domingo, 2 de dezembro de 2012

O dilema da gerentona Dilma - ELIO GASPARI


O dilema da gerentona Dilma - ELIO GASPARI

O GLOBO - 02/12


Seria bom se fosse possível dizer que o governo da doutora Dilma tem tolerância zero com malfeitos. Há uma distância oceânica entre sua administração e a de Nosso Guia, mas tolerância zero é conversa fiada. Na segunda metade do mandato, seu desafio será mostrar a diferença entre suas atitudes reativas e uma verdadeira política moralizadora do governo e da nação petista. Ou o PT acaba com seus esquemas ou esses esquemas acabam com o PT, produzindo uma sucessão presidencial demarcada pelo debate da corrupção. Essa poderá ser a derradeira e benfazeja contribuição dos companheiros à política nacional. Quem pensa que o moralismo produzirá um novo Fernando Collor, engana-se. Produzirá um Joaquim Barbosa, sem conexões com a plutocracia ou acordos com usineiros.

No caso das Bolsas Consultorias do ministro Fernando Pimentel (R$ 2 milhões ao longo de dois anos), o Planalto blindou-o e alterou a composição da Comissão de Ética Pública da Presidência, que viria a arquivar o caso com argumentos constrangedores.

A quadrilha dos irmãos Vieira, que tinha um pé na sala da chefe do escritório da Presidência em São Paulo, mostra que o Planalto protegeu os malfeitores atropelando os mecanismos de defesa do Estado.

O baiano Paulo Vieira, ex-diretor da Agência Nacional de Águas, filiou-se ao PT de São Paulo em 2003, no primeiro ano de governo de Lula. No ano seguinte, tentou ser vereador em Gavião Peixoto, mas não se elegeu. Em 2005, foi nomeado assessor especial de controle interno do Ministério da Educação. Em 2009, seu nome foi enviado ao Senado para ocupar uma vaga na diretoria da Agência Nacional de Águas. Foi rejeitado. A boa norma determinava que a indicação fosse esquecida. O Planalto empurrou-o goela abaixo.

A essa época, Vieira já traficava interesses milionários do ex-senador Gilberto Miranda com o auditor Cyonil Borges, do TCU. Entrara também na rede de Rose Noronha. O nome da companheira aparecera numa lista de servidores que usavam cartões corporativos. Sua despesa, banal, fora de R$ 2.100, mas os comissários blindaram sua ida ao Congresso. Preferiram xeretar as despesas de Ruth Cardoso, para depois pedirem desculpas.

Paulo Vieira tratava dos interesses das ilhas do ex-senador Gilberto Miranda, operando nas agências reguladoras e monitorando a boa vontade de burocratas, oferecendo-lhes “mel na chupeta”. Na operação de Vieira estava José Weber Holanda, o segundo homem da Advocacia Geral da União. Ele estivera no INSS, deixando seis procedimentos administrativos no seu rastro. Em 2008, a Controladoria Geral da União estranhara a acumulação patrimonial do doutor e pedira a quebra do seu sigilo bancário. A Justiça Federal de Brasília negou o pedido, e o processo está parado.

Em 2011, no governo da doutora Dilma, Weber enganou o baronato da AGU. Estranha situação, pois, nessa época, um advogado da instituição cuidava do prosseguimento de um processo contra ele, travado por um mandado de segurança.

Em todos os episódios, os mecanismos de defesa do Estado foram esterilizados pela ação dos comissários. Até onde essa proteção deu-lhes uma sensação de onipotência e invulnerabilidade, só eles poderão dizer. Tomara que digam.

Não é esse o caso do ex-senador Gilberto Miranda. Ele ganhou a cadeira nos anos 90, com a mágica da suplência. Sua biografia tem abundantes referências à generosidade com que ajuda os amigos e ofende a Viúva. Seus learjets eram uma espécie de táxis aéreos para notáveis de Brasília. Seu palacete francês no Jardim Europa valia US$ 4 milhões. Colecionou três Rolls Royces. Tinha interesses na Zona Franca de Manaus e nas obras físicas para a rede de radares na Amazônia. Isso para não falar nas grandes aduanas do país. Referia-se ao presidente José Sarney como “Sassá” e teve um irmão no gabinete de Collor. Conhece as costuras dos bolsos da política brasileira.

