o movimento que pretende parar as maiores cidades do país se declare "horizontal, autônomo, independente e apartidário". A ausência de um líder tradicional parece confundir políticos e policiais.
Um comandante da PM de Brasília reclamou da falta de interlocutor à altura de sua patente do outro lado - o lado dos manifestantes anti-Copa que ele dispersou a balas e bombas. Os políticos também parecem aturdidos com a falta de hierarquia dos manifestantes.
Não há "cabeças" com quem barganhar, a quem cooptar nem para cortar. Essa é, porém, a maior característica da pós-política. Organização em rede, voluntária, heterogênea e sem estrutura de comando. Só não confunda ausência de líderes com falta de liderança. É bagunça organizada. Começa no dia e hora marcados em locais previamente combinados.
No sumiço dos políticos, nota-se um cálculo marqueteiro: de qual lado ficar para mais faturar? O prefeito Fernando Haddad (PT) ainda está calculando. Já o governador Geraldo Alckmin (PSDB) achou que seria do lado da repressão. Tudo caminhava para ele se consagrar como quem pôs ordem na casa, até a crise tomar um atalho.
Na narrativa preponderante, a manifestação contra o aumento do ônibus/metrô começou como uma curiosidade, virou um estorvo, evoluiu para baderna e tinha tudo para acabar com a glória da repressão policial na quinta-feira passada. No palco escolhido, a esquina da Consolação com Maria Antonia, havia espaço suficiente para acomodar helicópteros de todas as emissoras de televisão.
Mas aí a sede de vingança da tropa falou mais alto - vingança pelo quase linchamento de um policial na manifestação anterior. O pelotão de choque começou a batalha atirando para onde estava virado. Bombardeou posto de gasolina, carro, idoso, apartamento.
Multidão dispersada, começou a caçada aleatória a transeuntes. Por azar, falta de mira ou intenção, os policias acertaram 15 jornalistas. A narrativa muda quando o narrador vira parte da história. De vítima, a polícia virou algoz. E Alckmin teve que ouvir lição de moral ao vivo num programa televisivo.
Não que o governador não possa sair dessa ainda mais favorito à reeleição. No interior paulista, quem não gasta quatro horas diárias para ir e voltar do trabalho em ônibus cada vez mais lotados talvez simpatize com sua posição a favor da ordem.
Já na capital, a pesquisa Datafolha, feita a quente, mostrou uma cidade dividida. "A molecada está certa", resumiu um passageiro. Ele explica os 55% de apoio às manifestações: se o serviço é ruim e só piora, aumento da passagem é tapa na cara do usuário. As depredações e os engarrafamentos engordam os 40% que são contra.
Unanimidade, só a do vinagre. Sua posse, mesmo podendo levar à prisão, virou item de primeira necessidade.
É o único alívio contra a lacrimejante atmosfera paulistana. Vinagre é o novo tomate.

domingo, 16 de junho de 2013

A PM começou a batalha na Maria Antonia, por Elio Gaspari


Quem acompanhou a manifestação contra o aumento das tarifas de ônibus ao longo dos dois quilômetros que vão do Theatro Municipal à esquina da rua da Consolação com a Maria Antônia pode assegurar: os distúrbios começaram às 19h10, pela ação da polícia, mais precisamente por um grupo de uns 20 homens da Tropa de Choque, com suas fardas cinzentas que, a olho nu, chegaram com esse propósito.
Pelo seguinte: Desde as 17h, quando começou a manifestação na escadaria do teatro, podia-se pensar que a cena ocorria em Londres. Só uma hora depois, quando a multidão engordou, os manifestantes fecharam o cruzamento da rua Xavier de Toledo.
Nesse cenário havia uns dez policiais. Nem eles hostilizaram a manifestação, nem foram por ela hostilizados.
Cerca das 18h30 a passeata foi em direção à praça da República. Havia uns poucos grupos de PMs guarnecendo agencias bancárias, mais nada. Em nenhum momento foram bloqueados.
Numa das transversais, uns 20 PMs postaram-se na Consolação, tentando fechá-la, mas deixando uma passagem lateral. Ficaram ali menos de dois minutos e retiraram-se. Esse grupo de policiais subiu a avenida até a Maria Antonia, caminhando no mesmo sentido da passeata. Parecia Londres.
Voltaram a fechá-la e, de novo, deixaram uma passagem. Tudo o que alguns manifestantes faziam era gritar: "Você é soldado, você também é explorado" ou "Sem violência." Alguns deles colavam cartazes brancos com o rosto do prefeito de São Paulo, "Maldad".
Num átimo, às 19h10, surgiu do nada um grupo de uns 20 PMs da Tropa de Choque, cinzentos, com viseiras e escudos. Formaram um bloco no meio da pista. Ninguém parlamentou. Nenhum megafone mandando a passeata parar. Nenhuma advertência. Nenhum bloqueio, sem disparos, coisa possível em diversos trechos do percurso.
Em menos de um minuto esse núcleo começou a atirar rojões e bombas de gás lacrimogêneo. Chegara-se a Istambul.
Atiravam não só na direção da avenida, como também na transversal. Eram granadas Condor. Uma delas ficou na rua que em 1968 presenciou a pancadaria conhecida como "Batalha da Maria Antonia". Alguns sobreviventes da primeira batalha, sexagenários, não cheiram mais gás (suave em relação ao da época), mas o bouquet de vinhos.
Seguramente a PM queria impedir que a passeata chegasse à avenida Paulista. Conseguiu, mas conseguiu que a manifestação se dividisse em duas. Uma, grande, recuou. Outra, menor, conseguiu subir a Consolação.
Eram pessoas perfeitamente identificáveis. A maioria mascarada. Buscaram pedras e também conseguiram o que queriam: uma batalha campal.
Foi um cena típica de um conflito de canibais com os antropófagos.
Elio Gaspari
Elio Gaspari, nascido na Itália, veio ainda criança para o Brasil, onde fez sua carreira jornalística. Recebeu o prêmio de melhor ensaio da ABL em 2003 por "As Ilusões Armadas". Escreve às quartas-feiras e domingos na versão impressa de "Poder".