segunda-feira, 25 de março de 2024

DA CASCA AO TALO Por Adriano Oliveira, MEIO

 A Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) estima que um terço da produção global de alimentos seja desperdiçada todos os anos, sendo o Brasil um dos dez países que mais jogam comida fora. Em 2019, foram jogados quase um bilhão de toneladas de comida no lixo pelo planeta, enquanto 690 milhões de pessoas estavam subnutridas, segundo um relatório do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA). Só no Brasil, são 27 milhões de toneladas desperdiçadas anualmente, uma média de 60 quilos por consumidor, enquanto 33 milhões de pessoas passam fome e 70,3 milhões passam por insegurança alimentar. Entre os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da Agenda 2023, da ONU, a meta 12.3 é de reduzir pela metade o desperdício global de alimentos per capita até 2030.

Segundo a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), 50% do desperdício de alimentos no país ocorre no manuseio e transporte; 30% em comercialização e abastecimento; 10% ocorre na colheita; e outros 10% em restaurantes, supermercados e consumidores em casa. Cecília Lume, nutricionista especialista em comportamento alimentar e nutrição clínica, explica que cada alimento tem uma indicação de umidade e temperatura adequada para armazenamento e transporte. Ela ressalta a necessidade de uma fiscalização eficiente do transporte dos produtos a fim de reduzir o desperdício. “Se o alface, que precisa de uma condição específica, é transportado com outro alimento que precisa de outra condição, a gente pode ter uma perda do produto.”

Pode parecer apenas um problema alimentar. Mas poupar alimentos é salvar uma cadeia natural do meio ambiente. Reduzir o desperdício é conter as áreas de desmate para o plantio, que diminui o consumo de água na irrigação, o que também representa uma redução nas emissões de poluentes na atmosfera que causam o aquecimento global.

A necessidade do reaproveitamento integral dos alimentos faz com que iniciativas de diferentes partes do planeta surjam para evitar o desperdício. Nos Estados Unidos, quase 40% de todos os alimentos cultivados anualmente não são vendidos ou consumidos, deixando a mesma pegada de carbono que toda a indústria da aviação americana. Para reverter esse quadro, cresce o número de startups que oferecem produtos criados a partir de alimentos que seriam descartados pela indústria. Esse mercado foi avaliado em US$ 53,7 bilhões em 2021 e estima-se que chegue a US$ 97 bilhões em 2031, segundo a Allied Market Research. No Brasil, ONGs e startups sociais se unem para conectar alimentos saudáveis a pessoas que têm fome.

Tem quem queira

A ideia de criar a startup social Comida Invisível surgiu quando Daniela Leite e seu filho Pedro queriam fazer geleia e foram até o Ceagesp, em São Paulo, comprar frutas orgânicas. Eles se indignaram com as pilhas de mamão, abacaxi e tomate jogadas ao lado dos boxes. “Eram alimentos que a gente certamente poderia ter em casa, mas, por estarem em ponto de mesa, tinham perdido o valor comercial”, explica a CEO.

O Comida Invisível atua por meio de uma plataforma tecnológica, conectando por geolocalização empresas, indústria alimentícia, redes de hotéis, supermercados, restaurantes e hospitais com ONGs que atuam com pessoas em situação de vulnerabilidade social. A plataforma cadastra as doações recebidas nos locais coletados e conecta as ONGs próximas para combinar o horário e local de retirada dos alimentos doados. A startup ainda oferece auditoria sanitária às organizações para garantir a qualidade dos alimentos oferecidos e um relatório online em tempo real aos doadores com o impacto social e ambiental gerado pela destinação dos produtos.

Em Nerópolis (GO), a instituição está construindo as bases do primeiro município sem desperdício de alimentos do Brasil. “Nesse local, a gente faz um mapeamento em profundidade das pessoas em situação de vulnerabilidade social, entendendo os saberes dessa população, faz uma conexão com a Secretaria de Educação da cidade, para a gente levar aulas de combate ao desperdício para o currículo das escolas municipais, estaduais e particulares, além do mapeamento do campo para trazer os alimentos”, explica Leite.