Lendo-se os grampos da Operação Porto Seguro vê-se quão perto do comissariado Gilberto Miranda operava. Houve tempo em que ele dizia que “sou muito rico, não preciso de dinheiro”. Pelo visto, precisou e descobriu companheiros que também precisavam.

Lula Fashion Show

A quimioterapia parece ter levado a barba de Lula, pelo menos por um tempo. Já a cor de seus cabelos e do bigode estão com jeito de trato de salão. Nosso Guia ficou parecido com sargento de filme mexicano.

Passeata de classe

A passeata dos royalties realizada no Rio de Janeiro inovou a técnica de manifestações populares. Nela, havia um cercadinho VIP para os manifestantes ilustres. Era demarcado por um cordão e protegido por seguranças. Os convidados VIPs diferenciavam-se da patuleia, pois recebiam pulserinhas verdes. Nesse ritmo, a próxima passeata terá três classes: primeira, executiva e de turistas.

Adauto de volta

Foram muitas as fantasias vendidas pelos advogados de defesa aos seus clientes do mensalão. A maior delas foi o uso da teoria do caixa dois como blindagem. O truque transformou-se em mortalha. Há uma nova: na fase dos recursos, novos ministros abrandariam as penas de alguns réus. Quem acredita nisso deve pensar melhor. Como ficariam os doutores, se baixasse no plenário o espírito de Adauto Lúcio Cardoso, e três ministros jogassem a toga, abandonando o tribunal? Em 1971, quando o STF legitimou a censura à imprensa, Adauto despiu a capa e foi-se embora. Puro palpite: o que fariam Joaquim Barbosa, Celso de Mello e Gilmar Mendes?

Ódio a Fux

O comissariado petista conformou-se com a posição de Joaquim Barbosa no processo do mensalão. Absorveu os votos de Carlos Ayres Britto e não quer confusão com Cármen Lúcia e Rosa Weber. Em relação ao ministro Luis Fux, o sentimento é outro: ódio, em busca de vingança.

A conta

Em 2003, quando Nosso Guia resolveu ocupar um gabinete da sede do Banco do Brasil, na Avenida Paulista, companheiros da burocracia da instituição defenderam a legalidade do presente. Um banco que tem ações na Bolsa não deveria ceder instalações ao governo. Felipão enganou-se quando disse que quem trabalha no Banco do Brasil não sofre pressões. Sem pressão, ninguém entrega um gabinete na esquina da Paulista com a Rua Augusta. Nem nomeia o ex-marido da chefe do escritório da Presidência para um lugar de conselheiro da BrasilPrev (com diploma falso).

Boca rica

A entrada dos planos de saúde americanos no Brasil cria uma questão interessante. Nos Estados Unidos, o atendimento da rede pública para casos de emergência, idosos e desvalidos é regulado por uma legislação complexa, altamente burocratizada. Lá, não existe a possibilidade de uma empresa vender um plano por US$ 50 (R$ 100), oferecendo uma cobertura que sua rede não tem condições de prover, pressupondo que a vítima será atendida na rede pública. No Brasil, abundam os planos que se consideram ressegurados com a ida de seus clientes para o SUS, deixando a conta para a Viúva, pois as operadoras, beneficiadas pela sonolência da Agência Nacional de Saúde Suplementar, escapam do ressarcimento. Isso cria um paraíso para os empresários. Se o SUS melhora, o negócio deles prospera a custo zero. Também explica um incompreensível interesse de magnatas de planos com nomeações para o STF 

Dilma sisuda - SACHA CALMON


ESTADO DE MINAS - 02/12

Lula pediu, o PT insistiu, mas não seria republicano deixar de ir à posse do presidente do STF, ainda mais na do mais popular deles

