Em coluna recente, "Quem ‘traiu’ o quê e com quê" (15/1), falei de compositores consagrados por um ritmo de música —digamos, Rita Lee, a rainha do rock— que às vezes o "traíam" com outro ritmo. E dei como exemplo que "Mania de Você", marca registrada de Rita, era um bolero. Leitores estranharam e um deles escreveu: "Incrível, nunca tinha pensado nisso!".
E se eu lhe dissesse que não apenas "Mania de Você", mas "Caso Sério" e "Baila Comigo", outros sucessos de Rita, também são boleros? A letra de "Caso Sério" até cita a orquestra Românticos de Cuba, cujos discos de boleros animaram milhares de festinhas de apartamento nos anos 1960. Ninguém sabia então que os Românticos de Cuba não existiam —eram a Orquestra Tabajara, de Severino Araújo, sob pseudônimo.
O surpreendente talvez seja descobrir que a estrela de um gênero tão rebelde e contestador como o rock, como acreditam os seus praticantes, tenha aderido a um ritmo considerado careta e cafona, e que, nos anos 1970 e 1980, já se julgava morto. Mas não estava, e não foi só Rita. Também eram boleros outros clássicos daquele tempo, como "Dois Pra Lá, Dois Pra Cá", de João Bosco e Aldir Blanc, "Meu Bem, Meu Mal", de Caetano Veloso, "Começar de Novo" e "Bilhete", ambos de Ivan Lins e Victor Martins, "Até Quem Sabe" e "Simples Carinho", de João Donato, "Anos Dourados", de Tom Jobim e Chico Buarque, "Bye bye, Brasil", de Roberto Menescal e também Chico, e "Folhetim" e "Sob Medida", só de Chico.
E quem vai acreditar que a demolidora versão de Eumir Deodato para "Also Sprach Zarathustra", de Richard Strauss, tema do filme "2001: Uma Odisséia no Espaço" e 2º lugar para Eumir na parada da Billboard em 1973, era, graças a ele, um... baião?
Você perguntará se é preciso conhecer o ritmo para apreciar a música. Claro que não, mas, se peço um sorvete no balcão, quero saber se é de creme ou de chocolate.
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