quinta-feira, 8 de setembro de 2011


As várias lições deixadas pelo 11 de Setembro

Uma delas é que Bush errou ao declarar guerra global ao terror

04 de setembro de 2011 | 0h 00

Joseph Nye - O Estado de S.Paulo
PROJECT SYNDICATE
O ataque da Al-Qaeda aos Estados Unidos dez anos atrás causou um choque profundo na opinião pública tanto americana quanto internacional. Que lições podemos tirar uma década depois? Quem voar ou tentar visitar um prédio de escritórios em Washington recebe um lembrete de como a segurança americana foi modificada pelo 11 de Setembro.
Mas, embora a preocupação com o terrorismo tenha aumentado e as restrições à imigração sejam mais rígidas, a histeria dos primeiros dias após o 11 de Setembro abrandou. Novas agências como o Departamento de Segurança Nacional, a Diretoria de Inteligência Nacional e um Centro de Contraterrorismo modernizado não transformaram o governo americano e, para a maioria dos americanos, as liberdades pessoais foram pouco afetadas. Não ocorreram novos ataques em larga escala dentro dos Estados Unidos e a vida cotidiana recuperou a normalidade.
Mas essa aparente volta da normalidade não deve nos enganar sobre a importância do 11 de Setembro no longo prazo. Como argumentei em meu livro The Future of Power, (O futuro do poder, em tradução literal) uma das maiores mudanças nesta era de informação global é o fortalecimento de atores não estatais. A Al-Qaeda matou mais americanos no 11 de Setembro do que o bombardeio do Japão contra Pearl Harbor em 1941. A isso se poderia chamar de uma "privatização da guerra".
Durante a Guerra Fria, os Estados Unidos estiveram mais vulneráveis, em termos tecnológicos, a um ataque nuclear da União Soviética, mas a "destruição mútua assegurada" impediu o pior ao manter a vulnerabilidade mais ou menos simétrica. Os soviéticos controlavam uma grande força, mas não poderiam se sobrepor aos Estados Unidos com seu arsenal.
No entanto, duas assimetrias favoreceram a Al-Qaeda em setembro de 2001. Primeiro, houve uma assimetria de informação. Os terroristas possuíam boas informações sobre seus alvos, enquanto os EUA antes do 11 de Setembro possuíam informações precárias sobre a identidade e localização das redes terroristas. Alguns relatórios do governo haviam antecipado em que medida atores não estatais poderiam ferir grandes Estados, mas suas conclusões não foram incorporadas a planos oficiais.
Coerência. Segundo, houve uma assimetria de atenção. Os muitos interesses e objetivos de um ator maior geralmente diluem sua atenção a um ator menor que, ao contrário, pode focar mais facilmente sua atenção e sua vontade. Havia muita informação sobre a Al-Qaeda no sistema de inteligência americano, mas os EUA foram incapazes de processar coerentemente a informação que suas diversas agências haviam coletado.
Mas assimetrias de informação e atenção não conferem uma vantagem permanente aos que recorrem à violência informal. Evidentemente, não existe uma segurança perfeita e, historicamente, ondas de terrorismo muitas vezes demoraram uma geração para recuar. Mesmo assim, a eliminação da liderança da Al-Qaeda, o fortalecimento da inteligência americana, os controles fronteiriços mais rígidos, e a maior cooperação entre o FBI (a polícia federal americana) e a CIA (o serviço secreto americano) claramente tornaram os Estados Unidos (e aliados) mais seguros.
Mas há lições maiores que o 11/9 nos ensina sobre o papel de narrativa e poder brando numa era da informação. Tradicionalmente, os analistas supunham que a vitória ia para o lado com melhor exército ou maior força; numa era da informação, o resultado é influenciado também por quem tem a melhor história. Narrativas competidoras contam e o terrorismo tem a ver com drama político e narrativo.
