Gustavo Nogy
Logo depois do anúncio da vitória de Javier Milei, na Argentina, pensei ter surpreendido uma certa —e certamente inconfessa— "satisfação" por parte da imprensa, tamanha a fúria com que jornais grandes e pequenos, jornalistas principiantes e veteranos, se prontificaram a adjetivar, com ares de escândalo e esgares de desprezo, o já esperado resultado eleitoral no país vizinho como o obituário quente de um cadáver há muito adiado. Milei é, tanto quanto ameaça, assunto.
Talvez a repetição de manchetes e a profusão de interjeições fossem mesmo a manifestação sincera do horror cívico diante de mais uma tempestade populista, reacionária e antidemocrática na América Latina e arredores. Muito bem, compreende-se. O que não me parece muito bem, e o que não se compreende, é a falta de jeito com o que chamarei, enquanto não me ocorrer expressão melhor, de "vácuo da despolarização".
As datas são imprecisas e convidam ao debate: no âmbito internacional, a vitória de Trump? No cercadinho nacional, a vitória de Bolsonaro? Ou as jornadas de junho? Ou a reeleição de Dilma? Ou a revolta de Aécio Neves com a reeleição de Dilma? Ou a prisão de Lula? Ou ainda as reviravoltas de folhetim da Operação Lava Jato?
O fato é que há quatro, seis ou dez anos, mais do que pautar, a imprensa tem sido pautada por figuras controversas ou francamente condenáveis como alguns dos já citados (e outros por citar). Dessa insalubre obrigação profissional parece ter ficado um vício: o jornalismo opinativo, moralizante e, não poucas vezes, condescendente. Anos de guerra desacostumaram comentaristas, repórteres e editores aos tempos de paz.
Biden venceu nos EUA, Lula ganhou no Brasil e, de repente, tem sido difícil exercitar o papel que nos cabe em um ambiente de relativo —reitero: relativo e precário— apaziguamento. Sim, sabemos, as ameaças à democracia estão aí, os golpistas também, mas é inegável que o fim do período eleitoral serviu para desarmar o disjuntor da polarização. O brasileiro prefere a emoção do mata-mata à regularidade dos pontos corridos. Até 2026, a despeito dos solavancos nas próximas eleições municipais, vizinhos voltarão a emprestar açúcar a vizinhos. Sem veneno misturado.
Acontece que há um presidente eleito, um ministério escolhido, indicações a serem feitas aos tribunais superiores, desencontros na política econômica, desentendimentos na política ambiental, desajustes no que toca à representatividade (de resto tão fundamental quando o criticado é de oposição), desconversas nas relações exteriores e frustrações nos acordos comerciais. Tudo isso está aí e precisa ser reportado e debatido com a mesma independência e o mesmo entusiasmo que nos animaram nos anos e nas batalhas anteriores.
Entretanto não é isso o que se vê. O que se vê —o que eu tenho visto— é, de um lado, uma preguiça, uma letargia, um cansaço, como se estivéssemos sentindo falta da relação abusiva que se estabeleceu entre o populismo e o jornalismo, entre o mainstream e o alternativo: como noticiar quando a notícia já não trata dos preparativos para o apocalipse?
De outro lado, um "falar baixo", um respeito, um cuidado, como se estivéssemos sentindo muito medo de que, se reclamarmos dos fantasmas presentes, as assombrações ainda maiores do passado reaparecerão.
Nenhuma das alternativas é útil ou verdadeira. Ainda que a conhecida frase de Millôr Fernandes seja melhor como frase que como princípio, a imprensa tem, sim, de se lembrar do seu papel de oposição: responsável, objetiva, honesta —mas ainda, em alguma medida, oposição.
É preciso criticar o governo que temos, fiscalizar os políticos que elegemos e reprovar os abusos daqueles que nem mesmo são eleitos, mas têm e terão bastante poder até a aposentadoria compulsória. Ou é isso ou as redes sociais tomarão o jornalismo como o que ele não é, ou idealmente não deveria ser: um grande e abandonado armazém de secos e molhados.
Nenhum comentário:
Postar um comentário