domingo, 31 de março de 2024

Edição de Sábado: Condenados a repetir - MEIO

 Por Flávia Tavares

Em 1994, Carlos Fico era um aspirante a doutor em busca de uma tese. Atento ao fortalecimento ou nascimento de movimentos sociais, como o negro, o feminista, e o LGBTQIA+, o historiador começou a montar, com dificuldade, uma proposta para os contrapor a outra força social, o movimento operário. Seu orientador, o decano Carlos Guilherme Mota, não se comoveu com o projeto. Naquele mesmo ano, o historiador britânico Eric Hobsbawm lançava A Era dos Extremos. Fico ouviu uma entrevista — ou foi a uma conferência, não se lembra bem — com o lendário intelectual em que ele falava de otimismo e pessimismo e, mais precisamente, de seu espanto ao ver como os brasileiros estavam pessimistas depois da “década perdida”. Foi o estalo.

Fico se lembrou das propagandas ufanistas da ditadura militar, da promessa do país do futuro. Sugeriu a Mota uma tese sobre se aquela propaganda era ideologia ou imaginário social. Cobriria de 1969 a 1977. Convenceu o orientador. Inspirado, Fico foi além. Decidiu analisar o pessimismo e o otimismo na História do Brasil desde o século 16, e como isso foi usado pela propaganda dos militares. Trinta anos depois, Fico ainda se dedica a estudar a ditadura e o intervencionismo militar. E vê o livro derivado da tese, Reinventando o Otimismo, ser relançado para marcar os 60 anos do golpe de 1964.

O professor está pessimista. Está escrevendo um novo livro, A Utopia Autoritária Brasileira, e diz que será seu último. Quer entregar aos editores até julho. Está dedicado a escanear cada episódio de intervenção militar, da Proclamação da República ao 8 de Janeiro, e explicar por que não conseguimos sair dessa espiral. “Isso passa pela adesão ao mito da ‘história incruenta', de que não somos violentos, de que fazemos nossas transições sem derramamento de sangue. Não é verdade e é muito prejudicial para nossa História.”

Com a autoridade de ser um dos maiores especialistas em ditadura militar no país, Fico não se furta a rebater colegas. Refuta a noção de que o golpe em 1964 foi uma “batalha de telefonemas", promovida por Elio Gaspari. Contesta a ideia de que é possível se mudar a mentalidade golpista atualizando o currículo dos militares. “A única maneira de fazer isso é alterando o artigo 142 da Constituição. Militares são apegados às normas escritas.” E, com essa afirmação, discorda também de que o conceito de “militar legalista” seja ilusório.

Inicialmente, a reportagem procurou Fico para fazer uma reconstituição do que aconteceu entre os dias 31 de março e 2 de abril, quando se efetivou o golpe contra João Goulart, o Jango. Bem disposto e generoso, o professor passou, então, a fazer o que sabe de melhor e faz como titular de História do Brasil da Universidade Federal do Rio de Janeiro: dar uma aula. Fez isso em duas sessões de mais de uma hora cada. E começou derrubando a ideia da repórter de que o golpe se desencadeou a partir do dia 31 de março. “Não, foi no 28 de março.”

Cientes de que os interesses das leitoras e dos leitores podem ser fragmentados, dividimos a entrevista em duas partes. Na primeira, olhamos para os eventos de 1964. Na segunda, tratamos do presente, de como pensam os militares, das punições possíveis ao 8 de Janeiro e da decisão do presidente Lula de não marcar a efeméride. Com vocês, Carlos Fico.

