É uma das mais antigas memórias de infância: eu, com nove anos, cantando "we are the world, we are the children" na festa da escola. O auditório, com pais embevecidos e lacrimejantes, bebia as palavras como se fossem as tábuas da lei que Moisés trouxe do Sinai.
Eu, antecipando uma carreira futura como rezinga profissional, murmurava apenas palavras soltas, contando os segundos para fugir do palco.
Foi um sucesso. De tal forma que, para mal dos meus pecados, a turma fez turnês por outras escolas, casas de repouso —e, se a memória não me falha, o hospital psiquiátrico da cidade, onde fomos recebidos de braços abertos.
Lembrei tudo isso enquanto assistia ao documentário "A Noite que Mudou o Pop", na Netflix, sobre a noite em que Los Angeles reuniu em estúdio o maior número de estrelas para gravar "We Are the World".
Apesar do meu estresse pós-traumático, gostei. Para começar, o solo de Bob Dylan era o único momento da canção que verdadeiramente me encantava. Mas quem diria que foi Stevie Wonder, mimetizando o estilo de Dylan, quem ensinou ao próprio Dylan como cantar os versos?
De resto, confirmei velhas certezas: a beleza irreal de Diana Ross, a força vulcânica de Bruce Springsteen e o talento ofensivo de Michael Jackson. Tudo era fácil, gracioso e luminoso naquele corpo frágil.
Claro que, no filme, falta o essencial: o destino do dinheiro. Na década de 1980, a fome na África, sobretudo na Etiópia, levou figuras como Bob Geldof ou Harry Belafonte a mobilizarem esforços homéricos para salvarem os famintos.
Canções foram gravadas. Concertos foram organizados. Milhões de dólares foram enviados para o continente.
Mas fenômenos como a Band Aid ou a USA for Africa nunca perderam o seu tempo para questionar as origens políticas da fome que combatiam.
No caso da Etiópia, a catástrofe humanitária era, em grande medida, responsabilidade do regime de Mengistu Haile Mariam e da guerra civil em que ele mergulhou o país.
Se juntarmos à guerra a coletivização forçada da agricultura promovida por Mengistu, com o deslocamento forçado de meio milhão de pessoas —uma estimativa conservadora—, entenderemos melhor as imagens obscenas das crianças esqueléticas que horrorizaram o Ocidente.
Os milhões de dólares teriam aliviado as condições infernais de muitas delas. Mas persiste hoje —nos trabalhos notáveis de Dambisa Moyo e de David Rieff— a acusação de que esse dinheiro, nem sempre usado para fins humanitários, serviu sobretudo para prolongar a guerra e, por consequência, a fome.
Qual a moral da história?
Os bons sentimentos, às vezes, redundam em péssima política. Mas quantos poderiam imaginar isso naquela noite de 1985, quando os melhores dos melhores pensavam que estavam salvando o mundo?
Excesso de empatia pode ter os seus abismos. Falta de empatia também, embora essa seja a principal ambição do homem na modernidade.
Tempos atrás, na casa de um familiar, encontrei os famosos livros de Mark Manson, com os títulos sonantes "A Sutil Arte de Ligar o F*da-se" e "F*deu Geral". "Milhões de exemplares vendidos", lia-se na capa!
A mensagem, resumidamente, era só uma: seja mais sociopata. Que interessam os outros? A vida livre, a vida feliz, é feita de misantropia e narcisismo. Remorsos ou vergonhas só atrapalham.
No fundo, milhões de leitores gostavam de ter uma patologia mental. Ou, para usar os termos científicos, uma "perturbação de personalidade antissocial", tal como descrita por Patric Gagne, psicoterapeuta e sociopata, com livro de memórias no mercado.
O título é "Sociopath" e, em entrevista ao New York Times, Gagne nos fala da sua vida convivendo com o distúrbio.
A apatia emocional, a ausência de consciência moral, a indiferença perante a dor dos outros —tudo começou bem cedo. A que se seguiu a criminalidade— nada de horripilante, apenas furtos e vandalismo.
Hoje, consciente de sua condição, Gagne consegue controlar os seus impulsos. Mas o momento revelador da entrevista acontece quando ela afirma que os "neurotípicos" —gente sem perturbação— sentem uma curiosidade invejosa pela sociopatia. Por quê?
Porque imaginam que é um estado gostoso, onde a culpa, essa invenção pequeno-burguesa, deixa de fazer sentido. Alguns chegam a confessar ideações homicidas, esperando encontrar compreensão.
Se calhar, está aqui o próximo best-seller, "A Sutil Arte de Matar o Próximo". Alguma editora estaria interessada?
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