quarta-feira, 20 de março de 2024

O civilista, MEIO POLÍTICO

 Por Pedro Doria

Quando Ruy Barbosa chegou à Câmara Municipal de Salvador, no princípio da tarde de 19 de janeiro, em 1910, estava mexido. Carregava uma tristeza em si. Ainda assim é possível imaginá-lo sorrindo quando viu a Praça Tomé de Souza, onde só décadas depois seria erguido o Elevador Lacerda, lotada de pessoas. Uma multidão que gritava seu nome. Ele era um homem baixo — menos de 1m60 —, muito magro — mal chegava aos 60kg —, sua coluna meio curvada à frente. O que o marcava, fazia dele alguém que os brasileiros reconheciam de longe e com o qual caricaturistas diversos se divertiram muito, era o bigode espesso, já muito branco àquela altura, ondulado, que quase ultrapassava o rosto. Mas era um pop star como nenhum político havia sido até ali no Brasil. Imensamente popular. Quando falava, as praças enchiam, os auditórios, os coretos, não importa onde. Aquele discurso que faria na Câmara era só mais um no ritmo que havia tomado de discursos quase diários, enquanto circulava pelo Brasil.

Nunca tinha sido feito antes. Não desse jeito. Ruy Barbosa era um político em campanha e, campanhas eleitorais como nós as reconheceríamos, aquela era a primeira. Havia disputa por votos de verdade, grandes comícios, panfletos, bótons na lapela, brigas nas páginas da imprensa. Na eleição de 1910, o Brasil elegeria o quinto presidente da República pelo voto popular. Mas em todas as outras o candidato era, essencialmente, único. Havia um pacto dos governadores, liderados pelo de São Paulo e pelo de Minas, que escolhiam juntos, em alternância, o nome do presidente seguinte. Mas desta vez tinha briga.

Ruy se impusera uma única missão: alertar o Brasil a respeito da ideia de eleger um militar para a presidência da República. Era má ideia. Muito má ideia. O país precisava escapar dela.

O dia que não era bom. Ruy havia recebido na véspera a notícia de que Joaquim Nabuco estava morto. Rivais algumas vezes, amigos próximos quase todo o tempo, viveram suas vidas inteiras um sempre à vista do outro. Tinham, naquele princípio de 1910, 60 anos redondos. Ambos. Estiveram juntos desde o tempo de colegas no curso de Direito, no Largo de São Francisco, em São Paulo — eles dois mais o advogado Luiz Gama e o poeta Castro Alves. Tinham como professor José Bonifácio. Aquela geração, formada em 1870, dedicou sua vida à mesma luta pela causa liberal no Brasil. Uma briga que começou cedo pelo mais básico — por liberdade, na campanha abolicionista. Separaram-se, Ruy e Joaquim, quando um golpe militar derrubou o gabinete Ouro Preto e, com ele, toda a monarquia. Ruy, republicano, seguiu. Joaquim escolheu se recolher à vida pessoal, aos livros. Mas em 1910 tinha voltado fazia pouco à vida pública, para abrir as portas de Washington ao Brasil, como embaixador. Conseguiu. Era recebido por Teddy Roosevelt de um jeito que, depois, só outros dois embaixadores conseguiram: Oswaldo Aranha, por Franklin Roosevelt, e Walter Moreira Salles, por John Kennedy. Foi num inverno em Washington que Joaquim Nabuco morreu, após um derrame cerebral.

“As nações não armam seus exércitos para serem escravizados por eles”, disse Ruy à plateia no plenário da Câmara. Foi aplaudido, gritaram ‘bravo’. “As nações não dão galões aos seus generais para que eles levantem contra elas sua espada”, seguiu. Alguém levantou um ‘muito bem’ mais empolgado, com palmas mais fortes no ritmo crescendo do discurso. “As nações, senhores, não fazem os seus marechais para que eles venham a ser, na paz, os caudilhos de facções ambiciosas!”

Ruy tinha uma voz grave, porém aveludada. Forte e agradável. Tremia ligeiro o R por ênfase, não pulava sílaba, cuidava das pausas que usava para efeito, mas deixava as palavras fluírem sem nunca se atrapalhar com elas. Sem jamais hesitar. Discursava como se houvesse ensaiado muitas horas antes. Se o português já parecia rebuscado em seu tempo e soa excessivamente barroco para nós que já passamos pelo Modernismo, a impressão é dada mais pela leitura de seus discursos do que por como os narrava. Ruy era claro, muito claro. Principalmente, pensava com clareza. Seu estilo de demarcar ênfases na fala seria ainda replicado por políticos no Brasil por décadas após sua morte.

Sim. Dá para ouvi-lo. Ele deixou pelo menos uma gravação.