PARTE I — O GOLPE DE 1964 E O MITO DA ‘HISTÓRIA INCRUENTA’

Como podemos delimitar o período do golpe militar em si? E qual foi a diferença da participação de civis e militares em cada fase anterior, da desestabilização de Jango e da conspiração do golpe?
Costumo marcar o período do golpe de fato começando no dia 28 de março, com a reunião no Aeroporto de Juiz de Fora, quando o governador Magalhães Pinto autorizou a movimentação de tropas. Não houve uma divisão entre civis e militares nas etapas do golpe. A iniciativa de desestabilização do governo de João Goulart se dá a partir do momento em que ele assume o poder, em 1961. Para fins didáticos, fala-se da preponderância da atuação de civis na campanha de desestabilização por conta do papel dos empresários. Mas os militares agiram, estavam interessadíssimos nisso, e hoje sabe-se do apoio do governo norte-americano, inclusive com recursos, a essa fase da desestabilização. O Departamento de Defesa dos Estados Unidos é militar. O entendimento das coisas vai evoluindo conforme se vão descobrindo novos documentos.

Que outras percepções sobre o golpe já mudaram?
Até alguns anos atrás, havia a convicção de que a fase da conspiração foi eminentemente militar e que ela seria desorganizada. Havia a expressão “ilhas de conspiração”, adotada por colegas da FGV. Nunca gostei disso, porque dava a impressão de uma coisa dispersa. Não foi assim. Embora os civis não tenham participado o tempo todo da conspiração, do plebiscito de 1963 até o golpe, a decisão de movimentar tropas teve a ação decisiva de Magalhães Pinto na tal reunião. Sem isso, não haveria golpe. E ele era civil. Existiu uma conjuminância de participações. A militar foi momentosa. Teve reunião no Nordeste, no Sul, no Sudeste. Mas isso ficava no plano da falação. O que decidiu mesmo foi o governador Magalhães Pinto autorizar os generais Olímpio Mourão Filho e [Carlos Luís] Guedes a começar a organizar as tropas. Ele sai da sua timidez, até por conta do apoio norte-americano — era o elo da operação Brother Sam — e autoriza o golpe.

Magalhães Pinto sai dessa reunião encarregado de fazer um manifesto. Acabou produzindo um texto bem menos duro do que o combinado. Por que?
Medo. Fica todo mundo com medo de dar golpe — como foi agora, no 8 de Janeiro. Exige coragem depor um presidente, movimentar tropas. É um ato inconstitucional, violento, dramático, pode morrer gente. Magalhães Pinto era um político da UDN, cauteloso, da tradição mineira de negociação. Convencê-lo a fazer isso só foi possível pela ação política de muitos personagens, inclusive do governo dos EUA. Mas também por sua ambição. Ele queria queria ser candidato à presidência em 1965 e, se possível, antes mesmo, com o golpe ou alguma balbúrdia. Era ele o personagem principal, foi ele que se dispôs a ser o chefe de um estado de beligerância de Minas. Quando chegou a hora H, titubeou. O manifesto demorou a sair e, quando saiu, não dizia claramente que iriam depor o presidente. Daí, Mourão Filho acabou fazendo ele próprio um manifesto.

Por que Magalhães Pinto foi o escolhido dos EUA como protagonista, se Carlos Lacerda e Adhemar de Barros, do Rio e de São Paulo, também eram conspiradores?
Carlos Lacerda não era um conspirador. Ele apoiaria e apoiou o golpe, mas ninguém conspirava com ele, porque ele era muito doido. Falava demais, não saberia guardar segredo. Nada foi combinado com Lacerda, pelo contrário. Justo ele, que havia sido golpista ao longo de todos os anos 1950. Já Adhemar de Barros era visto como corrupto pelos militares e também não conspirou. Ele apoiou o golpe menos por convicção ideológica doutrinária e mais por interesse eleitoral, porque ele também era candidatíssimo. Magalhães Pinto era uma pessoa confiável para os militares e para o governo norte-americano. Era o titular do tal “grande estado”. Esse era o plano de contingência dos EUA: um dos grandes estados brasileiros se declararia em estado de beligerância, de insurgência, contra o governo de João Goulart. Magalhães Pinto foi o escolhido e fez tudo direitinho.

