Julita Lemgruber
O recurso extraordinário 635.659, em análise desde 2015 pelo Supremo Tribunal Federal, versa sobre a inconstitucionalidade da criminalização do porte de drogas. A maioria do STF caminha para fixar parâmetros objetivos de quantidades, apenas de maconha, para orientar o sistema de justiça criminal na diferenciação entre usuários e traficantes.
Em reação ao andamento do processo, setores do Congresso Nacional se mobilizam em torno de uma proposta de emenda constitucional que criminaliza com pena de prisão todo e qualquer porte de droga ilícita, independentemente da quantidade.
Quem fomenta o pânico moral antidrogas cultiva a falácia de que as drogas ilícitas são proibidas por serem malignas, enquanto as drogas lícitas são pouco danosas ou mesmo benéficas. Essas mesmas pessoas frequentemente usam e abusam das substâncias encontradas nos bares, supermercados e —pasmem— drogarias.
Na verdade, a proibição de certas drogas é anticientífica e ineficaz. Trata-se de uma escolha essencialmente política, que não reduz nem oferta nem consumo, mas produz múltiplas violências.
Historicamente, o proibicionismo se vincula ao racismo e aos preconceitos morais. Ao empurrar para a clandestinidade um mercado consumidor que sempre existiu na sociedade humana, a proibição fez das drogas ilícitas a moeda comum para todos os tipos de crimes, do tráfico de armas ao garimpo ilegal.
Ao mesmo tempo, a proibição transformou o Estado numa máquina de prender, matar e faccionar jovens negros periféricos. Sem critérios objetivos para diferenciar consumidores de traficantes, a Lei de Drogas (11.343/2006) aprofundou estereótipos e agravou a criminalização seletiva da juventude negra, aumentando seu encarceramento. Entre os réus processados por tráfico, 68% são negros, 72% têm até 30 anos e 67% não concluíram o ensino básico. O porte de armas e munições ocorre em menos de 20% das prisões por drogas; em apenas 13% dos casos há indícios de envolvimento prévio com organizações criminosas, indicando que o recrutamento para facções acontece em presídios superlotados (Ipea/2023).
Em outras palavras, é o superencarceramento de jovens que alimenta as fileiras do crime. Hoje, o Brasil tem a terceira maior população carcerária do mundo, com mais de 800 mil pessoas presas. Estão tentando apagar incêndio com gasolina.
Em nome da guerra às drogas, o Estado brasileiro a cada ano criminaliza, persegue, processa, encarcera e mata dezenas de milhares de pessoas. Além disso, corrompe agentes públicos para favorecer esse comércio ilícito, infiltrando o Estado de forma perigosa. Para piorar, torna o sistema de justiça criminal caro e burocrático, drenando recursos necessários a serviços públicos essenciais.
A pesquisa "Um tiro no pé", realizada pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC), detalhou os custos da proibição para 14 instituições da Justiça criminal. Em 2017, o Rio gastou mais de R$ 1 bilhão, e São Paulo, R$ 4,2 bilhões para guerrear contra o varejo do tráfico em favelas e periferias. Somados, os valores proveriam renda básica para cerca de 728 mil famílias por ano.
"Tiros no futuro" analisou como as constantes operações policiais nas áreas pobres do Rio de Janeiro prejudicam o desempenho dos estudantes e "Saúde na Linha de Tiro" mediu os efeitos devastadores dessas operações no atendimento e na saúde dos moradores.
Os estudos demonstram que seria irresponsável a aprovação da PEC que tramita no Senado Federal. Mais que um tiro no pé, a PEC antidrogas representa um verdadeiro tiro na cara da sociedade brasileira, um retrocesso atroz que vai promover a prisão de usuários, o superencarceramento de jovens e o fortalecimento das facções. Descriminalizar o uso das drogas hoje ilícitas e regulamentar o acesso adulto e medicinal é o caminho correto para desarmar a bomba-relógio social que a proibição armou, promovendo o cuidado em liberdade para pessoas com uso problemático de substâncias. O resto é demagogia, racismo e sadismo.
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