Um estudante aprovado por cotas raciais na Faculdade de Direito da USP entrou com uma ação judicial contra a universidade após perder a vaga por não ter sido considerado pardo. A defesa do adolescente argumenta que o procedimento de averiguação feito pela instituição é inconstitucional.
Glauco Dalalio do Livramento, 17, foi aprovado em primeira chamada pelo Provão Paulista, vestibular criado no ano passado exclusivamente para alunos da rede pública e que distribuiu 1.500 vagas da USP. O jovem concorreu pela reserva de vagas para candidatos egressos da rede pública e autodeclarados PPIs (pretos, pardos e indígenas).
O adolescente se declarou pardo, mas a comissão de heteroidentificação da USP discordou da autodeclaração. Depois de avaliarem uma fotografia e fazerem um encontro virtual de cerca de um minuto com o candidato, os integrantes da comissão decidiram que ele não pode ser considerado pardo.
"O candidato tem pele clara, boca e lábios afilados, cabelos lisos, não apresentando o conjunto de características fenotípicas de pessoa negra", diz o parecer da comissão.
Este é mais um caso neste ano de candidato aprovado por cotas raciais em curso concorrido da USP que teve a autodeclaração de pardo rejeitada pela instituição. Conforme mostrou a Folha, um estudante teve a matrícula cancelada no curso de medicina no primeiro dia de aula.
Nas duas situações, os estudantes foram classificados pelo Provão Paulista. A USP definiu que candidatos selecionados por essa prova teriam a autodeclaração racial aferida de forma virtual. Já no caso dos aprovados pela Fuvest, vestibular próprio da universidade, a averiguação é feita presencialmente.
Os dois estudantes afirmam considerar que foram prejudicados no processo e questionam por que não foi dada a mesma condição a todos os candidatos, independentemente do tipo de seleção.
Alcimar Mondillo, advogada de Glauco, disse ter entrado com um pedido de tutela de urgência para a reativação da matrícula do adolescente. Ela argumenta que o procedimento adotado pela USP é ilegal e inconstitucional.
"A inconstitucionalidade e ilegalidade da resolução da USP [sobre o processo de averiguação da autodeclaração] é patente, uma vez que tratou pessoas iguais (candidatos às vagas do vestibular autodeclarados negros, pardos e indígenas) de forma diferente (apenas os candidatos aprovados pelo vestibular da Fuvest têm o direito de comprovar seu fenótipo presencialmente)", diz a ação.
Ela também aponta que a aferição online prejudica os candidatos, já que a autodeclaração é verificada apenas por aspectos físicos.
"Não há dúvidas de que a oitiva virtual prejudica o candidato que tem sua autodeclaração não confirmada, pois presencialmente os membros da comissão têm a real possibilidade de averiguar os aspectos fenotípicos que o tornam apto à vaga reservada pelas cotas raciais", argumenta.
Questionada sobre o motivo de não garantir a avaliação presencial para todos os candidatos, a USP disse que "isso demandaria um calendário de bancas de heteroidentificação incompatível com o calendário dos vestibulares do Enem, das universidades paulistas e do Provão Paulista."
Também defendeu que a averiguação online ocorre para evitar prejuízos a candidatos de fora de São Paulo. "Teríamos muitos candidatos viajando para São Paulo sem matrícula efetivada e sem uma resposta definitiva das bancas de heteroidentificação, o que acarretaria prejuízo para os candidatos", disse em nota.
Primeiro da família a ser aprovado em uma universidade pública, Glauco diz acreditar que, se tivesse sido avaliado presencialmente, não teria tido a sua autodeclaração questionada.
"Ficamos tão felizes com a aprovação. Foi uma conquista dele, mas também foi uma conquista da nossa família, de toda a escola em que ele estudou. Nunca nos preocupamos com a possibilidade de a cor dele ser questionada", conta Pamella Dalalio, 38, mãe do adolescente.
Glauco é de Bauru, no interior paulista, e sua aprovação na Faculdade de Direito, uma das mais tradicionais do país, virou notícia nos jornais da cidade. "As pessoas reconheciam ele na rua e vinham dar parabéns", conta a mãe.
Segundo ela, a família sempre considerou o menino como sendo pardo. "Eu tenho a pele mais clara, mas meu marido, o pai do Glauco, tem a pele escura e traços característicos negros. Nunca houve nenhuma dúvida sobre a cor do nosso filho."
Em nota, a USP informou que a análise de autodeclaração é "estritamente fenotípica", ou seja, só são avaliados a "cor da pele, os cabelos e a forma da boca e do nariz" dos candidatos.
Também defendeu que o formato diferente utilizado para averiguar a autodeclaração dos candidatos não fere a isonomia do processo. "Nas versões virtuais, a banca de heteroidentificação toma todo o cuidado para que a visualização das características fenotípicas seja feita de maneira adequada, pedindo, por exemplo, para que os candidatos mudem a posição do corpo e procurem lugares com melhor iluminação. Tudo para garantir a isonomia da oitiva", disse em nota.
COMO É A ANÁLISE NA USP E NA UNICAMP?
Nas outras duas universidades estaduais paulistas, Unesp e Unicamp, o processo de averiguação das comissões de heteroidentificação é o mesmo para todos os candidatos independentemente do processo seletivo do qual participaram.
Na Unesp, um estudante só tem sua autodeclaração rejeitada após uma análise presencial.
Já na Unicamp, desde a pandemia, o processo de todos os candidatos é feito a distância, com análise de fotografia e, se necessário, com avaliação por vídeo.
As bancas de heteroidentificação são uma demanda do movimento negro e recomendadas pelos órgãos de controle, como o Ministério Público, para coibir fraudes na política de cotas. Das três universidades paulistas, a USP foi a última formar uma comissão desse tipo —e só fez após a Defensoria Pública ingressar com uma ação judicial.
A Unesp e a Unicamp informaram que as comissões fizeram com que os casos de fraude diminuíssem nos processos seletivos. Nas duas instituições, cerca de 90% dos candidatos avaliados têm a autodeclaração validada.
A Folha questionou a USP sobre quantos candidatos tiveram a autodeclaração negada neste ano e em 2023, mas a universidade não respondeu.
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