Os dicionários definem a figura de linguagem eufemismo como sendo a troca de uma palavra, locução ou acepção menos agradável por outra mais agradável. O vocábulo vem do grego, eufemismos, formado de eu (= bem) + femi (= dizer, falar). São palavras ou circunlóquios destinados a substituir outras expressões de linguagem que se tornaram culturalmente inconvenientes ou mesmo tabus e que, como tal, devem ser evitadas. É um recurso retórico-linguístico de todas as épocas, mas torna-se uma forma de comunicação social ainda mais relevante em épocas, como a atual, em que a preocupação com o politicamente correto tende a ser dominante. A expressão “asilo dos velhos”, para denominar os espaços comunitários que abrigam idosos, não é mais de bom tom. Agora se diz “casa de repouso”, “clínica para idosos” e por aí vai. Até a palavra velho caiu em desgraça; agora, o politicamente correto é dizer idoso. Velhice passou a ser terceira idade ou feliz idade. Nas salas de aula infantis, o cravo não briga mais com a rosa, e não se atira mais o pau no gato. A letra da cantiga é alterada para “Não atire o pau no ga-to-to / Porque isso-so-so / Não se faz-faz-faz” / O gatinho-nho é nosso amigo-go / Não devemos maltratar os animais... miau!”. Uma das palavras que parece estar prestes a se tornar tabu é a palavra negro e suas derivações, devido a sua contaminação com o histórico da escravidão e humilhação das pessoas de pele negra. Há aqueles que até evitam a palavra; quando querem referir-se a tais pessoas preferem o eufemismo “de cor”, o que não ajuda muito. O melhor mesmo, seria esquecer a cor da pele e tratar esses nossos semelhantes apenas como o ser humano que são, identificandoos por outras características humanas, especialmente positivas (e eles as têm, maravilhosamente, às vezes), o que parece razoável e sensato. Mas um condicionamento de séculos não se elimina de um dia para o outro. É um processo educativo lento. Outro dia, a Ministra da Igualdade Racial do Governo Lula, Srª Anielle Franco, anatematizou a expressão “buraco negro” e a palavra “denegrir”. Na sua opinião, o uso desses termos configura racismo e as pessoas que os utilizem devem arcar com as consequências. Com relação a “buraco negro”, conclui-se que os cientistas que estudam esse fenômeno da astrofísica e assim o denominam são irremediáveis racistas. Pelourinho neles! Denegrir é enegrecer, tornar negra, escura, a imagem de alguém, no sentido figurado de associá-la a algo ruim, negativo; tem, portanto, irremediável conotação racista, segundo a titular da Igualdade Racial. Processo em quem usar tal palavra! A Ministra não diz, mas sua manifestação autoriza imaginar que a solução ideal para combater o racismo seria fazer uma limpeza linguística radical, excluindo a palavra negro e todas as suas derivações dos dicionários, da cultura, da memória e dos usos e costumes. Seria isso possível? A linguística moderna parece aceitar a tese de Hermógenes, no Crátilo de Platão, segundo a qual as palavras de uma língua são mais produto de convenção do que de imitação, embora ninguém tenha conseguido ainda descrever, pela sua dose de aleatoriedade, o processo histórico-social que leva à associação coletivamente convencionada entre uma palavra (o referente) e aquilo que ela designa (o referido). Trata-se de uma convenção sui generis, que resulta mais de processos coletivamente inconscientes do que da vontade consciente das pessoas. Mas, admitida a natureza convencional das palavras, parece possível, em tese, excluir, por lei ou decreto, ad aeternum, o vocábulo negro e suas derivações de nossos dicionários e proibir seu uso na prática linguística, para que nos livremos dos perversos sentidos de que se contaminaram. Não é por meio de leis e acordos entre os países lusófonos que se tem regulado a ortografia da língua portuguesa? Com a palavra negro não seria diferente. Se vai dar certo, é difícil dizer; como se sabe, há leis que pegam e leis que não pegam. Ocorre que, uma vez excluída a palavra tabu, precisaríamos de uma substituta para designar a cor negra, pois o fenômeno “cor negra” continua a existir, independentemente da palavra que a designa. Poderíamos, por exemplo, convencionar que a cor agora sem nome, passe a ser designada pelo neologismo grone. Então teríamos “buraco grone” e “degronir”. Estariam resolvidas as sinceras preocupações da ilustre Ministra? Talvez. O risco é algum desavisado começar a utilizar a nova palavra para designar a cor de pele de certas pessoas e esse novo uso tornar-se coletivo e ganhar algum sentido pejorativo ou assumir algumas antigas conotações negativas da palavra extinta. Estaríamos de novo com o mesmo problema, pois as conotações afetivas, negativas ou preconceituosas que muitas vezes rodeiam as palavras, não nascem com elas, são produto da cultura. E isso não se muda por decreto ou lei, é um longo e custoso processo histórico-educacional da luta do humano contra o não humano, sem esquecer que nessa luta o ser humano nunca chegará à perfeição. Esta, se existir, é privativa dos anjos. Como diz Riobaldo, do Grande Sertão: Veredas: “viver é muito perigoso...”
Nenhum comentário:
Postar um comentário