Lula pediu, o PT insistiu e Dilma resistiu. Não seria republicano deixar de ir à posse do presidente do STF, ainda mais em se tratando do mais popular presidente da Corte Suprema desde a Constituição de 1988. Além do mais, não foi o PT que se sentou no banco os réus, foram apenas alguns dele. O partido deveria expulsá-los em vez de culpar quem tem o dever constitucional de julgar. O novel presidente fez mais pela causa negra, pelo desfazimento do preconceito racial, pela prova acabada de que é a educação que promove a conquista da igualdade, pela punição da audácia criminosa dos poderosos, pela efetividade da Constituição e pelo desmanche da impunidade do que qualquer outro juiz em nosso país.
Ele, porque foi relator imparcial e forte, e seus pares, em conjunto, pelo resultado. No discurso não teve papas na língua. Disse, com assertividade, que o acesso ao poder público e ao Judiciário é desigual no Brasil, referindo-se, obviamente, ao fato de que metade do país é mestiço, negroide e cafuzo, e a maioria é pobre, persistindo o desajuste social. Desancou o preconceito, enalteceu a igualdade, criticou a Justiça lenta. Nesse ponto, por cortesia, disse menos do que devia. Estavam presentes o ministro da Justiça, que só gastou 13% da verba orçada para o sistema penitenciário, segundo ele, uma sucursal do inferno (e é mesmo), além da presidente da República, ao cabo corresponsáveis juntamente com os governadores pelo sistema prisional.
Ficaria bem dizer alto e bom som que 80% dos processos que tramitam nos tribunais superiores (STF e STJ) têm como autora, ré, assistente ou opoente uma pessoa jurídica de direito público (União, incluída a Previdência, que nega benefícios e cobra de todo mundo suas contribuições, estados, municípios, empresas públicas e autarquias). Elas não pagam suas dívidas, haja vista os precatórios, mas são ávidas pelo dinheiro dos particulares. Litigantes privilegiados, não pagam custas e, quando perdem, parcos são os honorários. São incentivos à litigância. O Executivo usa o Judiciário para satisfazer seus apetites, cobrar o indevido e não pagar o devido ou protelar o que deve. Isso é uma falta de ética descomunal! O PT quis usar o STF para livrar os corruptos, corruptores e corrompidos do mensalão, mas sem êxito, pelo contrário. A prestação jurisdicional imparcial é direito do cidadão e da empresa, e a segurança jurídica a base das outras, a econômica, a política e a social. Isso o presidente que se empossava disse, o resto ficou nas entrelinhas ou entrelíngua.
Haverá tempo para pôr em campo suas sugestões, e sei que são efetivas, sem mesuras ou rapapés, palavras dele, um homem do povo. Poderia ter dito, ainda, que o Estado quando intervencionista deveria ser civilmente responsável pelos seus atos. Quando um governo, à moda dos reis de outrora, cobra tributos inconstitucionais, impõe multas estratosféricas, faz o etanol fracassar pela manutenção do preço dos derivados do petróleo, exige mil documentos para que façamos qualquer coisa, antecipa contratos de concessão de energia, ainda que com o fim de baixar a conta de luz, mas de modo autoritário, reduzindo em 70% o preço das ações das empresas do setor, fazendo malograr investimentos, esse governo deveria ser obrigado a indenizar os prejuízos ou pelo menos temer a indenização. A lei culpabiliza com a maior facilidade do mundo os diretores, gerentes e administradores das empresas privadas. Por que não fazê-lo relativamente aos administradores públicos, viciados na impunidade?
Ora, não seria educado o ministro Joaquim dizer tais coisas em dia de festa. Aliás, nunca se viu posse igual no STF. Eu é que estou a pensar, a divagar! Pois bem, por desejar o êxito à gentil senhora que nos governa no ramo executivo do governo é que faço agora uma pequena observação. Não deixou boa impressão a carranca da presidente durante as cerimônias cívicas da posse, perante tantas autoridades e telespectadores no país inteiro. Cara presidente, já que V. Exa. foi, tinha que se portar com naturalidade e simpatia. Em um bom pedaço de tempo vimos o seu semblante fechado (a denotar desconforto). Se noblesse oblige, como dizem os franceses, o sorriso passa a ser protocolar. Estaria a presidente com receios de abespinhar seu rancoroso preceptor político? Não creio. Ademais, não foi ele que se desmanchou em sorrisos e abraços - por pragmatismo - nos jardins da casa de Paulo Maluf, ladravaz notório? V. Exa. não trocou muitas palavras com o presidente do Judiciário. Podia fazê-lo, trata-se de um homem de bem. Da próxima vez, nobre senhora, seja mais afável. O Joaquim merece. A nação aplaudiria. Amizades desse tipo valem a pena, diria Maquiavel.

