domingo, 25 de fevereiro de 2024

Material vira alternativa sustentável ao plástico e cria mercado bilionário, OESP


Por Marta Vidal

25/02/2024 17h00

Atualização: 25/02/2024 19h27




O ruído rítmico dos machados batendo nas árvores ecoa nas profundezas da floresta de sobreiros.


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Mas em Coruche, uma área rural ao sul do rio Tejo conhecida como a “capital da cortiça” de Portugal, o estrondo das árvores caindo no chão não acompanha o som dos golpes de machado. Em vez disso, trabalhadores experientes retiram cuidadosamente a casca dos troncos das árvores.


Esse ritual anual de extração de cortiça nos meses de verão existe há milhares de anos no Mediterrâneo ocidental. Egípcios, persas, gregos e romanos usavam o material para fabricar equipamentos de pesca e sandálias e para vedar jarros, potes e barris. Quando as garrafas de vidro ganharam popularidade no século 18, a cortiça se tornou o vedante preferido por ser durável, à prova d’água, leve e maleável.


Alona Kozma empilha cortiça numa fazenda em Coruche, Portugal

Alona Kozma empilha cortiça numa fazenda em Coruche, Portugal Foto: Jose Sarmento Matos/The Washington Post

Atualmente, a cortiça está passando por um renascimento à medida que mais setores buscam alternativas sustentáveis ao plástico e a outros materiais derivados de combustíveis fósseis. A casca é agora usada em pisos e móveis, na fabricação de calçados e roupas, e como isolamento em residências e carros elétricos. As exportações de Portugal atingiram o recorde histórico de 670 milhões de euros (R$ 3,6 bilhões) no primeiro semestre de 2023.


Mas a cortiça é mais do que um material verde da moda. Além de criar empregos, as florestas onde ela cresce fornecem alimento e abrigo para os animais, ao mesmo tempo em que sequestram dióxido de carbono. E, ao contrário da maioria das árvores cultivadas comercialmente, os sobreiros nunca são cortados, o que significa que sua capacidade de armazenamento de carbono continua durante os 200 anos ou mais de vida.


Como a cortiça é extraída

Com um golpe firme, Fernando Tacha golpeia o tronco de um sobreiro, depois torce o machado e usa o cabo para erguer delicadamente a tábua.


“Comecei a cortar cortiça quando tinha apenas 19 anos. Agora tenho 69. Mas farei isso enquanto puder”, diz ele, enquanto enxuga o suor da testa. “É um trabalho difícil, mas muito bonito.”


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O sobreiro é uma árvore perene, baixa e de crescimento lento, endêmica do Mediterrâneo.

As florestas mais extensas podem ser encontradas na costa atlântica da Península Ibérica.

Em Portugal, o maior produtor de cortiça do mundo, os sobreiros são tão apreciados que foram escolhidos como a árvore nacional do país e são protegidos por lei, portanto é proibido derrubá-los.

A Espanha é o segundo maior produtor, seguida por Marrocos, Argélia, Tunísia, Itália e França.

O processo de extração da cortiça exige precisão e anos de prática. O golpe do machado deve ser forte, mas também delicado para evitar atingir a casca interna e danificar a árvore. Como o trabalho é muito especializado, é um dos empregos agrícolas mais bem remunerados em Portugal.


A casca só pode ser extraída entre o final de maio e agosto, quando a árvore está em sua fase ativa de crescimento, o que facilita a retirada da camada externa sem danificar o tronco da árvore.


Embora a maior parte da cortiça ainda seja usada como rolha de garrafa, na última década diferentes setores têm encontrado novos usos para ela

Embora a maior parte da cortiça ainda seja usada como rolha de garrafa, na última década diferentes setores têm encontrado novos usos para ela Foto: Jose Sarmento Matos/The Washington Post.

O sobreiro é único em sua capacidade de regenerar a casca. Depois de removida, os trabalhadores escrevem o último número daquele ano com tinta branca no tronco marrom dourado exposto - um três significa que foi colhido em 2023. A casca voltará a crescer lentamente e estará pronta para outra colheita após nove anos. “A árvore sempre se regenera”, diz a engenheira florestal Conceição Santos Silva.


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Paula Salgueira, que trabalha na extração de cortiça em Coruche há 35 anos, estende a mão para tocar um carvalho que acabou de ser descascado. “Está frio”, diz ela, enquanto acaricia o tronco liso e desnudado. Enquanto os machadeiros trabalham em pares removendo a cortiça, Salgueira e algumas outras mulheres juntam as tábuas em pilhas para o transporte.


Em seguida, as tábuas serão empilhadas ao ar livre em áreas de armazenamento expostas ao ar e à luz solar. Após seis meses de envelhecimento para remover a umidade, elas serão classificadas de acordo com sua espessura e qualidade e, em seguida, fervidas para limpar as impurezas e tornar o material mais macio e fácil de manusear.