Seu adversário na eleição era o marechal Hermes da Fonseca, sobrinho de Deodoro. Afonso Pena, o mineiro eleito em 1906, morreu no início de 1909 sem terminar o mandato. Nos dois anos finais, governou o Brasil o vice, Nilo Peçanha. Foi o único presidente negro da história. Na confusão da morte, paulistas e mineiros se desentenderam sobre quem deveria sucedê-lo. Os paulistas em particular estavam preocupados com o excedente da lavoura de café, seu principal produto de exportação, cujo preço internacional havia despencado. Um bom naco da elite estadual estava em risco de falência. São Paulo esperava do novo governo compromisso de que a União arcaria com ao menos parte da conta. Os mineiros, porém, se opunham. Naquela eleição, a República do Café com Leite rachou.

Os mineiros sabiam que os paulistas jamais aceitariam Hermes, mas estados o suficiente concordaram com a indicação. O marechal, militar mais graduado do Exército brasileiro, havia passado à reserva fazia pouco e deixou a pasta de ministro da Guerra para disputar a eleição. Em São Paulo, viam com alarme a ideia de que o líder do Exército se tornasse presidente da República. As Armas eram fidelíssimas a Hermes. Era como se o presidente tivesse seu exército particular. Era, temiam, um possível caudilho. E sabiam que em ninguém esse temor ia ressoar tanto quanto com Ruy Barbosa. Ruy certamente concordaria com o papel de ser candidato da oposição.

O velho liberal apoiou o golpe de 1889, quando Deodoro ascendeu à presidência. Ruy concordou em ser ministro da Fazenda daquele primeiro governo republicano num país quebrado, função na qual se saiu particularmente mal. Sua maior atenção, porém, foi naquilo em que realmente era competente — no trabalho do que seria a Constituição Republicana de 1891. Uma Constituição escrita para uma Democracia Liberal. Deodoro não durou muito, derrubado noutro golpe por Floriano Peixoto. Talvez nenhum presidente tenha mandato matar tantos, proporcionalmente à população, quanto ele. Era um açougueiro e deixou de herança seu nome para a capital catarinense, lugar onde mais derramou sangue.

O velho Ruy jamais se esqueceu daqueles seis anos de ditadura na República da Espada. E nunca cansou de tentar elevar o Brasil à Democracia Liberal que imaginava.

O que o moveu a ser candidato não foi só a memória traumática da ditadura que ajudou a implantar e contra a qual logo se insurgiu. Era também um alerta a respeito dos países vizinhos que, desde suas independências, viviam à mercê de chefes políticos com exércitos particulares. Havia caudilhos por toda parte na América do Sul. O Brasil vivera a monarquia inteira sem esta sombra, flertou com ela na implantação da República. Precisava evitá-la. Não havia como separar um homem que sempre inspirou a lealdade dos soldados brasileiros de todas as patentes do homem que presidiria a República. A candidatura Hermes da Fonseca era um risco. “As nações, senhores, não fazem seus marechais para que venham a ser, na paz, os caudilhos de facções ambiciosas.”

Ruy nunca teve chances de ganhar. Durante a Primeira República, os governadores dos estados escolhiam seu candidato e providenciavam suas vitórias. Ainda assim, a campanha civilista teve pouco mais de 35% dos votos. Um feito. Os antecessores de Hermes costumavam ser eleitos com 85% ou bastante mais, aqueles índices de Rússia sob Putin ou Iraque sob Saddam. Ele foi para o pleito sabendo que seria derrotado mas lançando uma outra ideia para o país: que os aptos ao voto fossem registrados nacionalmente e que o Poder Judiciário, não os executivos estaduais, assumissem o controle das eleições. Morreu sem ver a democracia com a qual sonhou. Mas, quando enfim ela veio, foi no modelo que havia proposto.

Em seu governo, quando as críticas acirraram, Hermes da Fonseca instaurou Estado de Sítio e mandou fechar jornais. A NoiteÚltima HoraO Imparcial. Num dos mais influentes, o Correio da Manhã, foi além — mandou prender seu dono, Edmundo Bittencourt. Fechou ainda a revista de humor O Malho, que durante a campanha eleitoral fazia graça de Ruy em favor do marechal. O STF definiu que ele não cumprira as exigências constitucionais para declarar Estado de Sítio — Hermes ignorou o Supremo. Argumentou que o Executivo também podia interpretar a Constituição.

Em 1922, o marechal liderou ainda uma revolta para depor Epitácio Pessoa. Não conseguiu. Mas aqueles jovens tenentes passaram os anos seguintes tentando derrubar governos eleitos. Em 1930, conseguiram. E lá estavam, já velhinhos, em abril 1964. Um deles subiu a rampa do Planalto e vestiu a faixa.

O velho Ruy, pois é. Ele tinha razão. Segue tendo.

Editor-chefe


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