De que maneira?
Nomeou um secretariado especial, Afonso Arinos à frente, para negociar no exterior o reconhecimento internacional ao estado de beligerância. Ele também tinha contatos com o então general Ulhôa Cintra, enteado do ex-presidente Eurico Gaspar Dutra e muito golpista. Cintra era afoito, vivia criando problema, estava na história brasileira de golpismos desde 1937, mas foi escolhido pelo Departamento de Defesa dos EUA para ser a ligação com Magalhães Pinto e com Humberto Castello Branco na operação Brother Sam.

Os militares tinham, na década de 1960, divisões internas importantes, com a presença de oficiais tachados de esquerdistas nas Forças. Como era o clima na caserna naquele momento?
Já tivemos 15 tentativas de intervenção militar relevantes na História do Brasil, oito com sucesso. Entre elas, um autogolpe e uma deposição de ditador. Estou escrevendo um livro sobre isso. Tudo foi feito por militares, desde a Proclamação da República até ontem, contando com a tentativa de 2023. O que distingue os militares entre si basicamente é a posição legalista, de defesa da legalidade constitucional, ou a posição golpista, por convicções doutrinárias e ideológicas ou por interesse material, como “boquinhas”, sinecuras e prebendas. Há ainda aqueles que não se envolvem, ficam na moita para ver aonde é que a coisa vai caminhar. Sempre foi e continua sendo assim. Antes de entrarmos nisso, poderíamos distinguir ainda a presença e a atuação de militares que, em 1937, eram conhecidos como getulistas.

Qual era sua visão?
Eles apoiavam aquele projeto de Getúlio Vargas de algum favorecimento dos trabalhadores em relação à legislação social e trabalhista. Não que fossem de esquerda, ou muito menos comunistas. Tinham simpatia político-ideológica por essa afirmação de um nacionalismo com viés trabalhista e estatizante. Alguns desses militares getulistas acabaram punidos pós-Estado Novo, assim como em 1964 seriam punidos os não golpistas. Logo depois do golpe, constitui-se o chamado Comando Supremo da Revolução, que aplicou as primeiras punições “revolucionárias”, e o maior número de atingidos foi de militares. Foram 184 contra 169 civis. Eles foram punidos com passagem obrigatória para a reserva. Suas carreiras acabaram. Eram militares associados, por convicção ideológica, a João Goulart, ou aqueles que se posicionaram pela legalidade e não aderiram ao golpe. Ninguém era comunista ou de esquerda.

Foi essa confusão que pode ter levado Jango a superestimar a força do seu “dispositivo militar"?
Não, essa é uma interpretação pejorativa que a literatura mais conservadora, abraçada por alguns historiadores, faz para depreciar a imagem de Jango. Aliás, ele nunca foi bem visto por setores da esquerda, que o achavam covarde por não ter resistido ao golpe ou sequer ao pronunciamento militar de 1961 que levou ao parlamentarismo. Leonel Brizola, por exemplo, queria que Jango liderasse tropas, marchando sobre Brasília, para impor a sua posse no presidencialismo. Aqueles que o viam como covarde gostam de reproduzir essa leitura pejorativa de que ele era um tolo porque acreditou na promessa do general Assis Brasil de que havia um “dispositivo militar” muito poderoso a seu favor. Mas a verdade é que Goulart percebeu, principalmente depois de seu comício na Central, no dia 13 de março, que seu governo não ia terminar.

O que te dá essa certeza?
Uma série de iniciativas que ele toma a partir dali. Todas muito atabalhoadas. Pode parecer que era inabilidade. Mas acho que era ele “chutando o pau da barraca”, no termo popular, por estar desejoso de emular seu padrinho político, Getúlio, em 1945. Getúlio foi deposto por militares — os mesmos que o entronizaram em 1937 — e o que aconteceu com ele? Nada. Não foi punido, não teve direito político cassado, pegou um aviãozinho e foi para São Borja. Ficou lá quieto por cinco anos. Depois, voltou e foi eleito presidente da República. João Goulart tinha extrema familiaridade com esse evento específico, porque se tornou próximo de Getúlio lá no autoexílio. Ele pode ter pensado em voltar a se candidatar em 1970, por exemplo. Jango sabia que era extremamente popular em 1964, apesar de tudo que a imprensa noticiava e de todos os discursos contra ele. Hoje se sabe disso e se pode realmente confirmar essa popularidade pela pesquisa do Ibope que permaneceu décadas secreta.