O ator menor não pode competir com o maior em termos de poderio militar, mas pode usar a violência para estabelecer a agenda mundial e construir narrativas que afetam o poder brando de seus alvos. Osama bin Laden foi um grande adepto da narrativa. Ele não foi capaz de causar tantos danos aos Estados Unidos quanto esperava, mas conseguiu dominar a agenda mundial por uma década e a inépcia da reação inicial americana significou que ele pode impor custos maiores do que o necessário aos Estados Unidos.
O presidente George W. Bush cometeu um erro tático ao declarar uma "guerra global ao terrorismo". Ele teria feito melhor se enquadrasse a resposta como uma réplica à Al-Qaeda, que havia declarado guerra aos EUA. A guerra global ao terror foi erroneamente interpretada como uma justificativa para uma ampla variedade de ações, incluindo uma mal orientada e cara guerra no Iraque, que prejudicou a imagem dos EUA. Além disso, muitos muçulmanos entenderam errado o termo como um ataque ao Islã, o que não era intenção dos EUA, mas servia às intenções de Bin Laden para manchar as percepções sobre os Estados Unidos em países muçulmanos decisivos.
Na medida em que o trilhão ou mais de dólares de custos sem fim da guerra contribuíram para o déficit orçamentário que hoje tolhe os EUA, Bin Laden conseguiu prejudicar o poder duro americano. E o verdadeiro custo do 11/9 pode ser o de oportunidade: durante a maior parte da primeira década deste século, enquanto a economia mundial deslocava gradualmente seu centro de gravidade para a Ásia, os EUA estiveram ocupados numa equivocada guerra de escolha no Oriente Médio.
Uma lição-chave do 11/9 é que o poder militar duro é fundamental para enfrentar o terrorismo de gente da laia de Bin Laden, mas que o poder brando de ideias e legitimidade é fundamental para vencer os corações e mentes das populações muçulmanas majoritárias às quais a Al-Qaeda gostaria de recrutar. Uma "estratégia de poder inteligente" não ignora as ferramentas do poder brando.
Mas, ao menos para os EUA, a lição mais importante do 11/9 talvez seja que a política externa americana deveria seguir o conselho do presidente Dwight Eisenhower há meio século: não se envolver em guerras terrestres de ocupação, e concentrar-se em manter a força da economia americana. / TRADUÇÃO DE CELSO PACIORNIK

É PROFESSOR NA UNIVERSIDADE HARVARD, AUTOR DE "THE FUTURE OF POWER" E EX-SECRETÁRIO ADJUNTO AMERICANO DE DEFESA 


Freio na voracidade

Quando as pessoas compram avaliando não só o preço, mas o que as empresas fazem de bom e de mau, a ética pressiona o capitalismo

04 de setembro de 2011 | 0h 51
Renato Janine Ribeiro - O Estado de S.Paulo
O capitalismo é ético? Eis uma questão muito difícil de responder. Basicamente, hoje há duas grandes linhas a respeito. Uma enfatiza a dinâmica de um sistema, ou um estilo, que libera a produção das amarras tradicionais e assim revela capacidade inigualável de criar e talvez até distribuir riquezas. Mas o preço dessa libertação é um caráter nada ou pouco ético: o capitalista é movido por um "instinto animal", promove uma "destruição criativa". Na melhor das hipóteses, é neutro eticamente, o que chamamos de "amoral". Com frequência é até predatório, o que chamamos de "imoral". Só por ele, não respeitaria direitos trabalhistas - tanto assim que, nas últimas décadas, vários deles foram reduzidos - nem teria reverência pela natureza e o ambiente.
Isso não representa contudo, necessariamente, uma condenação do capitalismo. Apenas mostra que ele é excelente naquilo que se propõe: produzir. Precisa, porém, de controles externos. Esses podem ser exercidos pelo Estado, pela sociedade, pela opinião pública. Desse ponto de vista, o que pode introduzir ética na economia são as pessoas, enquanto não empresários. Isto é, o próprio empresário, por valores éticos que não são seus como empresário, mas como pessoa, como sujeito moral, pode orientar sua atividade produtiva numa direção melhor. Se não for ele, será a sociedade. Quando cada vez mais pessoas compram levando em conta não só o preço, mas o que as empresas fazem de bom e de mau, é isso o que acontece. Exemplo importante no Brasil foram as campanhas - movidas por pessoas, inclusive empresários da Abrinq - contra o trabalho infantil. A Zara, acusada há dias de comercializar produtos em que se usa trabalho escravo, padece em sua imagem por isso.
