terça-feira, 1 de janeiro de 2013

Qual foi o seu melhor presente?


Roberto DaMatta - O Estado de S.Paulo
Passado esse Natal de fim de mundo, um jornalista perguntou: professor, em que festa natalina você recebeu o melhor presente?
Respondi:
Num Natal antigo eu ganhei uma bicicleta importada de uma impecável Suécia, conforme papai me falou com aquele tom de voz que situava tudo o que era estrangeiro como superior. Esse foi um presente importante - em Niterói íamos a todos os lugares de bicicleta -, mas, diz um lado meu, não foi o meu melhor presente.
De uma outra feita, moço e apaixonado, ganhei em plena Rua Dr. Romualdo, em Juiz de Fora, o beijo de uma namorada e com ele a promessa esquecida de ser amado para sempre. O beijo natalino foi um belo presente, mas não foi - diz novamente a voz dentro de mim - o meu melhor presente.
Num Natal na casa de meus avós, Raul e Emerentina, na Rua Nilo Peçanha, 31, recebemos todos um presente inesquecível: revólveres de espoleta que reproduziam, a nosso ver perfeitamente bem, a guerra entre o Bem e o Mal - entre os mocinhos e os bandidos que víamos no cinema. Lembro da felicidade de manusear o meu revólver, de nele colocar as espoletas e, ato contínuo, atirar "matando" meus irmãos. Não esqueço o fato de ter sido ferido e de ter morrido muitas vezes por outros tiros naquele calorento Natal numa Niterói sem água, mas com uma praia das Flechas de mar translúcido. Apesar dos tiros, das mortes e das ressurreições, esse também não foi o meu melhor presente.
Num outro Natal, eu ganhei as obras completas de Guy de Maupassant em muitos volumes, mais do que poderia ler. Ao receber os livros de um contista que eu amava - ao lado de gente como O. Henry, Hemingway, Graham Green e Monteiro Lobato do Urupês -, exultei. Jamais me esqueci da luminosidade de Maupassant. Foi um grande presente, mas não foi o meu melhor presente.
Doutra feita, recebi os almanaques do Globo Juvenil e do Gibi. Maravilhado, transformei a varanda onde estava sentado meu avô Raul numa nave especial na qual viajavam Flash Gordon, o Dr. Zarkov e Dale Arden, por quem eu fiquei imediatamente apaixonado. Até hoje eu me lembro da voz calma do Celso Scofield, meu melhor e querido amigo, lendo comigo os quadrinhos. Ficamos, ambos, intrigados com uma história de Brick Bradford na qual ele ia parar num planeta com três gigantes imortais. O que era ser imortal? Celso havia perdido o pai; eu vivia numa casa cheia dos fantasmas dos meus tios mortos. Titia Amália, que era uma grande contadora de histórias, via almas do outro mundo num corredor sem fim, no qual não ousávamos transitar sozinhos de noite. Nem de luz acessa. Foi um excelente presente, mas não foi meu melhor presente.
O meu primeiro Natal com data fixa e certa foi o de 1968 - em Cambridge Massachusetts, aonde fui levado como estudante de uma Harvard perfeita. Fomos para a casa dos Maybury-Lewis. David era o meu orientador e Pia, sua esposa dinamarquesa, preparou a festa como mandava o figurino daquilo que eu só havia visto em tecnicolor e na grande tela do Cinema Icaraí. Havia uma enorme mesa com folhagens se misturando a comidas doces e salgadas. Havia vinho e neve, itens desconhecidos. E havia o amor de Celeste e dos nossos filhinhos. Cantamos músicas de Natal. Eu pude dar presente para todos os meus filhos com o deleite do pai feliz por ter plantado as suas sementes no mundo, e foi assim que eu os vi rasgando o papel dos embrulhos para descobrir o que haviam recebido. Não ganhei nada, mas hoje sei que foi essa a festa.
A partir de um certo Natal, quem tem filhos passa a ser mais um doador do que um receptor de presentes. Comecei a sustentar a crença dos meus filhos em Papai Noel, embora piscando o olho. Afinal, o Natal é apenas na aparência uma festa para crianças. No fundo, ele é uma celebração da paternidade que tenta retribuir o peso indiscutível de sua autoridade distribuindo dádivas. Era maravilhoso ver a crença nos olhos das crianças com aquele brilho que os meus olhos haviam perdido.
Seria mesmo possível responder à questão do jornalista? Afinal de contas, qual foi o melhor presente que recebi em toda a minha vida? Vocês sabem como eu sou ingrato e difícil de satisfazer. Ademais, sejamos realistas, quem é que, na tal "melhor idade" (como é o meu caso), pode se lembrar de tudo o que recebeu ao longo de 76 Natais?
Em alguns, eu tenho agradecido a presença de pessoas queridas. Em todos, eu sofro pela ausência de outros entes amados e perdidos. Meu maior presente tem sido, sem nenhuma dúvida, os livros que me fazem ler e escrever e, pelo milagre da literatura, tentar desenhar dádivas e ter o privilégio de distribuí-las nesta coluna. Esperando, é claro, algum retorno.