“É uma cidade de 30 mil habitantes onde, anualmente, nós falamos praticamente com todos, desde supermercados, campo, indústria, toda a cidade engajada para virar essa referência mesmo”, comenta Rafa Myga, sócio do Comida Invisível e presidente do instituto fundado pela startup. Segundo a organização, em um ano de projeto, 30% das famílias em vulnerabilidade social no município passaram a receber alimentos com recorrência.

No Lollapalooza, que começou nesta sexta-feira e vai até amanhã, eles vão fazer o mesmo que fizeram no The Town, que é o encaminhamento correto do que sobra da operação do McDonald's. Daniela ressalta a segurança sanitária do procedimento ao lembrar das diversas visitas sanitárias durante o festival. “Sempre foi tudo tranquilo, porque realmente a gente cuida muito do processo para que o alimento chegue na ONG com total segurança e condições de uso.”

Segurança em primeiro lugar

Daniela Leite garante que não há nenhum risco algum no consumo dos alimentos oferecidos pela plataforma. “Até porque trabalhamos com grandes marcas. Eu não quero que tenha abalo [de imagem] nem para o Comida Invisível nem para uma Ambev, um McDonalds, uma Kraft Heinz, que usam a gente para fazer essas doações.” Rafa Myga ainda explica que a startup tem uma parceria com nutricionistas espalhados pelo país que fazem vistorias nas ONGs para garantir a segurança dos produtos, além de oferecer treinamento para as organizações.

A nutricionista Cecília Lume afirma que o consumo de alimentos por essas iniciativas são seguras, porque organizações como Banco de Alimentos, o programa Mesa Brasil Sesc e o próprio Comida Invisível fazem a manipulação dos alimentos para que cheguem seguros nas instituições previamente cadastradas. “A segurança vai ser feita com base nas boas práticas de higiene dentro dessas cozinhas [das organizações e startups] para poder chegar nessas instituições [ONGs] seguras para consumo”, explica. “Então precisa ter nutricionistas, técnicos, ou profissionais capacitados para poder avaliar esses produtos, ver se realmente eles podem ser consumidos e depois fazer esse processamento para que ele chegue seguro até as instituições.”

Lição de casa

Em que pese a parcela do desperdício nas cadeias de produção e distribuição, cada pessoa também pode contribuir com a redução do descarte de alimentos. Para Rafa Myga, “todos nós desperdiçamos dentro de casa ou no próprio supermercado, porque não queremos pegar a cenoura que está com a perna torta, queremos a bonita”.

Cecília Lume explica que as pessoas podem colaborar evitando o desperdício e se conscientizando das partes dos alimentos que podem ser utilizadas, não só por reduzir o lixo, mas pela absorção nutritiva. “Dependendo do alimento, essas partes que não temos o hábito de utilizar contêm teor nutricional muito bom, com minerais, fibras, vitaminas que estão presentes nas cascas ou nas folhas.” A folha da cenoura, por exemplo, é rica em ferro e cálcio. O mesmo ocorre com a casca da maçã, que é rica em pectina, uma fibra, que pode ajudar no controle glicêmico no momento da ingestão da fruta.

Ela sugere inserir essas novas partes em pratos que já estão consolidados na alimentação diária. “Picar essas folhas e colocar no meio do arroz e ir inserindo em preparações que já são comuns à família, para não criar uma alimentação totalmente diferente, é uma forma de conseguir reduzir o desperdício. A cozinha é uma grande aliada nesse processo.” A nutricionista lembra que muitas vezes os próprios supermercados já retiraram as folhas e cascas dos produtos. Uma alternativa pode ser procurar uma feira, que geralmente vende os alimentos inteiros.

Há muitas alternativas para aproveitar ao máximo os alimentos, da casca ao talo. O Mesa Brasil Sesc oferece ações educativas, ensinando receitas práticas e nutritivas para aproveitar os ingredientes mais básicos do dia a dia, sem desperdícios. Eles oferecem um livro de receitas que mostra como fazer de cocada com cascas de melão a croquete de batata-doce e nhoque de banana, que pode ser baixado aqui. Bom apetite!



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