terça-feira, 19 de dezembro de 2023

João Pereira Coutinho - Perigosos são os homens comuns que se limitam a seguir ordens. FSP

 Tempos atrás alguém lembrava uma frase divina do jornalista William F. Buckley que soava mais ou menos assim: a vida não pode ser tão má quando, por US$ 10, é possível comprar todas as sonatas de Beethoven e passar os próximos dez anos a ouvi-las.


Frase imortal para um mundo mortal. Hoje o acesso à cultura é praticamente irrestrito. Mas a ignorância aumentou na mesma medida.

Não falo apenas de Beethoven. O Holocausto também serve. Uma enquete da Economist/YouGov concluiu que os jovens americanos não acreditam/não sabem se acreditam que o Holocausto existiu.

A estupidez em números: 20% daqueles que têm entre 18 e 29 anos consideram o Holocausto um mito. Na mesma idade, 30% não sabem se é.

Curiosamente, esses aterradores números vão descendo à medida que os respondentes têm mais idade.
Para fechar em beleza, os 50% que não acreditam/não sabem se acreditam que o Holocausto existiu distribuem-se democraticamente por todos os níveis de escolaridade.

É um pensamento consolador —para os pais, entenda. De que vale gastar dinheiro na universidade dos filhos quando eles saem de lá tão analfabetos como quando entraram? Ou ainda mais?

Rosto de jovem em close, onde, no lugar dos olhos, há um telefone celular
Ilustração de Angelo Abu para coluna de João Pereira Coutinho de 18 de dezembro de 2023 - Angelo Abu/Folhapress

Para a Economist, a culpa é das redes sociais e das teorias conspiratórias que correm por lá. Talvez seja. Mas a educação formal, que existe offline, deveria limpar o lixo online com conhecimento e verdade.

Pois sim: outra enquete recente, da Universidade Harvard, revela que 67% dos jovens entre os 18 e os 24 anos consideram que os "judeus", todos eles, sem distinção nacional ou ideológica, são uma classe de opressores que deve ser tratada como tal. Eis aí a educação.

Comecemos pelo básico: o Holocausto até poderia ser um mito. Mas os nazistas, que tinham muitos defeitos, eram exemplares no método com que registravam suas matanças.

De todos os crimes em que a humanidade foi pródiga, nenhum deles está tão bem documentado como o Holocausto.

Mas mesmo que não estivesse em letra de forma, teríamos sempre os testemunhos. Já nem falo dos testemunhos das vítimas que sobreviveram; falo dos carrascos que sobreviveram —e que, entre a culpa ou o orgulho, revisitaram o passado para as câmeras.

Um exemplo desse exercício está no documentário "Relato Final", de Luke Holland, que os jovens de todas as idades podem ver na Netflix.

Em mais de uma década, Holland filmou os últimos participantes nos crimes do Terceiro Reich —antigos nazistas que ainda recordam o cheiro da pele queimada dos cadáveres a sair pelas chaminés dos campos de extermínio. Monstros?

Não são. Aliás, Holland inicia o documentário com uma citação de Primo Levi em que o escritor (e sobrevivente) já avisava: os monstros existem, mas são raros; mais perigosos são os homens comuns que se limitam a seguir ordens.

Os nazistas de Luke Holland são pessoas comuns. Alguns entraram em organizações nazistas fascinados pelos uniformes, pela vida social, pelas perspectivas de trabalho.

Outros identificavam-se com a mensagem —nacionalismo, antissemitismo, antibolchevismo— e depois encontraram-se na posição desconfortável de terem de levar essa mensagem até às últimas consequências —por medo, pressão etc.

Outros ainda não se arrependeram desse passado inumano. "A ideia era boa", diz um deles, que se recusa a criticar Hitler ou a responsabilizá-lo pela catástrofe.

Pessoas comuns, sim, mas com uma atrofia da consciência moral, diria eu. Um momento do documentário ilustra esse ponto de forma irônica. Na infame Noite dos Cristais, uma orgia de violência antissemita em 1938, queimaram-se sinagogas por toda a Alemanha. Será que foi um crime?

Um dos entrevistados hesita, mas concede que foi. Não, obviamente, porque a destruição de sinagogas foi a antecâmera de algo muito pior. Mas porque a destruição da propriedade privada é contrária à lei.

Quando tiver de explicar aos meus alunos o que foi o "positivismo ético" dos nazistas, darei essa reflexão como caso prático.

Espero que eles entendam. Espero que eles não sejam como os jovens que aparecem no final do documentário, no local onde foi decidida a "solução final" (um palacete em Wannsee), indignados com o sentimento de vergonha que é confessado por um ex-membro das SS.

É um momento surreal em que o nazista quase chora para convencer a garotada de que tudo foi um crime sem perdão.

Pobre velho tonto. Se ele tivesse estudado em certas universidades, sairia de lá de alma leve.

Nenhum comentário: