quarta-feira, 12 de setembro de 2012

Nós, os inúteis, por João Pereira Coutinho, FSP


Posso oferecer uma sugestão de leitura? "The Revolt of Man" (a revolta do homem), de Walter Besant (1836-1901). O leitor não conhece? Acredito. Sir Walter foi um respeitável cavalheiro vitoriano que a história da literatura inglesa acabou por esquecer.
Injusto. O livro, uma novela distópica brilhantemente escrita, é um exemplo de misoginia que diverte as almas saudáveis.
Enredo: na Inglaterra do futuro, o mundo é governado pelas mulheres. Elas controlam tudo: política, economia, cultura, trabalho. E os homens? Os homens, pobre raça, são reduzidos a bestas de carga e escravos sexuais das triunfantes donzelas.
Fatalmente, essa vaginocracia começa a sair dos eixos: a sociedade a empobrecer, o caos a reinar, as instituições a colapsar --e as mulheres, em desespero de causa, apelam aos homens para salvar a honra do convento.
São eles que regressam das catacumbas para repor a ordem e a felicidade universal.
Besant viveu no século 19. Mas o que diria ele do nosso século 21?
Olho em volta. E concluo que só tenho amigas solteiras ou divorciadas. Casamento é artigo raro e breve por estas bandas.
A situação, confesso, seria a ideal para um rapaz disponível como eu, com hábitos de higiene adquiridos e uma sanidade mental, digamos, satisfatória. O problema é que os homens deixaram de ser ideais para elas.
As solteiras encontraram no trabalho a independência econômica que as mães e avós não tinham. Os homens, quando muito, servem para necessidades ocasionais que esta Folha, um jornal de família, me impede de mencionar.
As divorciadas já passaram pela experiência e não gostaram. Depois da paixão e do idílio dos primeiros anos (ou meses), descobriram com espanto que o príncipe, afinal, sempre foi um sapo. A barriga do infeliz cresceu. A comunicação desapareceu. E o sexo passou a ser, nas imortais palavras de Nelson Rodrigues, "uma mijada". Conclusão?
Depois de o amor virar farsa, elas pegaram nos respectivos girinos e jogaram-nos no charco da inutilidade.
Homem só atrapalha. E nem para filhos serve mais: ser mãe é como fazer inscrição na academia. Basta escolher o banco certo e a questão, nove meses depois, está resolvida.
Um livro recente, aliás, enfrenta o problema. Foi escrito por Hanna Rosin, intitula-se apocalipticamente "The End of Men: And the Rise of Women" (o fim do homem: e a ascensão da mulher) e, segundo resenha da "Economist", tem números que podem interessar aos brasileiros: 1/3 das mulheres do país já ganham mais do que os seus companheiros. Existe até um grupo de apoio para esses homens infelizes, sintomaticamente intitulado "Homens de Lágrimas". Será verdade, leitor? Não minta, não minta.
O Brasil não é caso único. Na Coreia do Sul, o excesso de mulheres na carreira diplomática obrigou o governo a instituir as fatídicas cotas para homens.
Moral da história? Os homens começam a ser bichos em vias de extinção. Sem a importância econômica, reprodutiva ou até social de outros tempos, os pobres coitados ainda tiveram uma suprema humilhação com a crise financeira de 2008: conta a mesma "Economist" que 3/4 dos empregos destruídos pela hecatombe --nas finanças, nas fábricas, na construção civil-- eram tradicionalmente masculinos.
Pelo contrário: a nova economia emergente, baseada cada vez mais em qualidades como "comunicação" e "adaptação", está pronta para o triunfo da sensibilidade feminina.
Se Edward Besant viajasse do século 19 para o século 21, imagino que a sua distopia seria outra: sim, o mundo estaria nas mãos das mulheres. Mas, dessa vez, os homens já não existiriam para o salvar.
Estariam demasiado ocupados, de bermudão e cerveja, com os amigos no botequim.
Porque essa talvez seja a verdade mais dolorosa de todas, que a "Economist" refere sem desenvolver o tema competentemente: não foi a economia ou a libertação sexual feminina que fez dos homens seres inúteis.
Os homens deixaram de ser úteis quando deixaram de ser homens --na atitude, nos comportamentos, nos "hobbies", até no vestuário e nas "tendências" (horrenda palavra).
Nenhuma mulher gosta de ter em casa dois adolescentes retardados: o filho e o pai.
João Pereira Coutinho
João Pereira Coutinho, escritor português, é doutor em Ciência Política. É colunista do "Correio da Manhã", o maior diário português. Reuniu seus artigos para o Brasil no livro "Avenida Paulista" (Record). Escreve às terças na versão impressa de "Ilustrada" e a cada duas semanas, às segundas, no site.

terça-feira, 11 de setembro de 2012

Nota Paulista atropela LRF sem alcançar objetivos




Coluna Econômica - 11/09/2012, por Luis Nassif


Principal bandeira do governo José Serra, a Nota Fiscal Eletrônica foi responsável por desvios bilionários dos repasses a municípios, Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação), universidades estaduais e escolas técnicas.
A legislação do ICMS obriga o depósito do imposto a uma conta do Tesouro paulista no Banco do Brasil. Sobre a arrecadação bruta, 25% são automaticamente transferidos para municípios, outros 20% para o Fundeb e 9,57% para as universidades estaduais e escolas técnicas.
Nos últimos 4 anos, a Nota Fiscal distribuiu R$ 7 bilhões em prêmios e créditos distribuídos pela Fazenda. Na hora de contabilizar o valor, no entanto, a Secretaria da Fazenda valeu-se de uma esperteza: passou a considerar esse pagamento como “devolução de imposto”. Fazendo isso, evitava efetuar os repasses sobre os valores distribuídos.  Seria o mesmo que tratar os prêmios da Loteria, pela Caixa Econômica Federal, como devolução de imposto.
Fazendo isso, atropelou vários procedimentos definidos pela Lei de Responsabilidade Fiscal.
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Graças a essa manobra, nos últimos quatro anos foram desviados R$ 1,75 bi dos municípios, R$ 1,4 bi do Fundeb e R$ 683 milhões das universidades e escolas técnicas. Na verdade, dos R$ 7 bi distribuídos, o Estado de São Paulo bancou R$ 3,1 bi. O restante foi subtraído desses setores. Ou seja, fazia caridade com o chapéu alheio.
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Até hoje não foi divulgado nenhum estudo demonstrando eventuais ganhos de arrecadação com a implantação da Nota Fiscal paulista. Na época do seu lançamento, funcionários graduados da Secretaria da Fazenda indicavam o contrassenso de utilizar a NF em grandes estabelecimentos – que, por serem alvos preferenciais da fiscalização, tem baixa propensão a sonegar. Pagavam-se prêmios sem a contrapartida da redução da sonegação – já em níveis baixos.
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A fim de evitar qualquer viés político no estudo, o Conselho dos Representantes do Sinafresp recomendou a contratação de um especialista sobre as conclusões levantadas. Foi contratado parecer técnico do professor Heraldo da Costa Reis, Coordenador do Centro Interdisciplinar em Finanças da Escola Nacional de Serviços Urbanos do IBAM (Instituto Brasileiro de Administração Municipal).
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Além das irregularidades contábeis, o estudo constatou que praticamente não houve aumento na arrecadação, proporcionado pela NF. Ela incidia apenas sobre o setor varejista. Ocorre que o incremento, no período, foi no mesmo ritmo dos demais setores de atividades do Estado.
Pelos cálculos, estima-se que o resultado direto da NF Paulista foi de cerca de R$ 2,2 bi, em valores de agosto de 2012. Sendo assim, o custo final da Nota Paulista pode ter sido de R$ 4,4 bilhões.
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O estudo foi encaminhado ao TCE, MPF, universidades estaduais e Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo. Além das críticas, o trabalho traz recomendações para sanar as imperfeições da Nota Paulista.