Há quem diga que, ao desafiar a hierarquia militar, Jango precipitou o golpe. Mas Mourão Filho também não quebrou a hierarquia ao mover as tropas sem a permissão do general Castello Branco?
Mourão Filho quebra a hierarquia em relação ao presidente. Durante uma iniciativa golpista, evidentemente, se tem a ruptura da legalidade constitucional. É isso que caracteriza um golpe. Ele tomou essa iniciativa de ruptura, e era tido como uma pessoa meio amalucada, intempestiva. O combinado era que o golpe seria mais adiante, talvez no dia 2 de abril. Há uma controvérsia sobre isso, ninguém sabe ao certo, embora alguns afirmem claramente que seria no dia tal. Mas certamente não seria no dia 31. Essa iniciativa do Mourão Filho foi vista como preocupante pelo Castello Branco e pelo Costa e Silva, que tentam convencê-lo a voltar atrás. Não dá nada certo, o golpe se efetiva.

Quais foram as medidas “atabalhoadas” de Jango?
Elas começam em 1963, com a maneira como ele se relacionou com a Revolta dos Sargentos. Mas há dois casos mais graves. Um foi o pedido de estado de sítio, em que realmente ele meteu os pés pelas mãos. Esse pedido decorreu de uma entrevista do Carlos Lacerda a um jornal norte-americano, em que ele dizia algo como “esse governo não vai terminar”. João Goulart teve essa reação completamente despropositada, que gerou muita suspeita, e teve de voltar atrás. Isso o fragilizou muito.

E o outro?
O outro foi dois dias depois do comício da Central, em que ele assume a proposta do Brizola de fazer um plebiscito para ver se o povo queria as reformas de base. Ele manda isso na mensagem presidencial na abertura dos trabalhos legislativos, no dia 15 de março, e passa a impressão de estar querendo superar o Congresso Nacional, o que foi visto como uma iniciativa autoritária ou de confrontação. A direita, obviamente, viu o estado de sítio e o plebiscito como iniciativas golpistas. Nem uma nem outra pode ser formalmente caracterizada assim. Mas é claro que, do ponto de vista político, pode, pôde e foi. E isso foi utilizado pela direita, pelos conservadores e pelos militares como justificativa para o golpe em associação a essa tese da quebra da hierarquia e da disciplina, que surgiu fortemente na Revolta dos Sargentos e na dos Marinheiros.

E então vem o discurso no Automóvel Clube, no dia 30.
Exato, e aí vemos claramente o que estou chamando de “chutar o pau da barraca”. Contra absolutamente todos seus conselheiros, Jango decide ir a um evento de oficiais de patentes inferiores numa associação da Polícia Militar do Rio de Janeiro, então Guanabara, que sempre foi o que é ainda hoje — uma coisa vista como completamente desclassificada, com gente violenta. e tal então ir a uma festa de subtenentes da Polícia Militar. Foi uma coisa muito negativa e gerou na reação do Mourão Filho essa precipitação de algo que já aconteceria.

Com o golpe em marcha, o que se passou nas ruas? Ou o golpe foi uma “batalha de telefonemas”, como sugere Elio Gaspari em ‘A Ditadura Envergonhada’?
Veja, quando um governador se associa a um governo estrangeiro, cometendo um crime de traição da pátria — sim, Magalhães Pinto é um traidor da pátria assim como os generais sediciosos —, e na madrugada do dia 31 Mourão Filho começa a movimentar tropas, sendo que antes o general Guedes já havia fechado as fronteiras de Minas, numa iniciativa de alta violência contra o presidente da República, que nessa estratégia podia ser preso ou morto, isso não tem graça. Não é uma coisa engraçadinha, para se fazer piada, dizendo “ah, no Brasil é tudo assim, foi um combate por telefone”. Eu admiro muito o Gaspari, mas acho que nessa passagem ele foi infeliz. Do ponto de vista histórico, não só porque houve violência, mas também teve a prisão de centenas de pessoas. Foi preciso usar navios para os presos, já não havia mais espaço nos quartéis. Também houve algumas mortes, ouve tortura, prisões arbitrárias no Brasil inteiro. Tudo isso é violentíssimo.

