domingo, 24 de março de 2024

Levar a notícia a quem interessa, José Henrique Mariante, FSP

 "Yo fè fas ak pasaj sa nan mitan forè ant Kolonbi ak Panama ansanm ak paran yo, pifò nan yo se ayisyen kitap viv Brezil, e kitap viv sitiyasyon de abandon ak lanmò." Essa frase foi publicada pela Folha na última semana e, por incrível que pareça, isso é muito bom.

A série "Dárien, a selva da morte", em que a repórter Mayara Paixão e o fotógrafo Lalo de Almeida acompanham a brutal travessia de imigrantes pelo estreito que separa Colômbia e Panamá, foi traduzido para o inglês, o espanhol e o créole haitiano, a língua enigmática que abre a coluna.

Como explica o primeiro capítulo da reportagem, justamente o que foi traduzido para o idioma dominante no Haiti, mais de 15 mil crianças e adolescentes brasileiros, filhos de haitianos que vieram para o Brasil ao longo da última década, agora emigram com os pais para os EUA. Ou melhor, tentam, em périplo arriscadíssimo, que tem como primeiro obstáculo a "selva da morte", Dárien, 100 km de floresta tropical, lama, água, violência, atravessadores e coiotes.

A breve descrição já justifica qualquer esforço de reportagem, e é de se imaginar que a história tenha sensibilizado diversos leitores brasileiros da Folha nos grandes centros urbanos do país. Terá o relato, porém, alcançado os eventuais, para não dizer futuros, personagens da saga, os haitianos espalhados pela América do Sul, que também almejam o eldorado americano? Sem ajuda, provavelmente não. Eis então uma das poucas maravilhas do jornalismo atual, a capacidade de transbordar fronteiras, graças à tecnologia e às boas iniciativas.

Há pouco mais de um ano, a agência ProPublica relatou nos EUA a história de um nicaraguense, Jefferson Rodríguez, 8, encontrado morto em uma fazenda leiteira no Wisconsin. Os policiais que atenderam ao chamado do dono do negócio mal falavam espanhol, mas entenderam o suficiente para prender e acusar o pai do garoto por um crime que não cometeu. A reportagem tirou o pai da cadeia e ainda denunciou os vários abusos aos quais imigrantes são submetidos em propriedades do Meio-Oeste americano.

Um barquinho de papel sobre um mapa representando a América Central.
Carvall/Folhapress

A agência, porém, achou que contar a história para seu público habitual, extratos cultos e elitizados de regiões mais informadas do país, poderia gerar consternação e indignação, mas tinha pouco potencial de transformar o duro cotidiano daqueles trabalhadores. Era preciso, portanto, fazer a história chegar a quem interessa.

As repórteres responsáveis pela matéria, filhas de imigrantes e falantes de espanhol, se tornaram fluentes também em TikTok, a rede social que mais atingia as comunidades envolvidas no episódio. Elas participaram de programas de rádios locais, e a reportagem ganhou versões customizadas, como podcast e brochura. A divulgação do material também foi estudada para ampliar o alcance da história. Cartazes foram afixados em murais de recados de comércios.

Como escreveu a ProPublica em reportagem sobre o projeto, na dinâmica atual não dá para ficar esperando que os leitores cheguem sozinhos às histórias difíceis. Uma alternativa é só fazer aquilo que interessa à maioria, e nesse ponto o jornalismo começa a morrer.

Folha traduziu e deve divulgar sua reportagem entre grupos de imigrantes. "A desinformação sobre a inóspita região contribui para o enorme fluxo pela floresta. Vídeos em redes como o TikTok e o YouTube costumam mascarar a realidade, marcada por trilhas e rios perigosos, além de gangues armadas e de redes do narcotráfico", explica o jornal em texto sobre a iniciativa.

Sobram candidatos no índice da Folha que mereceriam essa divulgação dirigida. Um exemplo recente e eloquente é a reportagem sobre gravidez precoce em Autazes, no Amazonas, parte de outra oportuna série deste diário, que versa sobre direitos reprodutivos. Falta muita informação em inúmeros cantos do país, mas é de se duvidar de que a Folha e outros grandes veículos estejam conseguindo entregá-la a quem mais a aproveitaria.

obscurantismo que exala de Brasília, assembleias, templos, igrejas e de grupos de WhatsApp de escolas ou condomínios mostra que não.

LAVA JATO, 10

Na última quarta-feira (20), a Folha publicou, dentro de seu pacote-efeméride de dez anos da Lava Jato, uma aguardada reportagem sobre o papel da imprensa no episódio. O enunciado "Imprensa poupou Lava Jato, mas expôs irregularidades ao final, dizem especialistas" prenuncia autocrítica, mas se rende rápido a uma suposta ressurreição a partir da Vaza Jato. A Folha afirma que "manteve uma postura crítica em relação à força-tarefa". O que restou na retina de muitos leitores, porém, foi o contrário.

Fez falta o olhar severo que se percebe na cobertura atual dos atos golpistas. Faz falta uma verdadeira autocrítica: onde e quando o jornal errou. Vaza Jato era obrigação.


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