Esse é um primeiro modo de ver o capitalismo, digamos, "selvagem". Mas há outra percepção, ou concepção, do capitalismo. Esta aparece quando organizações como a Etco se empenham em defender um ambiente limpo de corrupção para os negócios melhor florescerem. Aqui o problema é, como se vê na série sobre a cultura das transgressões que saiu pela editora Saraiva (de cujo terceiro volume participei), de que maneira evitar a primazia da transgressão, que faz as boas regras - boas segundo a lei e a ética - serem violadas em nome de uma vantagem fácil que, porém, desmoraliza a sociedade, amoraliza a economia e imoraliza a política. Essa linha de pensamento estaria mais perto dos calvinistas de Max Weber, que sentiam a "ética protestante" expressando-se no "espírito do capitalismo". Pessoas empreendedoras, que mourejam, fazem de tudo para a sociedade prosperar: o empresário weberiano do século 16 ou 17 nada tem a ver com o banqueiro da caricatura, fumando charuto, indolente, espertalhão, mancomunado com os poderosos, corruptor. Esse empreendedor dos começos da modernidade pode não ser simpático - nas Américas, seria senhor de escravos, na Holanda, não reconheceria direitos a seus empregados -, mas ele próprio trabalhava, e muito. De certa forma, quando se fala num capitalismo que requer uma ética intensa, é nele que se pensa.
Mas em nossos dias surge um upgrade. Cada vez mais, no lugar da ética protestante e moralista, aparece uma preocupação ética que nasceu da ideia do meio ambiente e agora se desenvolve para a sustentabilidade. Não tem mais por modelo ideal o empresário calvinista que faz, da empresa, sua razão de vida. Ao contrário, cada vez mais a vida é a razão de ser de tudo o que se faça, inclusive (mas não só, nem prioritariamente) a empresa. Tudo começa com o descontentamento ante a poluição. A economia que se desenvolve desde a Revolução Industrial tem um custo altíssimo para a vida - humana, animal, vegetal. Londres passa cem anos coberta pelo fog, uma neblina que se deve à poluição das fábricas. As pessoas não se enxergam. A cidade fica invisível e os cidadãos, cegos ao seu entorno. Contudo, após a 2ª Guerra Mundial, uma preocupação com a natureza cresce pelo mundo. Movimentos verdes lutam contra a má qualidade do ar, da água, em prol da preservação de florestas. A essa altura, por "verde" se entende o meio ambiente natural ou assimilado. Contudo, com os anos, as causas verdes anexam um elenco de outros valores. Não é só a defesa do mundo não contaminado pelo homem. É a defesa do homem, contra o que o desgasta ou desvaloriza.
Também se propõe uma reorientação da ciência. Tomemos o filósofo que é o primeiro grande referencial de toda preocupação com o meio ambiente, Rousseau. É um amante da natureza. Começa seus Devaneios do Caminhante Solitário narrando um passeio pelos arredores de Paris, em que olha as plantas, identifica-as, extasia-se. Mas é também alguém que faz seu début literário com um escrito, premiado pela Academia de Dijon, sustentando que "as artes e as ciências" - isto é, o que chamamos de tecnologia e ciência - fizeram mal, mais do que bem. Desnaturaram o mundo. Degeneraram o homem. Rousseau não vê em nada moderno, seja a economia, a política ou a ciência, capacidade de reverter o processo pelo qual "o homem nasceu bom e a sociedade o corrompe".
