Esforços de países para reduzir suas emissões de poluentes e investir em energia limpa tornaram as economias globais ainda mais dependentes da China, que não só domina de forma ampla o setor como tem expandido sua capacidade industrial a passos largos.
Com 80% do mercado global de energia solar, incluindo painéis que custam a metade do preço do que os produzidos em outros locais, além de três quartos da capacidade de produção de baterias para carros elétricos e a maior empresa do setor, a China tem se destacado em todas as fases da cadeia produtiva: desde maquinários e insumos para exportação até veículos elétricos e módulos solares de ponta.
Essa dependência tem incomodado rivais econômicos dos asiáticos e acirrado a competição em países como os Estados Unidos e potências da Europa, enquanto a China domina o mercado europeu de carros elétricos e amplia investimentos em infraestrutura na América Latina.
"As políticas de clima estão mais e mais interligadas com a geopolítica", diz à Folha Ilaria Mazzocco, pesquisadora do CSIS (Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais), think tank com sede em Washington. "É importante encontrar soluções que protejam as economias dos países, mas que não desaceleram o ritmo da transição energética."
Em outubro do ano passado, Geoffrey Pyatt, autoridade do Departamento de Estado americano para Recursos Energéticos, afirmou em evento sobre gás natural em Washington que é preciso "garantir que não se repita" nos setores de energia eólica, nuclear e hidrogênio "o que acontece na área de células solares e wafers de silício, na qual a China tem essencialmente um monopólio em vários elementos da cadeia de produção". Wafer de silício é o nome dado no setor para a lâmina de silício usada nos módulos solares.
"Temos de ter muito cuidado para não substituirmos uma era de dependência europeia do petróleo e do gás russos por dependência coletiva da tecnologia limpa e minerais críticos da China", afirmou.
Preocupação similar tem ocorrido na Europa, principal destino das exportações de carros elétricos da China —8 em cada 10 carros chineses para exportação em 2021 foram para o mercado europeu, segundo dados da AIE (Agência Internacional de Energia).
No fim do ano passado, a Comissão Europeia abriu investigação para avaliar a imposição de tarifas punitivas de importação para proteger fabricantes europeus contra os veículos chineses —incluindo não apenas a maior empresa do mundo do setor, a BYD, mas também outras marcas fabricadas no país, como Tesla, BMW e Renault.
"Os mercados globais agora estão inundados com carros elétricos mais baratos. E seu preço é mantido artificialmente baixo por enormes subsídios estatais", disse a presidente do órgão, Ursula von der Leyen.
A China detém hoje 75% da capacidade de produção de baterias de íon-lítio, usadas nos veículos elétricos somando 1,2 TWh, segundo a AIE. Para se ter uma ideia, todo o restante do mundo somado chega a 0,37 TWh. E a expectativa é de expandir ainda mais, com a China chegando a 4,65 TWh em 2030.
Mas o principal setor de domínio tecnológico e de mercado da China é a energia solar, com 80% do mercado de componentes e de módulos solares prontos, segundo análise da consultoria britânica Wood Mackenzie.
No ano passado, o país investiu US$ 130 bilhões no setor, de acordo com a empresa, após incrementar não só a capacidade de atender à demanda externa como também a interna.
Isso porque a China é também o maior poluidor do planeta e tem investido em tecnologia para limpar a própria matriz energética. Com esse investimento, a partir deste ano deve começar a baixar de forma consistente as emissões de dióxido de carbono, segundo estudo da organização europeia Crea (Centro de Pesquisa em Energia e Ar Limpo).
Só em 2023, a China instalou mais painéis solares do que os EUA em toda a sua história, segundo estimativa da agência Bloomberg.
De acordo com a Administração Nacional de Energia do país, no ano passado o país acrescentou 216,9 gigawatts à sua capacidade de geração em energia solar. Para se ter uma ideia, em 2022 o acréscimo, já recorde, havia sido de 87,4 gigawatts.
O montante em 2023 na China é maior do que toda a capacidade dos Estados Unidos, que é de 175,2 GW.
Dados da AIE deixam clara a expansão da capacidade chinesa na última década. Em 2010, a China produzia 55,7% dos módulos solares do mundo. Em 2021, isso saltou para 74,7%. Movimento similar se deu com os componentes dos módulos, como os wafers e o polissilício.
Essa expansão foi motivada não apenas pela exportação, mas também pela explosão da demanda do mercado interno do país, que anunciou meta para atingir neutralidade de carbono em 2060. Em 2010, 3,5% da demanda global por módulos solares vinha da China. Em 2021, essa proporção saltou para 36,4%.
De acordo com a Wood Mackenzie, o módulo solar produzido na China é hoje 50% mais barato do que se fosse feito na Europa e 65% mais barato do que nos Estados Unidos.
No Brasil, segundo estimativa da Absolar (Associação Brasileira de Energia Solar Fotovoltaica), a diferença é também de 50% —ou seja, painéis fabricados nacionalmente custam o dobro dos chineses.
"Em razão de políticas públicas industriais, a China tem um hub industrial muito significativo e produz todos os componentes utilizados em painéis. Se um fabricante brasileiro quer montar um módulo aqui no Brasil, ele tem de importar praticamente todos os componentes, o vidro, a célula, os componentes elétricos. E paga imposto em cima dessa matéria-prima", diz Rodrigo Sauaia, presidente-executivo da Absolar.
Os riscos de se concentrar um importante setor da economia em um único país ficaram evidentes na pandemia, quando as políticas de Covid zero ao longo de 2021 e 2022 fecharam fábricas na China, e na Guerra da Ucrânia, quando parte da Europa dependia de gás natural russo.
"É sempre arriscado que um fornecimento crítico de energia esteja fortemente concentrado em um único país, como vimos na recente crise energética na Europa", diz à Folha Elissa Pierce, pesquisadora da Wood Mackenzie. "Mas será quase impossível para os países investirem em energia solar a curto prazo sem usar produtos chineses."
Ela cita queda na instalação de módulos solares na Europa após a União Europeia adotar barreiras antidumping e antissubsídios, entre 2013 e 2018. Após a remoção de barreiras, as instalações passaram de 11 GW em 2018 para 23 GW em 2019, afirma.
Países como Índia, Turquia e EUA restringem a importação de componentes chineses para incentivar a produção doméstica, mas ainda dependem da importação de polissilício, wafers e células, diz ela. Mesmo quem tem acesso a esses materiais depende de outros insumos chineses, como vidro temperado e molduras de alumínio.
O governo chinês disse publicamente que considera proibir a exportação maquinários usados para produzir insumos.
"A China já detém 96% da capacidade global de fabricação de wafers e isso, sem dúvida, tornaria ainda mais difícil para outros países construir sua própria capacidade. Este é o grande risco de depender da tecnologia de um único país", diz Pierce.
A América Latina se tornou um dos principais polos de investimento chinês em energia limpa.
Segundo análise do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), há 35 usinas solares e eólicas de empresas chinesas em operação, construção e planejamento no Brasil, na Argentina, no Chile, na Colômbia e no México.
Entre 2019, diz o Ipea, a capacidade eólica controlada por empresas chinesas na região passou de 1,6 GW para 3,2 GW. A capacidade solar, por sua vez, quadruplicou, de 363 MW para 1,4 GW.
"A China, como o Brasil e outros países dos Brics, tem um projeto de ganhar mais espaço na governança global. O investimento em energia limpa é uma maneira de influenciar no debate global", diz à reportagem um dos autores do estudo, Marco Aurélio Alves de Mendonça.
"A China investe muito em hidrelétricas no exterior, mas em países pequenos muitas vezes isso não é viável. E aí pequenas fazendas eólicas e fotovoltaicas acabam resolvendo muitos dos problemas reais nesses países", afirma.
Nenhum comentário:
Postar um comentário