Nesta semana chamou a atenção na imprensa e nas redes sociais as aberrações vividas pelo jogador Neymar em cruzeiro que circula pelas águas do Sudeste, entre Santos (SP) e Búzios (RJ). O interesse midiático pelas atividades sui generis do jogador encobre a dura realidade do mundo do trabalho em cruzeiros, representativa do pior lado da globalização.
O cruzeiro Ney em Alto Mar começou na última terça-feira e navegou em mar territorial brasileiro até sexta. Os 4.000 passageiros compraram cabines que custaram de R$ 5.000 a R$ 30 mil. Repleto de subcelebridades da música, da internet e da comédia stand-up como atrações, além de cassinos, piscinas e boates, o cruzeiro ilustra os exageros das classes altas brasileiras.
Num dos vídeos gravados, Neymar recebe do influencer Buzeira um colar de ouro de três quilos avaliado em R$ 2 milhões, além de dois anéis de ouro gigantes. Buzeira foi citado pela Polícia Federal em investigação sobre loterias e sorteios ilegais de artigos de luxo.
Em outro vídeo, Neymar grita a letra de uma música com singela rima. "Fodeu/ eu fui dar perdido com os amigos/ e a cunhada apareceu." O palavrão aparecia em letras garrafais no telão do navio. No mínimo, deselegante.
O jornalista Mario Sabino ponderou que o cruzeiro de Neymar ilustra um fenômeno sociológico: "No Brasil almeja-se a vulgaridade e os seus excessos. Arrisco dizer que ela nunca esteve tão presente desde a época colonial. Tornou-se valor social definitivo, com a perda de qualquer padrão civilizatório". A vulgaridade une ricos e pobres num mesmo objetivo pueril, a ostentação de bens materiais e da própria ignorância.
Se é verdade que a vulgaridade é um aspecto da nacionalidade, outro é a extrema desigualdade que nos constitui cotidianamente. Num navio cruzeiro, esta desigualdade bem brasileira ganha cores extremas, e o trabalho semiescravo convive com o extremo luxo.
Em 2002 e 2003 trabalhei na mesma empresa de navegação italiana que agora promove o cruzeiro de Neymar. Eu era "commis", ou seja, ajudante de garçom. Pegava os pedidos na cozinha e trazia para o salão. Como as refeições tinham entrada, prato principal e sobremesa, eu não parava nunca. Empilhava 12 pratos e ia e voltava sem parar. Depois retirava as sobras dos clientes. Nunca vi tanta comida jogada fora.
Antes do início do trabalho limpávamos o restaurante. Depois, lavávamos as louças e talheres. Entrávamos e saíamos cerca de uma hora e meia antes e depois dos passageiros. Como trabalhávamos no café da manhã, almoço e jantar, a carga horária era de mais de 12 horas.
O trabalho era sete dias por semana e qualquer hora extra já estava incluída no salário, que na época era de US$ 500. A gorjeta dependia do garçom, nosso superior, que dava o quanto quisesse do que os passageiros lhe ofertavam. Éramos a ralé do navio, explorados pelo patrão e por outros empregados.
Isso acontecia pois nosso trabalho era um exemplo do lado "Z" da globalização. A empresa dona do navio era italiana. A bandeira da embarcação era da Libéria, pois assim a empresa nem sequer pagava impostos na Itália e as normas de trabalho eram internacionais, muito mais flexíveis e exploratórias do que a nossa CLT. A contratante da mão de obra terceirizada era de Miami, nos Estados Unidos. O foro de qualquer disputa trabalhista ficava, segundo o contrato, em Haia, na Holanda.
Os trabalhadores eram quase todos do terceiro mundo. Eu me lembro de guatemaltecos, salvadorenhos, filipinos, vietnamitas, indianos, búlgaros, romenos e brasileiros, quase todos nós muito jovens.
Todos éramos odiados pelos garçons italianos, homens de idade que ainda eram respaldados por sindicatos nacionais, mas que viam sua realidade mudar a cada um que se aposentava. Viam-nos como usurpadores de seus empregos e nunca culpavam o patrão italiano. Trabalhadores de todo o mundo desunidos.
Do nosso salário, recebíamos apenas US$ 300. Os US$ 200 de saldo ficavam nas mãos do patrão, que usava nosso salário para criar uma poupança forçada. Caso quiséssemos pedir demissão e estivéssemos em outra parte do mundo que não o porto de origem, a empresa comprava passagens aéreas com nosso próprio dinheiro e nos encaminhava ao país natal forçadamente.
Os contratos duravam de seis a oito meses. Sete dias por semana, 12 horas por dia, sem pagamento de horas extras, sem oito horas de sono, com desconto do salário na fonte: em tudo era um trabalho análogo à escravidão.
Decidi abandonar o navio antes de este zarpar para o verão europeu, pois vivi um episódio cruel. Quando o navio estava em Salvador, peguei alguma virose forte. Para não trabalhar era preciso passar pela consulta médica e obter um atestado.
Em alto mar só há um médico, o da própria empresa, que sem maiores questionamentos disse que eu não estava doente, embora eu mal conseguisse parar em pé. Decidi abandonar o barco no próximo porto. Desde que trabalhei neste cruzeiro, soube por meio de colegas que permanecem neste regime que pouco ou nada mudou.
Quase sempre pensamos que o trabalho correlato à escravidão acontece nos grotões do Brasil. Mas a verdade é que ele também acontece nos centros da riqueza nacional. Nas casas das elites com empregadas domésticas semiescravas, sem direitos. Em confecções paulistanas repletas de bolivianos e outros estrangeiros quase sem nenhuma autonomia. E também em navios de cruzeiro.
Em setembro passado, o Tribunal Superior do Trabalho determinou que os cruzeiros deveriam contratar brasileiros seguindo regras da CLT. Trata-se de uma reparação ao entendimento anterior de 2020, que previa que os contratos deveriam seguir leis internacionais, sempre muito permissivas.
A decisão de 2020 havia sido até endossada pelo então presidente Jair Bolsonaro, que sob a desculpa de "desburocratizar" o serviço náutico, intencionava expandir o turismo no Brasil. Nada de novo no front: é o vale tudo capitalista de sempre na conta do brasileiro. Será que a nova legislação vai pegar? Em quanto tempo haverá fiscalização de fato?
Na época em que trabalhei no cruzeiro, aquele formato de exploração global era novidade. Hoje em dia tem até nome, "uberização" ou "ifoodização", em irônica referência aos aplicativos que buscam "parceiros" para os ônus, mas nunca para o lucro.
É uma pena que um ídolo como Neymar não se mostre à altura desse drama da desigualdade nacional. Luxo exagerado e exploração intensa são parte constitutiva da identidade nacional. Neymar, como muitos brasileiros, não quer ver essa realidade.
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