Um espectro à procura da bola -Wisnik


JOSÉ MIGUEL WISNIK
Já às vésperas, pode-se dizer, da Copa das Confederações, a realizar-se em junho de 2013, e tendo no horizonte a Copa do Mundo de 2014, o futebol brasileiro vê-se rebaixado, hoje, à condição de espectro, isto é, de um fantasma à procura de si mesmo. Tendo regido o cenário internacional durante décadas, desde que esse esporte ganhou a cena como fenômeno televisivo, coroando o império de Pelé, o futebol brasileiro está, nos últimos anos, posto para escanteio no complexo futebolístico mundial.
Diferentes ou não, Felipão e Parreira perpetuam uma linhagem de técnicos arredios ao experimento - Gal Oppido
Gal Oppido
Diferentes ou não, Felipão e Parreira perpetuam uma linhagem de técnicos arredios ao experimento
No ranking da Fifa - seja lá o que isso signifique como critério - o Brasil não perdeu só a primeira posição que lhe parecia inerente, mas despencou da faixa dos top ten, ocupando um décimo oitavo lugar atrás de forças medianas como Grécia, Croácia, Suíça, Equador e Costa do Marfim. Os craques brasileiros, que dominaram as eleições do Número Um do mundo, sumiram das listas, depois de um período em que Romário, Ronaldo, Rivaldo, Kaká e Ronaldo Gaúcho acumularam, só eles, quase tantas premiações quanto as de todas as outras seleções juntas. Nenhum jogador brasileiro é, hoje, protagonista em alguma grande equipe europeia. A glorificação frenética de Neymar, justificada pela excepcionalidade do jogador, disfarça uma ansiedade compensatória de fundo: ela esconde a falta de um patamar de jogo que o acompanhe.
A seleção brasileira não ganhou nenhuma das competições importantes que disputou recentemente, nem mesmo algum amistoso contra as equipes de peso. A composição do time e a proposta de jogo, que permaneceram como incógnitas a maior parte do período pós-Copa de 2010, vem de sofrer um inesperado desvio de rota, com a recente demissão do técnico Mano Menezes, justamente no momento em que as coisas pareciam apontar para uma melhor definição. Demissão identificada por boa parte da crônica esportiva como ligada a uma disputa de grupos dentro da CBF (Marco Polo Del Nero contra Andrés Sanchez).
Além de representar a interrupção de um momento potencialmente ascendente depois de muito giro em falso, a escolha de Luiz Felipe Scolari e de Carlos Alberto Parreira como técnico e coordenador técnico, respectivamente, é um sintoma do todo, que pede análise num conjunto maior.
De certo ângulo, a crise poderia ser explicada como um momento de transição entre gerações, agravada pelo precoce apagão técnico e psicológico de Ronaldo Gaúcho, pelo eclipse físico de Kaká, pela irregularidade, tornada habitual, de Robinho, pela decadência natural de Ronaldo Fenômeno, sem falar nas complicações existenciais, esportivas e policiais de Adriano. Na outra ponta geracional, os repetidos chabus de Pato e Ganso minaram a expectativa de que um conjunto expressivo de talentos excepcionais viesse imediatamente a tomar para si o bastão, e a formar com Neymar um trio multiplicador das opções de jogo, como aliás se desenhou na primeira partida sob o comando de Mano Menezes, uma auspiciosa vitória de 2 a 0 sobre a equipe dos Estados Unidos.
Mas a crise mais funda não se explica só por esse conjunto de acasos infelizes recaindo sobre individualidades. O futebol mundial passa hoje pela sua segunda revolução depois do fastígio brasileiro que culminou na Copa de 1970. A primeira revolução, como se sabe, foi a da Laranja Mecânica holandesa em 1974, que instaurou um novo limiar de exigência tática e de ocupação de espaços ao qual todas as tradições tiveram que se adaptar de um modo ou de outro, mesmo depois que a própria Laranja Mecânica virou passado. A segunda revolução é uma extensão e um aprofundamento da primeira, e é dada pelo modo como o futebol espanhol, e especificamente o Barcelona, assimilou e amadureceu a lição holandesa sem deixar de aprender com a sul-americana, instaurando uma inédita mobilidade caleidoscópica em campo por meio da qual se oferece, a todo jogador que tenha a posse da bola, duas, três ou quatro opções instantâneas de passe. A conhecida contingência da posse de bola, perdida constantemente para o adversário nesse esporte que se notabiliza por ser jogado com os pés num terreno amplo e irregular, parece em certos momentos quase suplantada por uma fórmula ideal que tivesse decodificado a quadratura do circo.
Só o baixo nível da cultura futebolística no Brasil permite que se repita candidamente que o futebol que o Barcelona joga hoje segue o mesmo modelo do futebol brasileiro em seu período áureo. Trata-se de uma confusão, no nível das aparências, entre dois momentos excepcionalmente belos e envolventes, mas estruturalmente distintos, na história do futebol. Não se trata de dizer que um é superior ao outro. Mas que a compressão e a expansão das faixas do campo, o ritmo e os vieses das trocas de passe e o tecido do jogo como um todo passaram por uma espécie de mutação. A relação entre o fator individual e o coletivo, no modo como um depende do outro, ganhou uma natureza distinta.
