Uma mulher dizendo que veste a bandeira de Israel porque eles são "cristãos como nós", um senhor que se diz liberal e grita pela volta da ditadura, um rapaz pardo que reza junto a supremacistas brancos. Uma legião de patriotas que bate continência para a bandeira dos EUA e sonha em morar em Miami. Tudo embalado ao som de Geraldo Vandré, ícone da esquerda exilado durante a ditadura. Esses são alguns flashes do último domingo, no qual a fina flor do bozismo voltou às ruas.
Não há grande mérito em encher a avenida Paulista num domingo ensolarado. E parte de quem esteve lá já frequenta semanalmente o ponto mais celebrado da cidade. Junte-se a isso os desolados da perda, que passaram um ano amargando uma redução drástica em sua vida social e motivacional, e temos mais um aporte considerável.
Ainda temos os endinheirados, que se sentiram seguros de participar do evento uma vez que o atual governo nunca disse que almejava metralhá-los. Experimentaram o sufoco de dividir espaço com pobres, mas o fizeram na esperança de não ter que voltar a encontrá-los nos aeroportos. E assim se passou esse domingo, da volta de quem nunca vai embora, sempre à espreita para responder aos anseios de um povo.
A estupefação diante da total falta de coerência dos discursos bozistas serve de cortina de fumaça para a questão que realmente importa: a que mundo eles aspiram? Pergunta que foi levantada por Paul Preciado em "Dysphoria Mundi", sobre o qual já comentei aqui.
No forte candidato ao Oscar "Zona de Interesse", temos a visita de uma mãe à casa da filha, esposa de Rudolf Höss, diretor do campo de concentração de Auschwitz. A mãe se encanta com a escalada social da filha e conjectura se fulana —mulher judia cuja casa ela faxinava— estaria no campo. Não é um detalhe que a mãe de Hedwig Höss trabalhasse de faxineira na casa de uma família judia, uma vez que agora é ela que está numa bela casa com empregados. A inversão das posições de poder é o mote dessas relações.
Mas ela não parece compreender inteiramente o que se passa atrás daquele muro, onde as chaminés expelem fumaça ininterruptamente, mas que ostenta em sua porta a frase "o trabalho liberta". A pergunta sobre o mundo que queremos para viver bem encontra respostas diferentes entre mãe e filha. Assistam.
A racionalização do fato e sua negação não podem ser justificadas apenas por ação de mentiras. Elas são o rastilho de pólvora que permite que os desejos inconfessos encontrem uma forma palatável para serem aceitos por nós mesmos. O desejo de dominar, de controlar, de abusar do corpo do outro encontra justificativas não porque os fatos estão distorcidos, mas porque eles vêm a calhar.
Daí que juntar evangélicos e judeus sob o guarda-chuva cristão, negros e racistas pela meritocracia e mulheres contra a liberação feminina parece um preço pequeno a ser pago em nome de uma demanda maior. Trata-se da escolha por viver em uma sociedade na qual uns continuam sendo explorados por outros, mas com a pretensão de vir a fazer parte dos exploradores, não dos explorados.
Embora o estrago das fake news seja imenso e a luta contra elas não mereça trégua, não podemos esquecer que elas só servem para alimentar o caldo cultural que serve à exclusão e à subordinação. Para os ícones do capitalismo como Trump, Musk, Bezos, Lemann, Telles, Sicupira…, a cena idílica de um mundo no qual vivemos em paz com nossas famílias —sempre um tanto mafiosas— só se sustenta pela negação dos fornos no qual nossa humanidade arde.
"Zona de Interesse" ultrapassa o esquematismo dos filmes do gênero e nos permite reconhecer que a exploração e a destruição de minorias não se resume a um momento histórico e a um povo. Eis aí, por exemplo, os tumbeiros que não nos deixam mentir.
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