Joaquim Barbosa toma posse e é primeiro presidente negro do Supremo Tribunal Federal

Fernanda Calgaro
Do UOL, em Brasília
  • Roberto Jayme/UOL
    O ministro-relator do processo do mensalão, Joaquim Barbosa, em foto do último dia 12; ele tomou posse hoje como presidente do STF
    O ministro-relator do processo do mensalão, Joaquim Barbosa, em foto do último dia 12; ele tomou posse hoje como presidente do STF
Primeiro negro a ocupar o cargo de ministro do STF (Supremo Tribunal Federal), Joaquim Barbosa tomou posse nesta quinta-feira (22), por volta das 15h30, como presidente da Suprema Corte, cargo mais alto do Judiciário brasileiro. Ele assume o lugar deixado pelo ministro Ayres Britto, que se aposentou obrigatoriamente por ter completado 70 anos no último dia 18.
Ao ler seu discurso de posse, o ministro Joaquim Barbosa elogiou a evolução do Brasil e fez uma reflexão sobre o papel dos juízes na sociedade brasileira. "O bom magistrado é aquele que tem consciência de seus limites. Não basta ter boa formação técnica, humanística e forte apego a valores ético. O juiz deve velar para que suas convições íntimas não contaminem sua atividade", afirmou.
A cerimônia de posse ocorre no plenário do STF, onde Barbosa senta-se ao lado da presidente da República, Dilma Rousseff. Também tomou posse o ministro Ricardo Lewandowski, como vice-presidente do tribunal.
Barbosa foi empossado pelo decano da Corte, ministro Celso de Mello, e assinou o termo de posse. Em seguida, Barbosa concedeu a palavra ao ministro Luiz Fux para o discurso de saudação em nome da Suprema Corte.
"[Barbosa é] Paradigma de coragem e honradez", afirmou Fux. "Traz em si a retidão da alma." "O drama do juiz é a solidão. Raramente encontra espíritos do mesmo nível", disse ainda Fux sobre o novo presidente do STF.
Em seguida, discursou o procurador-geral da República, Roberto Gurgel, que enfatizou a união dos diversos órgãos do Judiciário brasileiro. "Precisamos todos trabalhar juntos para dar continuidade ao aprimoramento de nosso sistema de Justiça", disse Gurgel.
O presidente da OAB, Ophir Cavalcante, elogiou a atuação de Barbosa em casos de corrupção. "Quem infringe a lei deve responder por seus atos", disse Cavalcante, lembrando que Barbosa ajudou a acabar com o estigma da impunidade.

PERFIL DE JOAQUIM BARBOSA

Mineiro de Paracatu, Joaquim Benedito Barbosa Gomes, 58, chegou ao Supremo em 2003, nomeado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Estudou direito na UnB (Universidade de Brasília) e possui mestrado e doutorado pela Universidade de Paris. Na sua tese de doutorado, publicada na França em 1994, escreveu sobre a Suprema Corte no sistema político brasileiro.

É professor licenciado da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro). É fluente em francês, alemão, inglês e italiano.

Antes do STF, integrou o Ministério Público Federal por 19 anos (1984-2003). Ocupou ainda diversos cargos no serviço público: foi chefe da Consultoria Jurídica do Ministério da Saúde (1985-88), advogado do Serpro (Serviço Federal de Processamento de Dados) (1979-84), oficial de chancelaria do Ministério das Relações Exteriores (1976-1979), tendo servido na Embaixada do Brasil em Helsinki, Finlândia.

Repercussão

Antes do início da cerimônia, o ator Milton Gonçalves, um dos convidados, disse que “ele [Barbosa] tem que ser lembrando pela capacidade, pelo raciocínio, por aquilo que ele empregou na juventude, na adolescência para se tornar um homem dessa importância. Óbvio que, como negro, sou copartícipe, sou parceiro dele, mas ele está lá por mérito, por mérito, só isso”.
Para a ministra da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), Luiza Bairros, o fato de um negro assumir o posto de comando da mais alta Corte do país não deve ser considerado o mais importante, mas é símbolo de um novo Brasil. “Sem dúvida o simbolismo desse momento, para um país que se reconheceu como racista há tão pouco tempo, não pode ser negado”.
"É um momento histórico para o Brasil. Acho que o Brasil inteiro, de alguma forma, está presente aqui, se não fisicamente, de coração, em alma, e em solidariedade ao ministro Joaquim Barbosa, que é hoje o símbolo maior da altivez e independência do Poder Judiciário", afirmou o senador Aécio Neves(PSDB-MG).
Os familiares de Barbosa presentes à cerimôniadisseram estar "envaidecidos e orgulhosos" do parente agora famoso.
À noite, as três entidades nacionais de juízes --AMB (Associação dos Magistrados Brasileiros), Ajufe (Associação dos Juízes Federais do Brasil) e Anamatra (Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho)-- vão oferecer um jantar em homenagem a Barbosa em um clube em Brasília.

