Numa coluna publicada em meados de fevereiro no Libération, o filósofo italiano Emanuele Coccia fazia a crítica da virtude moral, mito cristão, em oposição à justiça e à democracia. Uma sociedade não precisa de santos, mas de justiça.
Por paranoia, talvez, vislumbrei nas entrelinhas dessa crítica à excepcionalidade individual, desse elogio do comum, um puxão de orelha à ideia de virtude e singularidade autoral, reduzida a mito burguês, correspondendo a um dos clichês mais surrados da sociologia e da filosofia política recentes. E por pouco não desisto de abrir seu livro sobre os anjos ("Hierarquia: a Sociedade dos Anjos"), cuja tradução francesa (Rivages, 2023) eu tinha acabado de comprar.
Emanuele Coccia é conhecido por livros sobre a vida das plantas e as metamorfoses. "Hierarquia" não chega a ser um livro em si; é uma coletânea de ensaios escritos com base nas pesquisas que o autor desenvolveu sobre os anjos nas tradições judaica, cristã e muçulmana, em colaboração com Giorgio Agamben, e que por anos hesitou em reunir. Para além das repetições, porém, há nesses textos algumas ideias maravilhosas.
A primeira diz respeito à ambiguidade na origem do cristianismo. Anjos e demônios são a mesma coisa. Ser anjo é exercer o poder divino. Vem daí a ideia de hierarquia ("poder sagrado", na etimologia grega). Os anjos podem cair, ser destituídos de suas funções quando deixam de obedecer a Deus, tornando-se demônios. Como num exército ou numa ordem eclesiástica, eles são o cargo que ocupam, as funções que exercem. São ao mesmo tempo soldados, burocratas e simulacros de Deus.
Daí se depreende também que ordem (poder) e natureza (criação) são coisas distintas. A ordem é submissão à palavra, ao mandamento que é interdição de ser. Anjos não são seres ontológicos, mas funcionais. São ordem e obediência, não natureza. Neles não é possível separar o bem do mal, pois tudo é função. Mesmo o demônio, em seu desejo de desafiar a criação e também tornar-se criador, não passa de um imitador.
A principal função dos anjos é promover a imitação do divino. Nada criam. O poder de Deus é absoluto, porque é criação. O dos anjos é um poder estéril, operador do conformismo. O burocrata é o sujeito submetido ao poder que ele próprio exerce.
Para que os homens possam escutar a palavra divina, todos têm de ouvir a mesma coisa. É função dos anjos virá-los na direção de Deus. "A imitação parece ser não somente o movimento pelo qual o poder de Deus se torna possível, mas também a força que permite unificar todo o mundo."
Além disso, a ambiguidade dos anjos serve para resolver um paradoxo na base da religião. É a segunda grande sacada de Coccia. Os anjos são os laranjas de Deus. Fazem o serviço sujo. São eles que, caídos, espalham pelo mundo o mal que faz a religião necessária.
Coccia se vale não apenas da Bíblia, mas de textos místicos alternativos, como o ciclo de Enoque (século 3 a.C.), banido pela tradição judaica, além de fontes do cristianismo primitivo do chamado período do Segundo Templo, destruído em 70 d.C. Recorre sobretudo a teólogos do cristianismo medieval, como Pseudo-Dionísio, o Areopagita, que cunhou o neologismo hierarquia: a angeologia como teoria do poder.
Coccia levanta a hipótese de que seria por oposição à figura ambígua dos anjos que o cristianismo vai buscar obsessivamente associar Deus a um ser. O messianismo e a trindade vão surgir como tentativas de substituir o estado volátil dos anjos pela representação direta da divindade encarnada em Cristo e o Espírito Santo assumindo o papel da transmissão, agora como essência.
Será uma batalha perdida. A própria existência da Igreja contradiz o messianismo que ela proclama. São os anjos os verdadeiros fundadores da Igreja, confundindo-se com ela: por não poderem representar Deus diretamente, põem-se no lugar dele, falam por ele, são por excelência a figura do poder.
A hierarquia é a sacralização do poder. De repente todo o mundo fala e impõe aos outros a mesma língua estéril da imitação. Mesmo onde e quando já não pode haver nenhum Deus, perpetua-se seu poder.
Coccia termina o principal ensaio do livro com a citação ilustrativa de uma parábola dos diários de Kafka: Entre ser rei ou mensageiro do rei, escolheram todos ser mensageiros. E como já não havia reis, eles correram o mundo, gritando uns aos outros mensagens absurdas. Podia até ser que quisessem pôr um termo a essa existência miserável, mas não ousavam, porque tinham prestado juramento de fidelidade.
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