Mas o que notamos na ciência das últimas décadas é um forte empenho em reduzir e mesmo suprimir os danos acarretados pelo desenvolvimento. Lembremos que não faz muito tempo a ciência e a tecnologia eram, em ampla medida, influenciadas por encomendas militares. Isso mudou. Tenhamos em mente que muitas pesquisas são conduzidas em nome de causas destrutivas, ainda hoje. Muitos desconfiam que os cultivos transgênicos, ou têm certeza de que os veículos de transporte individuais, causam males em maior número que as vantagens. Os carros são bons a curto prazo para poucos, mas péssimos para o futuro da humanidade como um todo. Mesmo assim, porém, em casos como o da indústria do tabaco, cientistas cortaram seu elo umbilical com ela, como se vê no filme O Informante. E são cientistas de renome que formam o "core" da Comissão Internacional de pesquisa sobre as Mudanças Climáticas, que talvez constitua o órgão mais prestigioso na luta por mudar o mindset que governa uma produção de custos negativos para a sociedade e a natureza.
Com uma ciência e uma tecnologia mais amigas do verde, um verde que saiu das plantas e colore tudo o que é vida e mesmo cultura, isto é, passa a propor uma qualidade de vida melhor para os humanos e seus parceiros no planeta, com a defesa da biodiversidade e do que podemos chamar a culturo-diversidade, por que não uma economia de novo recorte? Será possível o projeto de uma empresa ter no seu cerne a sustentabilidade, isto é, a proposta de que nenhuma intervenção humana piore o que foi recebido? Essa é uma exigência alta. Para eu me alimentar, tenho de matar animais ou mesmo vegetais. (O momento mais engraçado do filme Notting Hill, para mim, foi quando uma moça se disse vegetariana lapsariana. Lapso significa queda. O que ela dizia é que só comia frutas e legumes que já tivessem caído da planta que as gerou. Não comeria uma maçã arrancada da macieira, porque estaria matando um ser vivo. Fica difícil, claro, viver com uma ética tão radical.) Mas, se tenho de matar ou causar danos, posso reduzi-los, talvez revertê-los por completo e, quem sabe, um dia (esse é o sonho!), até melhorar as condições do que foi recebido. Aqui amplio a ideia de que recebemos insumos "da natureza" para a de que recebemos insumos também humanos: o trabalho, a saúde, a boa disposição uns dos outros. É sustentável a ação que não apenas zera o dano causado, mas também promove ganhos. Suponhamos uma empresa que decida fornecer, a seus funcionários, alimentação saudável - a cada três horas, como hoje se recomenda, em vez de poucas e lautas refeições. Pode melhorar a saúde deles. Ela assim terá devolvido mais do que consumiu. É claro que há tantos insumos que o cálculo não pode isolar um dos outros. Mas é um exemplo.
Porque, no fundo, nossa questão é: o que fará uma empresa ou um empresário agir eticamente, ser ético? Tudo o que afirmei não dá uma resposta definitiva. Quando uma empresa faz questão de não explorar o trabalho infantil ou de preservar a natureza, essa iniciativa é "da empresa" ou dos indivíduos que, entre outras coisas, são seus donos? A diferença é importante. Toda empresa busca o lucro. Mas o que a faz criar limites para sua voracidade? É algo que faz parte do próprio projeto empresarial, ou serão elementos externos, inclusive os valores pessoais dos proprietários? Para sair da moral e entrar no moralismo, conta-se que houve um tempo em que um vinho que tem no nome a palavra "diabo" não era distribuído aqui porque os importadores eram cristãos fervorosos. Era um valor deles, não da empresa. E uma empresa pode ter valores? Uma empresa é diferente dos seres humanos que são seus donos, que a fazem? Questões difíceis. O que parece certo, isso sim, é que uma empresa pode ter no seu próprio projeto de negócios uma solidez sustentável e que isso será mais viável se ela tiver compromissos sociais e ambientais e, além disso, estiver na linha de ponta, no cutting edge, da ciência. O mais, resta a esclarecer - ou a fazer.

