Nas prateleiras das livrarias ainda não se encontra o gênero "não ficção de horror", mas não é por falta de esforço do chileno Benjamín Labatut. Com "Maniac", livro no qual aborda a biografia do pioneiro da computação John von Neumann (1903-1957), o escritor dá continuidade à crônica das revoluções científicas do século 20 que havia iniciado em sua obra anterior, "Quando Deixamos de Entender o Mundo".
O resultado fascina e repele em igual medida, dando a entender que alguns dos gênios dos últimos cem anos chegaram à beira de um abismo existencial –e resolveram dar um passo à frente.
Ok, talvez o termo "não ficção" não seja o mais adequado; poderíamos falar também em "biografia romanceada". O autor mistura de forma quase inconsútil a pesquisa história minuciosa e a recriação romanesca ao falar de Von Neumann e de outros matemáticos, físicos e biólogos que se beneficiaram de seus "insights" para criar um mundo radicalmente diferente do que quase qualquer cientista na ativa em 1900 poderia ter imaginado.
Não se trata de uma biografia linear. O texto de Labatut tem uma lógica próxima da do caleidoscópio ou da livre associação, em que a figura do protagonista é construída pelas impressões em primeira pessoa de parentes, amigos, esposas e desafetos, sem que em nenhum momento a voz do próprio matemático húngaro-americano seja ouvida pelo leitor.
O porquê disso não demora a ficar claro: talvez a cabeça de Neumann János Lajos —nome do cientista antes de sua mudança para os Estados Unidos— não fosse humana o suficiente para ser simulada falando em primeira pessoa. Talvez, assim como as formas de vida artificial cuja existência ele anteviu, Von Neumann não pertencesse propriamente a este mundo.
"Recordando-me dele agora, era quase como se ele estivesse fazendo sua melhor imitação da forma como um ser humano comum anda, mas sem nunca ter visto um antes", diz Eugene Wigner, conterrâneo do matemático e judeu secular como ele, ao narrar seu primeiro encontro com Von Neumann, na escola, quando ainda eram meninos.
Wigner é um dos elementos mais iluminadores da polifonia da narrativa. É ele que revela, logo de início, que a estranheza do jovem colega se somava a uma obsessão por racionalizar e descrever matematicamente cada aspecto do mundo e da condição humana.
"Ele [Von Neumann] confessou que não conseguia entender como tinha aprendido a andar de bicicleta –uma verdadeira proeza de estabilidade, equilíbrio e função motora coordenadas– sem nunca ter precisado usar a razão. Como seu corpo conseguia pensar sozinho?", lembra Wigner.
Essa obsessão levou Von Neumann a buscar, sem sucesso, uma fundamentação indiscutível e sem qualquer ambiguidade para os elementos mais básicos da matemática. Mesmo derrotado nessa procura, seu intelecto sem igual fez dele uma figura importante no desenvolvimento da primeira bomba atômica, ao lado de Robert Oppenheimer e de uma série de futuros ganhadores do Nobel, como Richard Feynman.
Ao mesmo tempo, muitos enxergavam algo de temerário e inconsequente, não exatamente racional, no comportamento do pesquisador: uma paixão de menino por jogos e máquinas de guerra e um estilo de vida hedonista, em que a bebida, a companhia feminina e os carros de luxo tinham destaque.
"Johnny amava os Estados Unidos quase tanto quanto eu desprezava. Aquele país fez algo com ele. Todo aquele otimismo enlouquecedor e irrefletido, toda aquela ingenuidade animada sob a qual eles escondiam sua crueldade, isso trouxe o pior dele à tona", afirma sua segunda mulher, a também matemática Klára Dán.
Com o farto financiamento do complexo militar-americano, Von Neumann ajudou a criar um dos primeiros computadores científicos do mundo, o Maniac do título do livro. (A sigla significa "analista matemático, integrador numérico e computador automático".)
Participou ainda da formulação da justificativa matemática para o "equilíbrio de terror" por trás da corrida armamentista nuclear entre os EUA e a União Soviética. A estratégia acabaria sendo conhecida como MAD, acrônimo para "destruição mútua assegurada" que também significa "louco" em inglês: como qualquer ataque nuclear garantiria também a destruição do inimigo por meio do contra-ataque da outra superpotência, o equilíbrio de poder se mantém e o Armagedom não acontece.
A ameaça atômica continua a pairar sobre a humanidade em 2024, mas talvez ainda mais perturbador, no momento atual, seja o papel desempenhado pelo protagonista na ideia de que máquinas poderiam se autorreproduzir por meio da capacidade de replicar as instruções para sua própria construção e funcionamento.
São ideias vistas como centrais para duas revoluções, a da engenharia genética e da inteligência artificial (IA). Von Neumann chegou a imaginar que máquinas autorreplicáveis poderiam colonizar o Universo em nosso lugar. Se a ideia ainda tem muito de ficção científica, é difícil não pensar em suas implicações diante do avanço rápido e ainda imprevisível da IA hoje.
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