De onde vem a percepção de alguns de que foi um golpe sem violência, então?
Essa é uma visão irônica, baseada na retórica recorrente no Brasil de que nós somos assim, meio palhaços, engraçadões, bem expressa naquela frase Infeliz atribuída a Tom Jobim de que o Brasil não é para amadores. É como se tivéssemos essa característica específica de sermos tão incompreensíveis porque somos, afinal, um povo singular. Tudo isso é uma mitologia que me parece das piores coisas que existem na tradição intelectual historiográfica brasileira, assumida integralmente pela imprensa. É muito condenável essa visão jocosa, porque ela não traduz a seriedade dos problemas, dos fenômenos, dos processos históricos brasileiros, como é a violência do intervencionismo militar. E o pior de tudo é a adesão ao mito da “história incruenta”. Quando se fala que somos engraçadinhos, que tudo termina em pizza, que foi uma “batalha de telefonemas”, ou uma batalha de Itararé. Essa última, inclusive, foi uma das coisas mais violentas da história do Brasil.

O que é o mito da “história incruenta”?
É essa noção de que somos um povo singular cujas transformações vieram sem brutalidade, sem derramamento de sangue. Um dos tópicos que desenvolvo no meu novo livro sobre a utopia autoritária brasileira é exatamente o quanto isso é prejudicial para o Brasil. O quanto o ideal, bíblico inclusive, de não derramar o sangue generoso dos brasileiros é recorrente na tradição e é o que explica, entre outras coisas, a atitude de João Goulart de não autorizar uma reação à iniciativa golpista. Isso tem raízes muito profundas no imaginário, na história política brasileira. Essa sucessão de intervenções militares, baseadas sempre numa licença constitucional, hoje representada no artigo 142, e fundamentadas por isso que eu chamo, como hipótese teórica, de utopia autoritária tem no elemento do mito da história incruenta um dos seus aspectos fundamentais. É por isso que sou tão pessimista em relação ao nosso país.

PARTE II — O ÚNICO CAMINHO POSSÍVEL

Não há perspectiva de mudança? O senhor já declarou que alterar o artigo 142 da Constituição seria um caminho.
É a única coisa que é possível fazer. Evidentemente, quem detém a força das armas, o uso legal da violência, pode fazer o que quiser, em tese. O que impede que os militares façam barbaridades, intervenções políticas, em outros países? Houve a invasão do Capitólio e os militares norte-americanos não apoiaram aquela maluquice do ex-presidente Trump. Não vemos por aí esse tipo de intervencionismo militar que persiste no Brasil. O que o impede é uma equação de natureza simbólica, que vai se assentando, se consolidando na tradição política desses países. E ela é simbólica porque não há outra maneira. Mas ela se consolida como algo certo, ético, moralmente defensável e democrático: que os militares não intervenham nos assuntos políticos domésticos. É uma coisa que depende dessa pedagogia democrática.

Por que essa pedagogia nunca foi exercitada no Brasil?
Porque desde a proclamação da República, por diversas razões, existe essa atribuição excessiva na Constituição aos militares. E não é o que muitos analistas comentam, no sentido de que desde a primeira Constituição, de 1891, os militares brasileiros têm a tarefa policial de manutenção da lei e da ordem e essa seria uma tarefa eminentemente policial. Vários colegas dizem que isso é um absurdo. Eu não acho. Em situações mais graves ou de incompetência da polícia, é admissível que as forças atuem na garantia da lei e da ordem. O artigo 142 tem um bom equacionamento nesse aspecto, porque na Constituinte de 1988 alguns parlamentares como Afonso Arinos, Fernando Henrique e outros, introduziram uma condicionante. Ou seja, os militares podem garantir a lei e a ordem desde que por iniciativa de um dos poderes constitucionais. Minha crítica é outra.