RENATO JANINE RIBEIRO É PROFESSOR TITULAR DE ÉTICA E FILOSOFIA POLÍTICA DA USP 


Show do bilhão

Bilionários dizem ‘parem de nos mimar’ e se dispõem a pagar mais impostos

03 de setembro de 2011 | 14h 00
IVAN MARSIGLIA
Desde 1998, o economista Eduardo Giannetti da Fonseca não usa carro. Trocou-o por caminhadas, táxis e transporte coletivo. Esse não foi, no entanto, um exercício de contrição devido à sua conhecida militância pela causa da sustentabilidade - engajamento que o levou a participar ativamente da campanha presidencial da ex-senadora Marina Silva. A razão é prosaica: Giannetti simplesmente não consegue decorar caminhos e não suporta perder tempo trocando marchas em meio a engarrafamentos.
Talvez seja por isso que esse mineiro de Belo Horizonte criado em São Paulo e apaixonado por filosofia - que optou, "por razões de segurança profissional", por cursos simultâneos de economia e ciências sociais na USP, doutorando-se em seguida pela Universidade de Cambridge - desconfie de ideias não assentadas na vida prática. "Se formos depender da boa vontade das empresas ou dos consumidores, nada vai mudar", adverte, num trecho da entrevista a seguir, concedida ao Aliás no apartamento para o qual acaba de se mudar, no bairro paulistano da Vila Madalena.
O milionário Maurice Lévy, presidente da Associação Francesa das Empresas Privadas

Ganhador de dois Prêmios Jabuti por obras que discutem a ética e a história das ideias econômicas, Vícios Privados, Benefícios Públicos? (Cia. das Letras, 1993) e As Partes & o Todo (Siciliano, 1995), e também do best seller Felicidade - Diálogos sobre o Bem-Estar na Civilização (Companhia das Letras, 2002), Giannetti reagiu com ceticismo à genuflexão feita nas últimas semanas por megaempresários dispostos a contribuir mais para a superação da crise financeira mundial que ronda as manchetes desde 2008.
No dia 14, o bilionário americano Warren Buffett pediu aos endividados governos europeus e americano que "parem de nos mimar" com isenções fiscais, em nome de um "sacrifício coletivo". No dia 29, o executivo-chefe do Publicis Groupe e presidente da Associação Francesa de Empresas Privadas, Maurice Lévy, fez coro em um artigo no Financial Times: "Não sou masoquista, mas nós ricos temos que pagar mais".
Para o filósofo da economia, tais palavras denotam mais um exercício de marketing pessoal que uma real preocupação em distribuir riqueza, muitas vezes acumulada na expansão sem freios do sistema financeiro. Mais: lembra que, em um mundo ameaçado pelo aquecimento global e o esgotamento dos recursos naturais, "os países que estão chegando tardiamente à festa do consumo", como China, Índia e Brasil, não poderão participar dela da forma que fizeram europeus e norte-americanos. E que a necessária transformação desses padrões de consumo na direção da sustentabilidade só será possível se os custos ambientais forem incorporados a um sistema de preços que hoje ignora a destruição do planeta.
Warren Buffett e Maurice Lévy tiveram uma crise de consciência ou é instinto de autopreservação?
Por trás disso está a percepção de que existe uma desigualdade injustificável no mundo hoje, mesmo em países muito prósperos como os EUA e a França. Uma das maneiras de corrigir isso seria uma tributação progressiva, como já é praticada - mas que talvez tivesse que ir ainda mais longe. A minha percepção sobre a questão da equidade e da justiça distributiva não considera, como muita gente pensa, que toda desigualdade é ruim. O que não é legítimo é a desigualdade imposta na situação de partida. Ou seja, é eticamente errado um sistema no qual a condição em que uma pessoa vem ao mundo predetermina, quase que inescapavelmente, seu limite. Se, do contrário, houver certa paridade no acesso à educação, saúde e desenvolvimento para todos, a desigualdade que aflora a partir daí é até bem-vinda. Pois ela pode refletir, inclusive, diferenças de valoração: há pessoas dispostas a sacrificar mais de seu tempo e de sua energia para obter sucesso financeiro do que outras - que valorizem mais a afetividade, o conhecimento, a estética ou qualquer outra possibilidade de realização humana, por exemplo. Igualdade de resultado não é meritória em si. A de partida, sim.
Dia 25, Buffett investiu US$ 5 bilhões no Bank of America dizendo que estava dando um ‘voto de confiança’ em uma instituição americana em crise. Em seguida, as ações do banco dispararam 24%. Seria uma espécie de filantropia de resultados?
