Num gesto inédito, o papa Francisco determinou que padres podem dar uma bênção a casais homossexuais. Que fique claro: Igreja Católica ainda está muito longe de aceitá-los de verdade. Por trás do gesto simbólico, continua o ensinamento inflexível: para a igreja casamento é apenas entre homem e mulher, e qualquer relação sexual entre pessoas do mesmo sexo é pecado mortal e, portanto, condena a alma ao inferno. Não deixa de ser, contudo, uma tentativa de valorizar pessoas que, no passado, seriam tratados com o mais violento preconceito.
Estamos longe dos tempos do Catecismo de S. Pio 10 (de 1908), que elencava a "sodomia" como um dos quatro pecados que "clamam a Deus por vingança". E mais longe ainda dos séculos nos quais a relação sexual entre pessoas do mesmo sexo era punida com a pena de morte, com pleno aval da igreja.
Toda mudança é politicamente difícil numa instituição que se diz infalível. Não que ela não exista, mas tem que ser manobrada de maneira tão lenta e gradual que, para qualquer fiel ao longo de sua vida, nada pareça mudar. Isso já foi feito, por exemplo, com a escravidão (de permitida a proibida) e com a cobrança de juros (de proibida a permitida). Pode acontecer também com a homossexualidade.
Francisco parece querer a mudança um pouco mais rápida que o normal e, ao fazê-lo, gera não só resistência como reação. Na direita brasileira, mesmo entre católicos, é comum ele ser pintado como um papa comunista, globalista e anticristão. Com a polarização política, o cristianismo tem ido majoritariamente para a direita. A ordem da vez, à revelia do papa, é a radicalização conservadora da agenda dos costumes. Cada conservador que Francisco perde é um a mais para André Valadão e outros abocanharem.
Fazer uma mudança de 180 graus numa doutrina é admitir ou que Deus errou feio ou, o que dá quase no mesmo, que a totalidade dos cristãos errou por milênios. A religião deixa de dar a certeza inquebrável e se revela —horror dos horrores— falível como o ser humano. E se a própria religião é falível, se ela não tem uma linha direta com a Verdade Absoluta e está também buscando respostas como qualquer um de nós, já é mais complicado justificar a obediência.
A homossexualidade é condenada tanto no Antigo Testamento —em que Deus em sua infinita bondade ordena a pena de morte a homossexuais— quanto no Novo. Jesus não faz nenhuma referência a ela. Já Paulo faz três, e todas condenatórias. Por isso muitos cristãos sentem que, se abrirem mão da condenação, estarão abrindo mão da palavra de Deus.
Mesmo alguém que pense que a homossexualidade é pecado há de concordar que ela é menos grave do que o assassinato. Portanto, reconhecerá que, em sua tentativa de fazer a vontade de Deus, a cristandade agiu de forma monstruosa, muito pior do que as pessoas a quem ela perseguia.
Se em certas áreas o cristianismo trouxe um avanço moral inegável —como no cuidado aos pobres— em outras ele marcou um retrocesso brutal. O papa Francisco, ao reduzir o estigma da homossexualidade, dá um passo numa direção mais humana. É muito pouco dado o histórico terrível da igreja nessa questão, mas é provavelmente o máximo que ele pode fazer sem afundar a instituição. A política impera também nas questões de fé.
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