Qual seja?
É que é atribuída às Forças Armadas justamente a garantia dos poderes constitucionais. Isso está desde sempre nas nossas constituições, desde o artigo 14 da Constituição 1891 ao 142 da de 1988. Muitos colegas dizem que precisamos mudar o currículo das escolas militares. Isso é inútil. A transmissão e a perenidade dessa interpretação equivocada de que os militares têm a incumbência constitucional de zelar pela sociedade, numa espécie de tutela, que reproduziu o velho poder moderador do Império, não decorrem do ensino militar. Decorrem da ambiência na caserna, nos quartéis. A reprodução dessa interpretação ocorre dessa maneira pelo próprio ambiente da vida militar. Existem estudos antropológicos que mostram como é que se dá essa convivência. Os militares têm uma especificidade: há um certo distanciamento ou uma autonomia em relação à sociedade.

Como assim?
A vida deles é muito peculiar. Com suas famílias, eles podem estar hoje no Rio, amanhã vão para Belém do Pará. Os laços não necessariamente têm a ver com os vínculos ideológicos, mas se fundamentam em laços de solidariedade, admiração, respeito, acatamento diante de uma missão militar. É uma coisa muito própria e é nesse ambiente, que extrapola muito o ensino formal militar, que se dá a reprodução dessa mentalidade. Então, não adianta mudar. Imagina chegar algum professor numa escola militar dizendo “olha, vocês estão enganados, não foi uma revolução, foi um golpe.”

Outra crítica comum à mudança do artigo 142 é que um militar golpista não estará preocupado com o que diz a lei.
Sim, muitos colegas argumentam isso. Mas não é assim. Nessa “psicologia militar” existe um componente fundamental, que eu mostro no novo livro, e que se reproduz historicamente em todos os episódios de intervencionismo: o da observância da juridicidade dos manuais, dos regulamentos. Quando o general Dutra resolveu, em 1937, dar o golpe militar que instaurou o Estado Novo, ele pediu ao presidente Getúlio Vargas que fizesse uma legislação, que no caso foi o estado de emergência. Assim também foi com Costa e Silva em 1964. Antes de fazer as punições, ele pediu aos militares uma lei. Essa percepção da necessidade de observância das normas escritas é muito importante para eles. Do regulamento disciplinar e sobretudo da Constituição, que eles interpretam de maneira equivocada. Por isso, seria um gesto simbólico enormemente importante que a sociedade brasileira fizesse claramente, por meio de uma Emenda Constitucional, a alteração do artigo 142.

Seria parte dessa pedagogia simbólica a punição dos militares golpistas de 2022 e do 8 de Janeiro?
Sobre a possibilidade de julgamento pelo Superior Tribunal Militar, caso haja condenação por mais de dois anos na órbita da justiça civil, do Supremo Tribunal Federal, note que esse julgamento seria moral. Ou seja, se condenados no STM, vem a declaração de indignidade e/ou de incompatibilidade com a oficialidade. O oficial se torna indigno do oficialato ou incompatível com ele, ou ambos. Isso vai acontecer necessariamente se algum desses oficiais for julgado pelo STF e condenado a pena superior a dois anos. Se for inferior, há outro procedimento de natureza administrativa. Mas perceba que eles seriam julgados dessa maneira, um julgamento moral literalmente, em que o STM não vai rever se houve tentativa de golpe. Vai dar um parecer de natureza moral, com base na convicção dos ministros se os oficiais são incompatíveis e/ou indignos. Isso implica na perda da patente. Ele deixa de ser militar, é demitido e perde as condecorações, se as tiver.