Isso interessa ao futebol brasileiro, enquanto tradição em que supostamente sobram talentos, mas que perdeu terreno, tanto no sentido literal do volume de jogo quanto no sentido figurado de sua atualização. Tradição malbaratada na pulverização do mercado mundial, oportunista e descontínua como gestão (embora fundada numa ferrenha continuidade política que muda não mudando) e sem o menor descortino sobre o que significa a cultura futebolística dentro e fora do campo. Quem não reconhece nesse tipo de combinação cega da economia com a política e a cultura algumas das piores marcas do País?
A seleção brasileira de Mano Menezes vinha apresentando uma tênue linha evolutiva na direção de um futebol de pressão e de passes, com volantes mais técnicos, ágeis e inteligentes, trocando a figura do centroavante fixo por uma relação mais fluida entre opções de ataque, como se delineasse enfim a via de um confronto com o futebol atual dentro da sua nova medida. José Maria Marin, presidente da CBF, considerou que, mais importante do que apoiar essa tendência, e testá-la na Copa das Confederações, era dar uma nova cartada, já que a magnitude dos eventos que se avizinham exigiria segundo ele um treinador e um coordenador técnico de personalidade e experiência consolidadas.
Essas alegações públicas contrastam com as já citadas razões internas, menos declaráveis e menores. A expectativa pelo anúncio do novo técnico apontou imediatamente para as duas opções fortes e polarmente opostas, Felipão ou Guardiola. Nesse lugar os caminhos se bifurcam: a escolha do técnico campeão da Copa de 2002 é regressiva e baseada num desejo de repetição, enquanto o ex-jogador e ex-técnico do Barcelona, que se retirou temporariamente dos campos para se dar um tempo de reflexão, tendo sinalizado seu desejo de trabalhar com o Brasil, significaria uma ousada ligação direta da seleção brasileira com a ponta mais dinâmica da inovação.
Há algo de supersticioso e defensivo nessa escolha por aqueles que já venceram, em 1994 e 2002. Parreira e Scolari venceram com méritos em contextos específicos e já passados, viveram também seus fracassos e não deram contribuições notáveis para o futebol recente. Elogia-se o aspecto complementar e equilibrador de suas personalidades yin e yang: o coordenador técnico é frio e diplomático, o técnico é carismático e impulsivo no melhor estilo deixa-que-eu-chuto (um bico desastrado na sua primeira entrevista coletiva quebrou vidraças do Banco do Brasil). Diferentes ou não, eles perpetuam na seleção brasileira uma linhagem de técnicos arredios ao experimento, sem grande imaginação tática, otimizadores do rendimento em plano teórico ou dinamizadores de grupo que não se notabilizaram por responder às surpresas e às peças que o futebol nos prega inventando surpresas a favor do futebol. Nesse sentido, prolongam Dunga e seu apelo colegial ao "comprometimento". Pode dar resultado ou não, e a questão não é essa, mas até quando, e quantas vezes, a descaracterização fantasmática do futebol brasileiro será tratada na base do voluntarismo turrão e da mentalidade convencional.
Sobre a hipótese Guardiola, Marin argumentou que ele só dirigiu clubes, e nunca dirigiu uma seleção. Felipão também não tinha dirigido uma seleção, até dirigir. A lógica regressiva da CBF é a de que só pode acontecer aquilo que já aconteceu, num raciocínio mecânico que é um perfeito espelho do seu sistema político imobilista.
Entre os tabus a quebrar, além disso, estaria o de que Guardiola não é brasileiro. Um técnico argentino, no entanto, está levando a seleção brasileira de basquete a uma Olimpíada depois de 16 anos, um técnico norte-americano classificou o Brasil pela primeira vez para o mundial de beisebol e um ucraniano conduziu a ginástica olímpica brasileira a patamares nunca alcançados, como bem lembrou José Roberto Torero. A empresa que controla a CBF até 2022 é saudita. Acrescento: os novos estádios estão sendo construídos ou reformados, de modo geral, por empresas estrangeiras seguindo padrões e consultorias arquitetônicas não autorais. A mais representativa arquitetura brasileira não foi convocada - estamos longe da utopia de Brasília.
E a construção de um time, que é mais complexa e delicada do que a de 20 estádios de futebol?
JOSÉ MIGUEL WISNIK É COMPOSITOR, ENSAÍSTA E PROFESSOR DE LITERATURA BRASILEIRA NA USP, É AUTOR, ENTRE OUTRAS OBRAS, DE VENENO REMÉDIO - O FUTEBOL E O BRASIL (2008), O SOM E O SENTIDO - UMA OUTRA HISTÓRIA DAS MÚSICAS (1989) E O CORO DOS CONTRÁRIOS - A MÚSICA

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