A escolha com base em critérios de nacionalidade ou de "voto de confiança" não faz parte da lógica da gestão de recursos. Estou certo de que Buffett, quando fez essa opção, levou em conta outros fatores - muito mais que esse, que me parece um exercício de public relations. Pega bem dizer isso.
Na quinta, o premiê Silvio Berlusconi retirou do pacote de ajuste fiscal italiano o ‘imposto da solidariedade’ que iria taxar os mais ricos. O discurso não chega à prática?
A crise financeira de 2011 é uma sequela de uma crise que não foi devidamente resolvida. A imagem que me ocorre é a seguinte: um paciente que esteve na UTI, à beira do colapso fatal, sobreviveu à base de remédios muito poderosos e de estímulos violentos. Ele consegue voltar para casa, mas está em convalescença, sob intensa medicação. Essa medicação é a política monetária e a política fiscal: juros muito baixos e gastos do governo financiados por meio de endividamento. De repente, esses estímulos começam a perder eficácia, e o paciente ainda está com a condição muito frágil, porque a economia não se recuperou e o desemprego é alto. Estamos nessa situação. Ou o paciente vai se manter em estado razoável mesmo com os medicamentos perdendo efeito até sua recuperação lenta ou vai ter uma recaída grave e voltar para uma situação periclitante. O fato é que se trocou um excesso de endividamento do setor privado por um excesso de endividamento do setor público. Houve uma socialização das perdas que deveriam ter sido assumidas, mas não foram. O que mostra que há algo profundamente errado com o sistema financeiro: pois quando oferecia enorme rentabilidade e lucros altos, ninguém questionou se a apropriação disso era pública ou privada. No momento em que as perdas se materializaram, o setor público as assumiu para si, jogando a conta para as gerações futuras por meio de dívida. E agora há uma credibilidade em jogo em relação à capacidade desses Estados honrarem os compromissos que assumiram.
A atitude desses bilionários benemerentes sinalizaria também uma preocupação com a incapacidade de os Estados nacionais, em um mercado cada vez mais global, darem conta de socorrê-los em situações de crise?
Sim. E acho que essas declarações de bilionários são muito pouco relevantes para se entender os processos e desafios que estão colocados. O total de ativos financeiros no mundo - que é a soma dos depósitos em bancos, títulos de dívida e ações - passou de US$ 96 trilhões em 2002 para US$ 167 trilhões no auge da expansão, no fim de 2007. Aumentou 75% em quatro anos. Ou seja, houve um crescimento descontrolado de papéis que representam direitos sobre riqueza no mundo. O lucro dos bancos americanos até o início dos anos 80 representava 10% do lucro total da economia americana. Chegou a 40% do total em 2006. A pergunta crucial foi feita pelo (economista e ex- presidente do Federal Reserve, o banco central americano, nos governos Jimmy Carter e Ronald Reagan) Paul Volcker: "Como justificar que o sistema financeiro se aproprie de 40% dos lucros da economia americana?" Qual é o valor socialmente reconhecido em termos de benefícios, de satisfação das necessidades humanas, que pode justificar uma proporção tão exagerada do lucro sendo capturada pelo sistema financeiro?
O problema foi a desregulamentação do setor, desde as reformas de Reagan e Thatcher nos anos 80, como alguns dizem?
A hipertrofia dos mercados especulativos foi consequência dessa aposta desastrada na desregulamentação. Mas o problema maior é que alguns mercados são especialmente intratáveis do ponto de vista da regulamentação - e o financeiro é um deles. Ele é de uma criatividade diabólica, extremamente complexo, impõe uma situação em que os burocratas, regulamentadores, estão sempre olhando pelo retrovisor. Tentam prevenir uma crise parecida com a que ocorreu, mas a próxima vem diferente. Bolhas especulativas existem desde que o mercado atingiu um mínimo de sofisticação. Uma das mais pitorescas foi a "mania das tulipas", na Holanda do século 17. Houve uma especulação fenomenal em torno de compra e venda de tulipas, primeiro físicas e, depois, para entrega no futuro.
