Por Flávia Tavares
É possível que a palavra ideologia nunca tenha sido tão usada no Brasil quanto nos últimos dez anos. Mas você conhece sua origem, evolução, ou mesmo sua definição mais básica? Ou acha que um jovem do Ensino Médio seria capaz de explicá-la?
Pois ela é um dos verbetes do Termos Ambíguos do Debate Político Atual: Pequeno Dicionário que Você Não Sabia que Existia. Em sua recém-lançada segunda edição, o “pequeno dicionário”, como é chamado carinhosamente em seu site, é uma publicação gratuita, online e primordialmente dirigida a jovens. A iniciativa é do Observatório de Sexualidade e Política (SPW, na sigla em inglês) em parceria com o Programa Interdisciplinar de Pós-graduação em Linguística Aplicada (PIPGLA) da UFRJ. O material, que vem sendo usado por professores e multiplicadores da sociedade civil, é divulgado em duas versões: uma mais completa e outra condensada, para jovens. Ambas contam com quadrinhos que complementam as explicações. E há ainda vídeos de 60 segundos para cada verbete no YouTube. A primeira edição é de 2022 e, nesta segunda, foram acrescentados termos como identitarismo e liberdade.
Também foi adicionado o verbete “cidadão de bem” — e sua autora foi a antropóloga Isabela Kalil, coordenadora do Observatório da Extrema Direita. Ela participa do dicionário desde o começo, a convite da idealizadora Sonia Corrêa, do SPW. Nesta conversa com o Meio, Isabela explica como o dicionário evidencia as disputas em torno dos termos e seus significados e derruba a ideia de que conceitos sejam neutros. Isso é feito mostrando que os verbetes têm uma historicidade, vão mudando de “cara” ao longo do tempo. O “cidadão de bem” de hoje era o “homem bom” do Império. Mais do que definir uma conduta moral, o termo distingue quem pode ter direitos políticos de quem não pode. Turbinado pela ditadura e pelos programas policiais, chegou a 2018 revestido de novos atributos, como o direito a ter armas. “Entender a historicidade e a disputa em torno desses significados é fundamental para recapturá-los”, diz a pesquisadora. Confira os principais trechos da entrevista.
De onde surgiu a necessidade de traduzir esses conceitos em um dicionário?
A pessoa mais importante do dicionário é a Sonia Corrêa. Foi ela quem idealizou, organizou e fez o dicionário acontecer, além de ser uma das autoras. Ela teve uma ideia fantástica. Não de construir um dicionário da direita ou do extremismo, mas sim fazer uma disputa conceitual de termos do senso comum. Alguns conceitos e palavras vão ganhando sentido que muitas vezes não têm. Por exemplo, ideologia de gênero. A ideia de que existe uma conspiração de gênero… isso não existe. Mas o conceito de ideologia de gênero está aí e era importante falar sobre isso. Outro caso é a cristofobia. Num país como o Brasil, em que se matam pessoas e há tanta violência contra pessoas de religiões de matriz africana, a cristofobia, que é a perseguição aos cristãos, é uma subversão de discurso. Então, a ideia do dicionário é trazer conceitos que estão mobilizando a mentalidade pessoas não radicalizadas, ou sequer tão politicamente engajadas, mas são termos que vão ganhando tração na sociedade, se reproduzindo no senso comum. Não é um dicionário para acadêmicos. Tanto que fizemos a tradução interlinguística.
O que isso quer dizer?
Sou autora de um verbete, o “cidadão de bem". Depois de escrevê-lo, a equipe o traduziu para uma linguagem que um estudante do Ensino Médio pudesse entender. Depois, ainda traduziram para os quadrinhos. Tudo isso para as pessoas poderem circular esse material, pessoas comuns poderem ler e entender o que está ali.
O público-alvo, então, são pessoas que ainda não foram radicalizadas?
Há verbetes que tratam de questões muito sensíveis, como as religiosas ou sobre identidade de gênero e sexualidade. Em alguns deles, é possível que haja mais abertura para discussão. Em outros, não. Por isso, é interessante haver essas atualizações, como nessa segunda edição. À medida que a lista de verbetes vai se ampliando, conseguimos aumentar esse repertório.
Qual o poder político da palavra?
A linguagem organiza o mundo. Constrói, reconstrói e reforça hierarquias. Os verbetes escolhidos para o dicionário são palavras que ajudam a entender a organização e as hierarquias que estão colocadas na sociedade brasileira. Esse é o principal ganho do dicionário. Por exemplo, a relação entre homens e mulheres, as questões de gênero e identidade, classe social e religião. Não existe ser humano que não esteja dotado de identidades em relação ao outro. E isso também é uma forma de política.
A própria apresentação dos autores, do objetivo e dos termos do dicionário não tende a afastar o público de direita em vez de atraí-lo?
Tínhamos a preocupação de ter uma linguagem que falasse com pessoas de Ensino Médio. Não é uma questão só de espectro político ideológico. É uma questão de idade, de geração. Isso não significa que não haja jovens radicalizados, mas é um número muito pequeno. Quando se faz um livro, ele pode ser lido de diferentes maneiras, inclusive para dizer que estamos fazendo o oposto do que queremos. Escolhemos termos que causam muita discussão, ambiguidade, e não têm, muitas vezes, uma historicidade, não têm referências. A ideia era oferecer um material quase didático. Há professores, pessoas de organizações da sociedade civil, multiplicadores que usam o material para uma atividade específica. Esse material geralmente é usado com mediação. A polarização não se aplica tanto nesse contexto específico.