De rolha de garrafa a material ecológico

Embora a maior parte da cortiça ainda seja usada como rolha de garrafa, na última década diferentes setores têm encontrado novos usos para ela.


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“Estamos observando um interesse crescente na cortiça como material sustentável”, diz Rui Novais, especialista em materiais da Universidade de Aveiro, em Portugal. “Em comparação com materiais como a espuma de poliuretano (usada para isolamento térmico), os produtos feitos com cortiça requerem menos energia e produzem menos emissões de CO2.”


A casca grossa do sobreiro se adaptou para defender a árvore do fogo, tornando-a um poderoso material isolante que tem sido usado para proteger tanques de combustível em naves espaciais da Nasa e baterias de carros elétricos. Ele também é resistente à água e ao óleo e pode suportar a compressão sem perder a elasticidade.


Parte do carbono absorvido pelos sobreiros é transferido para os produtos de cortiça, que podem ser usados por longos períodos, reutilizados e reciclados.

Parte do carbono absorvido pelos sobreiros é transferido para os produtos de cortiça, que podem ser usados por longos períodos, reutilizados e reciclados. Foto: Jose Sarmento Matos/The Washington Post

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“É um material extraordinariamente renovável e biodegradável”, diz Novais. “Também é muito durável. Foi demonstrado que os produtos de cortiça permanecem praticamente inalterados por mais de 50 anos.”


Parte do carbono absorvido pelos sobreiros é transferido para os produtos de cortiça, que podem ser usados por longos períodos, reutilizados e reciclados. Vários estudos descobriram que a cortiça é negativa em termos de carbono, o que significa que ela pode armazenar mais carbono do que a quantidade necessária para produzi-la.


Quando as pranchas de cortiça são cortadas e perfuradas para formar rolhas de cortiça natural, as sobras são moídas em grânulos e prensadas para formar folhas ou blocos de cortiça. “Até o pó da cortiça é utilizado para produzir energia”, afirma João Rui Ferreira, secretário-geral da Associação Portuguesa da Cortiça. “Ele alimenta as caldeiras da indústria e parte da produção.”


A cortiça reciclada também pode ser triturada e composta para fabricar outros produtos. Em Portugal, o Green Cork, um programa de reciclagem iniciado pela organização ambiental Quercus, já recolheu e reciclou mais de 100 milhões de rolhas de cortiça desde 2009. Uma iniciativa semelhante, a ReCORK, existe nos Estados Unidos.


Uma fábrica natural

A maior parte da cortiça produzida em Portugal cresce nas colinas e planícies suavemente onduladas do sul do país, em um antigo sistema agroflorestal conhecido como montado. Esse ecossistema semelhante a uma savana combina cortiça, azinheiras e oliveiras com pastagens, gado, culturas e pousios.


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“O solo no sul de Portugal é muito pobre, chove muito pouco e as temperaturas são muito altas no verão”, diz Teresa Pinto-Correia, professora da Universidade de Évora, em Portugal, especializada em paisagens rurais e sistemas agrícolas. “Mas esse tipo de sistema é produtivo mesmo quando os recursos são escassos e as condições são difíceis.”


Durante séculos, os habitantes locais preservaram o montado porque a cortiça proporcionava aos proprietários de terras uma fonte de renda. Esse mosaico de habitats abriga centenas de espécies, incluindo o lince ibérico, o gato selvagem mais ameaçado do mundo e a ameaçada águia imperial. Um dos mais antigos sobreiros conhecidos no mundo, plantado em 1783 em Águas de Moura, é conhecido como “o assobiador” porque muitos pássaros visitam seus grandes e extensos galhos.


Os porcos ibéricos se alimentam de bolotas e as cabras pastam nos pastos entrelaçados. A intercalação de sobreiros com animais e plantações pode aumentar a produção e a biodiversidade, mas também construir o solo, controlar a erosão, reter água, combater a desertificação e sequestrar carbono, diz Pinto-Correia.


Embora as florestas de cortiça possam ajudar a mitigar os efeitos das mudanças climáticas, elas também correm cada vez mais riscos, à medida que a seca e os incêndios florestais se tornam mais intensos e mais frequentes na região.


“A árvore está adaptada ao clima mediterrâneo. A casca a protege do fogo”, diz Santos Silva. “Mas nos dois primeiros anos após a extração da cortiça, as árvores ficam muito mais vulneráveis aos incêndios florestais porque não têm essa proteção.”


No entanto, os incêndios nos sobreirais, diz ela, permanecem raros devido à cuidadosa gestão humana.


Por ser uma árvore de crescimento lento, o sobreiro leva décadas para fornecer sombra e produzir cortiça de boa qualidade. Mas em Coruche, as pessoas ainda seguem um velho ditado português: “Quem gosta de seus netos planta sobreiros”. /THE WASHINGTON POST


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