Empresários que se propõem à filantropia ou se dispõem a pagar mais impostos adotam as chamadas 'boas práticas' nos negócios?
Nem sempre. Mas a sociedade está cada vez mais atenta e dispõe de meios tecnológicos para punir os pilhados em práticas inaceitáveis. O caso mais recente é o da (grife espanhola de roupas) Zara, que contratou oficinas que se utilizavam de trabalho escravo. Uma falha dessa gravidade pode comprometer o patrimônio de uma empresa. Reputação é uma coisa que se demora a construir e se destrói instantaneamente.
A valorização do chamado 'instinto animal do empresariado' ainda tem lugar em uma sociedade que fala cada vez mais em sustentabilidade e consumo responsável?
Se tivermos que esperar a regeneração moral da humanidade para resolver o problema ambiental, estamos fritos. Ela não vai ocorrer. E quem imaginar que outro modelo econômico implantado de cima para baixo dará conta do recado, também está enganado. A pior experiência ambiental do século 20 é a da União Soviética. O que se percebe agora é que o mercado competitivo regido pelo sistema de preços padece de uma falha extremamente grave no tocante à relação entre o ser humano e o mundo natural. Ele não fornece uma sinalização adequada dos custos ambientais envolvidos em nossas escolhas de produção e consumo.
Explique melhor.
Por exemplo: vamos comparar duas opções de geração de energia elétrica. Na solar, na melhor tecnologia existente, o custo é de US$ 0,17 por quilowatt/hora. Ele está caindo e pode chegar US$ 0,10 nos próximos anos. Já uma termoelétrica a carvão gera um quilowatt/hora, igualzinho, por US$ 0,02 a US$ 0,03. Qual é a opção lógica de uma empresa que esteja no mercado ou de um país que queira ser competitivo? É o que a China está fazendo: termoelétrica a carvão. Só que essa comparação é tremendamente distorcida. E o custo da emissão de CO2 gerado pela queima do carvão? Não aparece na conta. É como se o custo imposto à humanidade e às gerações futuras não existisse. Outro exemplo: quando você come carne, paga a criação do gado, a pastagem, o transporte, a embalagem, mas não a emissão de CO2. Só que se você somar todo o rebanho mundial, bovino, suíno e aviário, a emissão de CO2 equivalente é maior do que de toda a frota automobilística do planeta. Os preços que pagamos pelo que fazemos não estão refletindo o custo total do que estamos consumindo. É essa a falha grave do sistema de preços a corrigir.
Essas coisas terão que custar mais?
Sim. O preço é um pacote de informação econômica: ele reflete, de um lado, o custo de produzir e, de outro lado, a satisfação que o consumidor tem ao consumir. Em nenhuma das duas dimensões hoje em dia está incorporado o aspecto meio ambiente, o uso de recursos naturais não renováveis, água, emissão de gases nocivos. Isso terá que ser incorporado. O problema é que se formos depender da boa vontade das empresas ou dos consumidores, isso não vai mudar. A British Airways introduziu recentemente, para o cliente de passagem aérea, a opção de pagar na emissão do bilhete o crédito de carbono correspondente ao trajeto. Imaginando que, como o mundo está aparentemente desesperado com o aquecimento global, os passageiros conscientes iriam aceitar pagar. Sabe qual foi a adesão? 3%. É a história do jovem Agostinho, que orava: "Dai-me, Senhor, a castidade e a virtude. Mas não agora". (Risos.)
Como essa dimensão, digamos 'ética' e ambiental, seria incorporada aos preços?
A implementação disso ainda não é clara. A Austrália tem uma experiência pioneira. Em nível planetário, não dá para imaginar 193 países reunidos em um fórum para reformar o sistema. Seria necessária a iniciativa de três a cinco atores relevantes, União Europeia, China e EUA, digamos. E os outros teriam que entrar, ao preço de sanções. É um debate complicado, eu sei. Especialmente porque não temos instituições multilaterais que deem conta desses desafios. Mais: a desigualdade de renda entre países é maior que a existente no país mais desigual do mundo. É um problema de equidade internacional. Mas é fato: os países que estão chegando tardiamente à festa do consumo não vão poder participar. Gostemos ou não. E o dilema é saber como compatibilizar as aspirações da nova classe média que surge no mundo com os limites do padrão que nos foi vendido pelo projeto iluminista de progresso. Não é trivial mudar preferências e visões de realização humana.