Vamos ver isso acontecer?
Não sei. Mas de uma coisa tenho certeza: esse tipo de julgamento tem um sentido muito mais importante para esses oficiais do que uma eventual punição. Isso é uma espécie de declaração pública, da justiça militar, de que as Forças Armadas vão se manter sempre em observância de certos princípios básicos da vida militar, o pundonor, a honra, a ética, a moralidade, o cumprimento do dever, da hierarquia e da disciplina. Um oficial jamais pode se contrapor a esses princípios. E a questão da missões militares. A indignidade diz respeito aos princípios. A incompatibilidade, às missões.

Por que isso é mais importante?
Esse tipo de julgamento é muito mais grave do que perder uma guerra. Você pode perder uma guerra e continuar digno, ético, moral e capacitado, porque teve causas plausíveis para a derrota. Militar adora relatar seus episódios de conflito e eu li todos. Eles fazem atas de rendição e os militares derrotados são tratados com dignidade. Veja como isso é importante. Só que no Brasil, a sociedade ignora os militares, e o Congresso Nacional não os conhece nem remotamente. Não se sabe nada a respeito da vida dos militares. Por isso, temos uma relação tão ruim com eles. Além de mudar o artigo 142, deveríamos ter no Congresso Nacional parlamentares e comissões mais competentes no conhecimento da vida militar.

Essa punição seria inédita?
Seria inédita no sentido de funcionar como uma pedagogia de dentro da própria instituição militar, mostrando que as Forças Armadas estão fiéis a seus princípios e expulsando suas “ovelhas negras”. Mas é também uma pedagogia da sociedade pelo ineditismo. Há vários julgamentos de indignidade e incompatibilidade ao longo dos anos, mas com coronéis, tenentes-coronéis, capitães. Agora, com general, não me lembro de ter havido. Então, seria a sociedade, o STF, levando a esse resultado.

Seria inédito também julgar por golpismo ou já houve julgamentos por tentativas de golpe?
Não, por tentativa de golpe, nunca. O julgamento de militares golpistas tem algumas especificidades. Na lista de episódios de intervencionismo, tem casos os mais diversos. Por exemplo, em 1922, quando houve aquela famosa história dos Dezoito do Forte, aquilo foi uma tentativa de golpe contra o presidente Epitácio Pessoa e contra a posse do presidente eleito, Arthur Bernardes. Foi um negócio totalmente fracassado, deu erradíssimo, e esteve envolvido o ex-presidente Hermes da Fonseca, um marechal. Ele foi preso por 24 horas. Epitácio Pessoa mandou prendê-lo num ato meio estranho, de ofício. Hoje, isso é proibido pela Constituição e por isso tem a justiça militar. Em 1904, durante a Revolta da Vacina, houve uma tentativa de golpe de Estado que também deu muito errado. O principal general morreu no confronto militar. Outros militares envolvidos não sofreram nada.

Normalmente, o que acontece é uma anistia, certo?
Sim, existe na sociedade brasileira uma tradição de anistia. Isso aconteceu em vários casos, os dois mais famosos são de golpes tentados contra Juscelino Kubitschek, em 1956 em 1959, os de Jacareacanga e Aragarças. Também fracassaram completamente, foram tentativas bobas, embora difíceis, porque envolveram sequestros de avião. JK anistiou os militares golpistas rapidamente, até para sair como magnânimo. Agora, quando é um golpe vitorioso, não há que se falar em julgamento. Seremos todos que fomos contra presos.

E quando acaba a ditadura, o governo militar?
Tem aquele livro famoso, Como as Democracias Morrem. Seria bom ver como as ditaduras morrem também. O fim da ditadura de 1945 foi por meio da deposição de Getúlio. O que se faz com um ditador deposto? Houve um debate tremendo à época. Foi um golpe de Estado? Bem, foi uma deposição pela força das armas. O Palácio Guanabara foi cercado pelos generais Dutra e Góes Monteiro. Getúlio fez sua malinha e foi embora. Ele não foi punido. Mas não foi um golpe de Estado, porque ele era um ditador. Foi legal? O fim da ditadura do Estado Novo sob a tutela e a diretriz das Forças Armadas foi uma coisa interessante para o Brasil? Aí já fica complicado. Não foi nem um golpe nem uma ação que enalteceu as instituições democráticas. Da mesma forma, o fim da ditadura em 1985.

