quarta-feira, 20 de março de 2024

Das arenas digitais vêm as forças que movem o moinho político hoje, Wilson Gomes, FSP

 Tem acontecido com muita frequência. A paisagem política institucional de um país, que se manteve constante por décadas, muda de um dia para a noite com o advento de uma nova força política. "Esta é a noite em que acabou o bipartidarismo em Portugal", anunciou o líder do Chega, André Ventura, repercutindo a mesma declaração de ruptura da velha ordem que se vem repetindo em toda parte desde 2016.

Daí decorrem os registros de inconformidade ou surpresa da maioria política não radical em sociedades de regimes democráticos. A que se seguem indagações sobre em que as democracias estão falhando e o que progressistas e liberais não conseguiram prever.

Estamos todos ainda tentando entender o que se passa com as democracias hoje, mas compartilho aqui a desconfiança de que nos habituamos por tempo demais a prestar atenção na dinâmica das forças políticas nos parlamentos e nos governos, negligenciando as arenas onde as pessoas discutem e se informam sobre política, como se nesses espaços apenas se refletisse o que acontece na política institucional. Cada vez mais se prova que o moinho político das democracias eleitorais não é movido pela estrutura lenta e convencional da política institucional, mas por representações, narrativas, imagens públicas, boatos, crenças e convicções, não importa se falsas ou verdadeiras.

Ilustrado em bico de pena preto e branco, um homem velho de longas barbas, ergue sobre sua cabeça dois grandes celulares unidos pela lateral, como uma alegoria de Moisés mostrando ao povo as tábuas da lei que Deus tinha acabado de lhe entregar. O homem veste óculos de sol e nos cristais, no do lado esquerdo o ícone do Facebook e no direito o ícone do WhatsApp. Nas telas dos celulares com um fundo avermelhado intenso em degradê, a silhueta de uma bandada de pássaros de rapina em cor branco para dar destaque. No fundo da ilustração a mesma bandada de pássaros de rapina, só que maior e desenhados em preto e, que variam de tamanho conforme a proximidade.
Charge de Ariel Severino para coluna de Wilson Gomes de 19 de março de 2024 - Ariel Severino/Folhapress

Nessa camada da política, aparentemente superficial, as forças podem ser organizadas de modo muito diferente. No Brasil, por exemplo, o lulismo, o bolsonarismo e o identitarismo são as três forças políticas que mais se fazem notar na esfera pública política. São as que mais falam e mais se fazem ouvir, são as que mais capturam as imaginações e mobilizam a energia das pessoas no debate público e na militância.

Já as casas legislativas e os governos se organizam a partir de outras linhas de força, visto que, por exemplo, o identitarismo jamais conseguiu traduzir em mandatos a vivacidade que demonstra no espaço público. Nem o fisiologismo, que explica a maior parte dos partidos, cargos e mandatos no país, ousaria se apresentar na esfera pública com um discurso patrimonialista, clientelista ou pró-corrupção que refletiria sua verdadeira natureza.

A superestrutura da política é um conjunto de arenas em que as pessoas discutem os assuntos de interesse público, se informam e constroem identidades políticas, associam-se ou dissociam-se com base em afinidades ou diferenças ideológicas ou em objetivos comuns, militam, dão uma forma discursiva aos seus interesses políticos. Não é um mero reflexo da política institucional, nem pode ser por ela ignorada, pois é daqui que surgem os votos, o apoio popular a causas, candidatos e partidos, os movimentos políticos que, em um repentino lance eleitoral, reconfiguram toda a política institucional.

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Subestimar a importância da esfera pública, particularmente na sua forma digital, é um erro grave. O identitarismo brasileiro, por exemplo, não tem força eleitoral para conquistar mandatos que sustentem suas enormes reivindicações, mas é hábil em impactar grupos com grande influência política. Além disso, contorna a própria incapacidade de conseguir representação através de uma conveniente simbiose com o lulismo que lhe permite não só disputar cargos no governo como também usar os mandatos do petismo como se fossem seus. Há inegável sagacidade nisso.

Isso não quer dizer que a política institucional possa ser ignorada. Partidos e políticos que surgem de ondas de indignação e fantasias na esfera pública podem ter um êxito eleitoral de curto alcance se não se institucionalizam rapidamente ou não conseguirem no próximo ciclo eleitoral dirigir o fluxo de sentimentos e sensações que movem a massa para votos, portanto, mandatos.

O segredo da resiliência do bolsonarismo, por exemplo, foi sua institucionalização em 2022, mesmo tendo Bolsonaro perdido a eleição presidencial. O bolsonarismo continua produtivo na esfera pública, usando para isso a energia gerada na fricção em moto contínuo com os arquirrivais identitários e lulistas, mas, ao mesmo tempo, produziu uma intensa conversão ideológica dos partidos fisiológicos tradicionais, atraiu para o seu campo os mandatos evangélicos, além de ter eleito figuras de proa do movimento social bolsonarista.

Hoje tem base na política institucional, vigor na esfera política digital e, ao contrário dos identitários de esquerda, consegue transformar indignação política em mandatos. Quem achava que era só uma bobagem do WhatsApp e do YouTube não devia estar prestando atenção.

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