segunda-feira, 10 de setembro de 2012

O que a favela oculta


JOSÉ DE SOUZA MARTINS - O Estado de S.Paulo
A frequência de incêndios em favelas de São Paulo gera compreensíveis preocupações e até suspeitas, não necessariamente fundamentadas. É preferível situar o tema, inicialmente, no contexto mais apropriado das condições fisicamente adversas e impróprias de localização dos aglomerados subnormais, como os denomina o IBGE. O tempo seco, sem dúvida, favorece esses desastres porque as habitações são construídas com materiais de fácil combustão, como madeira e papelão, são coladas uma às outras, têm gambiarras de fios expostos, botijões de gás, fogões acesos e fósforos ao alcance de crianças cujos pais, não raro, estão ausentes, no trabalho.
Os aglomerados subnormais têm localização bem determinada na geografia habitacional brasileira. Em todo o país, os 6.329 que foram identificados e recenseados em 2010 estão em apenas 323 dos 5.565 municípios. Neles vivem 6% da população. A maioria (88,6%) em 20 das regiões metropolitanas e 49,8% nas do Sudeste, e aí já, predominantemente em favelas. Um terço deles na Região Metropolitana de São Paulo e mais de um sexto na do Rio. Em São Paulo, 11% dos habitantes vivem nesses aglomerados, sendo mais de 2 milhões de pessoas. No entanto, em Belém do Pará, 62,5% da população neles vive, 26,7% em Salvador, 22,4% em Recife, 23,9% em São Luís, 13,3% no Rio, 13,2% em Teresina, 10,2% em Maceió. Portanto, um bom número das grandes cidades brasileiras já contém, em tamanho significativo, o que Lewis Munford classifica como áreas de deterioração social.
Quando se entra em casebres e até barracos de favelas, pode-se entender de imediato qual é o grande, embora não o único, fator da crescente favelização das cidades brasileiras. Muitas casas, em particular as de alvenaria crua, que não são poucas nos aglomerados subnormais, são até mais confortáveis do que as habitações de roça de onde procedem muitos de seus moradores. Quem ali mora é autor da própria moradia, capaz, sozinho ou com ajuda de amigos, de construir a casa. Muitos desses são operários da construção civil, que sabem o que estão fazendo. O que lhes faltou não foi casa ou meios e capacidade de construí-la: foi terreno.
O risco de incêndio não é o único que correm as favelas. Outras ocorrências trágicas, como as inundações, os escorregamentos ou os deslizamentos de terra têm marcado a agonia de seus moradores. Impossibilitados de pagar o preço da terra nos lugares apropriados, restam-lhes os terrenos perigosos e insalubres, até porque de mais fácil invasão, pois de maior risco.
Não obstante o cenário adverso, favela é lugar de intensa mobilidade social, provavelmente mais intensa do que na média da sociedade brasileira. Os barracos de madeira e cartão constituem, quase sempre e felizmente, apenas o primeiro degrau de uma lenta ascensão social, que culminará com o casebre de alvenaria em terra alheia e até mesmo a migração para a casa em terra própria. Barracos de favela são moradias de passagem, o que se nota em seu animado "mercado imobiliário". Isso não torna as favelas aceitáveis. É preciso compreender essa sociedade peculiar que surge e prolifera à margem da sociedade dominante às custas de engenhosas estratégias de sobrevivência.
A grave questão social dos aglomerados subnormais esconde problemas que essa sociedade não quer enfrentar. Neles vive a não insignificante população de mais de 11 milhões de pessoas. É neles que está uma parte da força de trabalho, particularmente relevante se considerarmos que sua maior concentração se encontra nas regiões economicamente mais desenvolvidas. É neles que habitam muitas das empregadas domésticas, dos trabalhadores braçais, sobretudo os da construção civil, muitos dos trabalhadores do chamado setor de serviços, como limpeza e jardinagem. Seus salários sabidamente baixos são complementados pelo barateamento das condições de vida, em particular as da habitação. Subsidiam, com sua pobreza, o bem-estar da classe média que do seu trabalho se beneficia e depende. O discurso moral e religioso sobre a pobreza até hoje não conseguiu tocar no ponto complicado da questão: a funcionalidade econômica da miséria numa sociedade como a nossa. É significativo que na campanha eleitoral destes dias o eleitorado se defronte com uma briga de comadres e uma troca de maledicências e não tenha ouvido ainda uma palavra corajosa e competente sobre o gravíssimo problema das favelas, dos cortiços e dos moradores de rua e sobre quanto grandes cidades como São Paulo deles dependem.
Se se fizesse a conta de quanto custam aos governos, e a todos nós, pelos enormes problemas que sofrem no socorro de que carecem nos incêndios, nas inundações, nos deslizamentos, nas questões de saúde agravadas pelas más condições de vida, nas políticas sociais compensatórias, provavelmente ficaria mais fácil encontrar a saída para esse problema social. Como se fez no fim da escravidão: foi só comparar o preço do escravo com o custo do trabalho livre para que a Lei Áurea fosse assinada.