No livro Felicidade, o senhor diz justamente que as promessas de bem-estar do Iluminismo, associadas ao progresso das ciências e ao domínio da natureza pelo homem, não se cumpriram. Mas qual seria a alternativa?
Precisamos superar e não rejeitar o legado iluminista. No sentido alemão, de incorporá-lo e ir além. Ele nos trouxe conquistas extraordinárias no campo da tecnologia, da ciência, da medicina, da produtividade. Mas também mostrou seus limites: o caminho estreito do progresso econômico não sacia as aspirações de realização humana, nos coloca numa corrida armamentista do consumo e ainda compromete gravemente o equilíbrio ambiental da vida. A humanidade vai ter que encontrar uma saída. Fico esperançoso com a pesquisa que mostra que o crescimento econômico traz ganhos de bem-estar subjetivo, que seria a felicidade, no seu início, quando um país parte de um nível de renda muito baixo. Mas que, a partir de certo ponto, não há mais qualquer evidência de que o crescimento da renda continue trazendo acréscimos de bem-estar. Ou seja, os países do mundo não precisam ter o padrão de consumo norte-americano para alcançarem padrões de felicidade iguais ou superiores.
O sr. se alinha aos economistas que questionam o uso do PIB como índice de progresso.
É claro. Veja que coisa: se você vive em uma comunidade em que a água é um bem livre, como o ar que respiramos, isso não entra nas contas nacionais. Não há registro econômico. Se essa comunidade, ao contrário, polui todas as fontes de água natural e, para continuar sobrevivendo precisa purificar, engarrafar, distribuir ou importar água, o que ocorre com o PIB do país? Ele aumenta! É uma maluquice. A qualidade de vida piorou, você tem que trabalhar mais para beber água, e o sinal que a economia tal como é registrada emite é o de que a vida melhorou. Se você vai a pé para o trabalho, isso não entra no PIB. Mas se passa horas no trânsito, de carro, poluindo a cidade e prejudicando sua saúde física e mental, o PIB aumenta! Porque uma coisa que não era intermediada pelo sistema de preços passará a ser. As pessoas não têm noção de como os números distorcem a realidade.
Existe uma ética inerente ao capitalismo ou ele é um formidável sistema de geração de riquezas que precisa ser 'civilizado'?
Sou um estudioso do assunto há anos e parei de usar a palavra "capitalismo". Será que faz sentido usar essa classificação para designar um sistema econômico que existe no mundo desde o século 17? Se alguém diz "economia de mercado", aí sim, sei do que estamos falando. Ou "economia de planejamento central". A economia que existe é a que procura mobilizar o autointeresse, o fato de que as pessoas querem melhorar de vida e têm ambições de todo o tipo, para que disso resulte um benefício social. Se você deseja melhorar de vida, ofereça algo cujo valor os demais reconheçam. Há regras para que isso ocorra de maneira ordenada e benéfica, em termos de criação de riqueza. Toda uma ética do que é legítimo como prática concorrencial e do que não é. Um arcabouço de justiça que Adam Smith já discutia em A Riqueza das Nações, como função do Estado. Aliás, quero escrever um ensaio chamado "O Fim do Capitalismo". Do conceito (risos). Saber quem inventou essa palavra, que colonizou o nosso pensamento. Marx falava em "modo de produção capitalista", mas a substantivação disso é outra coisa. Tem gente que atribui ao capitalismo a condição de agente. "O capitalismo faz isso, aquilo..." Como se fosse dotado de vontade. Só que esta cabe ao homem.
Entrevista Eduardo Giannetti da FonsecaEconomista. doutor pela Universidade de Cambridge e professor do Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper)