De tudo o que já se disse sobre a tentativa de golpe de Estado por Bolsonaro e seus acólitos, o mais irritante é a recorrência à honra e à dignidade como álibi dos militares envolvidos. É por essas mesmas honra e dignidade (insistentemente enxovalhadas ao longo dos anos pelos próprios atores) que eles renovam e justificam a ameaça insepulta do que não conseguiram consumar.
É da natureza da defesa tentar inverter o jogo, transformando o agressor em vítima. Nesse caso, entretanto, o recurso à dignidade dos atores precede a defesa; é o mote insistente da ação. E é claro que a tática não é recente.
Entrevistado no início do governo Bolsonaro, o ex-vice-presidente, general da reserva, insistia no sofisma canhestro da guerra para justificar os desaparecimentos e a tortura de cidadãos vistos como inimigos da pátria pelo governo militar.
Por falta de coragem ou de espírito, a repórter esqueceu de lhe soprar ao ouvido que, como bom militar, ele deveria saber que, além de proibir a tortura, as convenções internacionais assinadas pelo país atribuem aos senhores da guerra a responsabilidade pela vida de seus prisioneiros.
A insistência na dignidade e na honra está inversamente ligada à recusa de responsabilidade pelos militares brasileiros. Bolsonaro encarna a figura do irresponsável. É o covarde que foge da culpa. O infrator que se recusa a pagar as multas. Uma vida inteira de pequenos golpes.
Os quatro anos de seu governo, com as centenas de milhares de mortes que poderiam ter sido evitadas, representam a desfaçatez da irresponsabilidade como forma de poder. Não é fortuito que tantos tenham se aliado ao seu redor. Ninguém quer pagar a conta.
E diante da ameaça da derrota, o golpe de Estado lhes pareceu, por inércia, a forma mais simples (ou talvez já nem tanto) de garantir a irresponsabilidade como norma. É o que reivindicam no final das contas os que associam a responsabilização a um atentado à dignidade e à honra.
Dignidade e honra dependem da capacidade de assumir as consequências de seus atos. Os militares brasileiros, ou pelo menos aqueles que Bolsonaro chamou para si, perderam a razão ao serem confrontados com a responsabilização de seus antecessores, pais, tios ou irmãos.
O problema é que a honra está vedada aos que não suportam a responsabilidade dos próprios erros. É esse o grande dilema dos militares brasileiros: quanto mais recusam a responsabilidade, mais se afundam na desonra.
Ao não ser devidamente punido por atos gravíssimos quando era capitão do Exército, Bolsonaro foi alçado a representante natural dos irresponsáveis. A não punição dos atuais envolvidos nos atos preparatórios do golpe de Estado que pretendia instituir a irresponsabilidade como norma representa o fim das bases da República e da própria possibilidade de um contrato social que não seja imposto pela força e pela violência.
Ao denunciar a punição como injustiça, afronta e abuso de poder, esses agentes vendem a miragem de uma sociedade onde a liberdade é o poder de fazer o que quiser sem precisar prestar contas. São apoiados por quem clama pelo enxugamento do Estado e está cansado de pagar impostos, sem perceber a contradição de pôr-se nas mãos de golpistas que, a exemplo do ex-presidente, nunca tiveram outro soldo.
A convocatória para a manifestação deste domingo (25) está baseada nessa miragem tácita. Será uma manifestação contra a responsabilidade e tudo o que ela acarreta numa sociedade de índole republicana que prima pela justiça. Uma manifestação em nome da lei do mais forte, pelo fim da culpa como elemento civilizatório.
Uma Justiça Militar para militares só faz sentido se for tão ou mais rigorosa que a Justiça civil, a ponto de assumir e reparar suas falhas publicamente. No Brasil, ao contrário, ela serve de escudo de proteção para militares postos acima da lei dos comuns. As consequências, a julgar pela condução do julgamento que levou Bolsonaro a abraçar a carreira política depois da ativa e se tornar o mascote da irresponsabilidade no lugar de chefe de Estado, são obviamente suicidas.
Há no ex-presidente, em sua dissimulação acovardada, um talento perverso para flautista de Hamelin. O mais espantoso é que tenha encontrado, entre gente em princípio treinada para defender a pátria, seguidores de primeira hora, incapazes de resistir à tentação de pôr os interesses pessoais e corporativos acima da nação. E que ainda têm o descaramento de alegar que o fazem por honra e dignidade.
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