Popularidade

A posse coincide com o momento em que o ministro está em evidência na mídia por conta do julgamento do mensalão, do qual é relator. O julgamento, que resultou na condenação de figurões petistas, elevou Barbosa à categoria de celebridade nacional a ponto de haver uma campanha nas redes sociais para que saia candidato à Presidência da República em 2014. A popularidade é tamanha que o rosto do ministro irá estampar máscaras no Carnaval de rua do Rio de Janeiro em 2013. Barbosa, porém, rejeita tanto o papel de herói quanto o eventual ingresso na política.
Adorado pela opinião pública como exemplo ético e de alguém que subiu na vida, Barbosa, filho de um pedreiro e de uma dona de casa, será o 55º presidente do Supremo. No seu mandato de dois anos, caberá a ele definir a pauta do plenário e presidir o CNJ (Conselho Nacional de Justiça). Ele continuará como relator da ação penal do mensalão

Gestão

Uma das prioridades da sua gestão, ao menos no início, deverá ser dar atenção aos processos com repercussão geral, que são aqueles cujas decisões do STF impactam os processos em outras instâncias. Com o julgamento do mensalão, desde o início de agosto, o plenário do tribunal deixou de julgar outras ações, causando o acúmulo de mais de 600 processos na fila e atravancando mais de 400 mil ações em instâncias inferiores.

Posse de Joaquim Barbosa na presidência do STF



Onipotência da soberba - TOSTÃO


FOLHA DE SP - 02/12


A experiência pessoal é importante, mas não pode estar à frente do conhecimento


Rinus Michels, revolucionário técnico holandês na Copa de 1974, deve ter ficado arrepiado ao ver as seleções brasileiras de 1958, 1962 e 1970. Suas ideias sonhadoras, com novos conceitos, foram assimiladas e aprimoradas por Cruyff, uma das maiores inteligências coletivas do futebol. O craque e treinador holandês criou variações e transmitiu esses conhecimentos ao Barcelona, que foram modificados por Guardiola e pela seleção espanhola. Todo esse saber evolutivo, associado ao recente pragmatismo criativo do técnico José Mourinho, se espalhou por toda a Europa.

Os principais times europeus, além de contratarem os melhores jogadores do mundo, priorizam, cada vez mais, o jogo coletivo, a troca de passes, que começa com os zagueiros, a diminuição dos espaços entre os setores, a alternância entre a marcação por pressão e a mais recuada, para contra-atacar, as múltiplas funções de um jogador e vários outros detalhes. É o futebol do presente e do futuro.

O futebol brasileiro, por prepotência, ao achar que só aqui tinha craques e se jogava em alto nível, involuiu coletivamente. Pior, o atual estilo de jogar dificulta o aparecimento de grandes talentos. Temos muitos bons jogadores, mas apenas um fora de série, Neymar.

Muitos outros fatores contribuíram para essa queda, como os gramados ruins, a promiscuidade e a ineficiência dos dirigentes de clubes, de federações e da CBF, e a pressão aos técnicos e jogadores para ganhar de qualquer jeito, consequência da violência na sociedade, na arquibancada e no gramado.

Como já tinha escrito, ficou mais evidente, após a entrevista coletiva para anunciar a comissão técnica, que teremos uma época de exacerbação do nacionalismo.

Só faltou Zagallo. Na entrevista, houve também uma exaltação das conquistas de 1994 e 2002, motivo principal, alegado pela CBF, para chamar Parreira e Felipão. A comissão técnica será quase a mesma de 2002. Os conceitos devem também ser os mesmos.

Muitas pessoas, em todas as atividades, acham que o que deu certo tem de ser repetido, como se houvesse apenas um jeito de ganhar. Esquecem também que há coisas erradas nas vitórias e acertos nas derrotas. Existe um grande número de fatores envolvidos nos resultados, ainda mais quando se tem craques, como Romário, Ronaldo, Rivaldo e Ronaldinho Gaúcho.

São indiscutíveis os méritos de Felipão e Parreira nas conquistas das Copas de 1994 e 2002.

Por outro lado, o assunto me faz lembrar de alguns médicos que justificavam suas condutas pelas experiências anteriores, que tinham dado certo, contrariando a evolução e as publicações científicas. Achavam que a experiência pessoal estava na frente do conhecimento e da ciência. É a onipotência da soberba.