Da mesma forma?
Sim, ali também foi um negócio esquisito. A maneira como foi feita a transição da ditadura militar não enalteceu as instituições democráticas. Alguns colegas meus dizem: “Ah, mas teve Diretas Já, teve a sociedade civil se manifestando, pressionando”. Isso não conta, porque o que houve mesmo foi um projeto militar bem-sucedido de transição da ditadura militar para a democracia, nos termos dos próprios militares e com anistia para eles. Foi uma transição de 11 anos. O fim das ditaduras fala muito sobre a consistência das instituições democráticas. E o fim das nossas duas ditaduras se deu por decisão militar e não por uma pressão das instituições. Claro que isso é uma posição minoritária minha. A quase totalidade dos meus colegas acha que isso que eu estou falando é um absurdo. Questionam se eu acredito que a sociedade civil não tem importância. Mas eu tenho essa discordância com eles.

Essa transição tutelada é a razão de estarmos hoje, seis décadas depois, com um governo mais à esquerda que não quer fazer solenidades e marcar a efeméride? Como o senhor interpreta isso e a fala de Lula sobre não “remoer o passado”?
Parece que essa decisão de não fazer cerimônias decorreu de uma iniciativa do ministro Silvio de Almeida, dos Direitos Humanos e Cidadania, que teria sugerido aos colegas ministros que promovessem pedidos de desculpa em eventos que marcassem os 60 anos do golpe. Isso é uma coisa bem típica do ambiente dos movimentos de defesa dos Direitos Humanos e da justiça de transição: depois de eventos traumáticos, muitos chefes de Estado, já na fase democrática, claro, ou os responsáveis por determinados órgãos se dirigem à sociedade simbolicamente e pedem desculpas. Na conjuntura atual, a sugestão do ministro teria pegado muito mal no ambiente militar. E me parece realmente uma iniciativa um pouco infeliz. O Ministério dos Direitos Humanos poderia fazer muitas coisas em relação aos 60 anos do golpe como o próprio Museu da Memória. Poderia apoiar a digitalização de documentos, montar um portal para divulgar aquelas 10 mil horas de gravações de julgamentos do STM durante a ditadura. Poderia mudar nomes de instalações federais que ainda homenageiam agentes da repressão.

Mas não seria bom e produtivo o pedido de desculpas?
O pedido de desculpas tem uma carga moral e de reconhecimento de culpa que as Forças Armadas Brasileiras deveriam mesmo fazer. Sempre falei isso. Elas nunca pediram desculpas pelo que aconteceu. O próprio Estado brasileiro já pediu. Agora, neste momento, diante das circunstâncias todas, talvez tenha sido um pedido um pouco fora de hora. E parece que foi isso que causou a orientação do presidente Lula. Se foi assim, acho a diretriz de Lula infeliz, obscurantista, antiacadêmica e excessiva. Ele poderia resolver internamente, já que foi uma bateção de cabeça entre ministros. Mas a diretriz inicial do governo Lula, de fazer uma política de conciliação, eu lamento, mas entendo. Lamento porque é péssimo que não se enfrente o problema militar. Entendo porque é um governo politicamente frágil, que foi eleito com pequena margem de votos e o Congresso Nacional é extremamente conservador.

Como é difícil apaziguar e civilizar os militares brasileiros.
Nem com armamentos, recursos, submarinos. O único caminho é o de fazer uma afirmação simbólica forte da sociedade. Isso só vai acontecer, se acontecer, quando a maioria do Congresso fizer uma Emenda Constitucional e tiver o apoio do presidente da República e da sociedade. E eu acho que isso vai demorar.



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