É essa falta de referências e historicidade que permite a exploração da ambiguidade dos termos por atores políticos? Ou muitos nem percebem que usam de forma equivocada?
Não diria que é uma forma equivocada. No caso de alguns conceitos, não é que exista uma verdade e as pessoas mintam sobre ele. É mais complexo que isso. Um bom exemplo é o termo cristofobia. Ela existe. Pessoas são perseguidas, até assassinadas por conta da sua religião cristã. Mas isso é um fenômeno da realidade brasileira hoje? Não é. Aqui, os cristãos são maioria, há símbolos cristãos em prédios públicos, a Constituição tem a palavra Deus. Esse é o ponto.
Os conceitos estão em disputa. Mais até do que trazer embasamento conceitual, os verbetes do dicionário trazem historicidade. Quando você entende a historicidade das coisas, entende essas disputas.
Como isso se aplica ao seu verbete?
Eu traço uma história do cidadão de bem, dessa figura da sociedade brasileira. Politicamente, essa figura distingue aqueles que podiam ou não participar da política. Isso está presente na sociedade brasileira desde o tempo do império. Na nossa Constituição, não tem nada, e não há em nenhum tipo de legislação, algo que diga que tem gente com mais ou menos direito de participar politicamente — a não ser em casos muito excepcionais, quando a pessoa perde seus direitos políticos. Por que, então, temos essa ideia de que tem gente que pode participar mais ou menos na política? Porque a história da sociedade brasileira foi construída assim. São resquícios culturais históricos. “Cidadão de bem” não define se a pessoa tem uma conduta moralmente adequada, não é sobre isso. É sobre quem pode, é uma visão de mundo que segrega as pessoas entre as que podem participar da política ou não.
Qual foi a evolução do termo “cidadão de bem” para o debate político atual?
Lá no império, o termo denominava os homens que podiam participar da política, que tinham terras, um certo nível de escolaridade e eram católicos. Nessa época, as mulheres, por exemplo, estavam de fora. Tanto que o termo era “homem bom”. Estrangeiros, pessoas escravizadas, mulheres e jovens estavam excluídos. Mas a figura do homem bom é uma espécie de matriz, de linhagem do cidadão de bem. Depois, durante a ditadura, começa a aparecer essa figura do cidadão de bem, às vezes associada a outros nomes ou à fala dos “direitos humanos para humanos direitos", como se houvesse pessoas merecedoras ou não de direitos. Essa noção se transporta para os programas policiais de TV e eles ajudaram a criar essa relação do termo a temas da Segurança Pública. Daí, o termo é reconfigurado a partir de 2018. Na campanha de Bolsonaro, a noção do cidadão de bem foi amplificada, acrescentando-se a proposta de que distribuir armas para o cidadão de bem, por exemplo.
Como foi a seleção de termos e de autores?
“Cidadão de bem” é uma categoria fundamental na minha análise como especialista, é algo que estudo desde 2018. Os autores escolhidos pela Sonia são aqueles que poderiam dar uma contribuição por já lidarem com essas temáticas. Cada verbete acaba reunindo áreas disciplinares diversas. Apesar de ser um trabalho de escrita individual, todo o processo foi muito coletivo. Os autores escreviam a primeira versão e, coletivamente, íamos decidindo que palavras usar, eliminando termos muito acadêmicos, propondo padrões de tamanho etc. E o processo de escolha dos verbetes foi pegar termos relativamente recentes no debate público e que fossem objeto dessa disputa, das ambiguidades.
Existem termos ou discursos com poder “desradicalizador"?
Não existe uma palavra que tenha esse poder. Os verbetes em conjunto são interessantes, porque se consegue perceber que há verbetes mais próximos de outros. E eles vão falando de um certo repertório que está em circulação na sociedade brasileira contemporânea. De uma certa maneira, eles fazem parte de uma rede de significados. Na verdade, o que está em disputa não é um verbete, mas é essa rede de significados. Se conseguirmos que algumas pessoas entendam que os conceitos não são neutros… Não precisa nem entender tanto a historicidade. Mas aquilo que a gente fala não é neutro, aquilo tem uma história e carrega uma visão de mundo. Aquela visão de mundo tem implicações, constrói a realidade.
Esses verbetes são, muitas vezes, apresentados no debate público como se fossem neutros. É preciso entender que não são.
Um caso claro disso é a palavra liberdade, incorporada nessa segunda edição.
Exato. Existem palavras relativamente novas, que não ouvíamos e passamos a ouvir frequentemente, como ideologia de gênero. Mas tem também palavras que já faziam parte do nosso cotidiano e ganharam novos significados. Por isso, o significado importa mais do que a palavra em si. Liberdade era uma palavra usada de maneira poética, agora está atrelada a significados políticos muito específicos, excludentes. E tudo isso vale para os símbolos também. A camisa da seleção brasileira era um símbolo disseminado na sociedade brasileira de maneira ampla, relacionada ao esporte, à celebração. Esse símbolo nacional foi capturado por determinados setores da população. Num exercício de abstração, ao substituir os símbolos por palavras, acontece o mesmo. Entender a disputa em torno delas é essencial para poder recapturá-las.
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