quinta-feira, 29 de fevereiro de 2024

Mecânica quântica estaria ligada às crises éticas do século 20?, Reinaldo José Lopes, FSP

 

Passei boa parte do começo deste ano com a cara mergulhada nos livros do escritor chileno Benjamín Labatut. Li, quase de uma vez só, seu novo lançamento no Brasil, "Maniac" (resenhado para esta Folha aqui), e a obra anterior, "Quando Deixamos de Entender o Mundo". O cara é bom, não há dúvida: são livros difíceis de largar, com um texto claro, austero, que encadeia temas díspares com habilidade. Mas tem algo que me incomodou um bocado neles.

A premissa (não formulada diretamente, mas, ao menos do meu ponto de vista, onipresente) de ambas as obras me parece ser a de que os avanços científicos do século 20, em especial os da física quântica, explicariam em parte a crise ética que nos acompanha desde então, com a enxurrada de totalitarismos, genocídios e capacidade de destruir a própria vida na Terra por meio da ameaça atômica.

Benjamín Labatut em mesa com Nair Benedicto na Flip 2022
Benjamín Labatut em mesa com Nair Benedicto na Flip 2022 - Walter Craveiro/Divulgação

Tentando explicar um pouco melhor, e usando o título de um dos livros: para Labatut, isso é o que acontece "quando deixamos de entender o mundo". A mecânica quântica, com sua grande lista de maluquices (o fato de algo como um elétron poder ser onda e partícula ao mesmo tempo, digamos, ou o de jamais podermos determinar ao mesmo tempo a posição e a velocidade de uma partícula), estilhaçou a ilusão de que o Universo obedeceria às regras do que parece lógico para o ser humano.

Diante disso, perdemos a confiança na validade da razão humana para entender o Cosmos. E, com isso, desapareceria a crença também na nossa capacidade de diferenciar certo e errado, ou o que podemos fazer daquilo que devemos fazer. O que sobra é caos, e o poder de manipulá-lo para os fins que desejarmos, por piores que sejam.

É nesse ponto que eu comecei a me achar, com o perdão do uso do meme, que "algo de errado não estava certo" na lógica de ambos os "romances de não ficção". (Parêntese rápido: os livros basicamente são narrativas romanceadas de história da ciência, daí a classificação.) E eis o que quero dizer com isso.

Se as regras do mundo quântico não parecem obedecer às do nosso cotidiano, ainda assim elas representam um tipo de ordem subjacente ao Cosmos. Uma ordem, aliás, que foi confirmada inúmeras vezes experimentalmente e que está na base das tecnologias que usamos hoje.

Diante disso, não me parece fazer sentido enxergá-las como uma revelação do caos inerente à suposta ordem cósmica. Pelo contrário: o mundo quântico é contraintuitivo, mas profundamente ordenado.

Seja como for, os livros merecem ser lidos.

Reinaldo José Lopes
Reinaldo José Lopes

Repórter de ciência e colunista da Folha. Autor de "Homo Ferox" e "Darwin sem Frescura", entre outros livros


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